sábado, 1 de outubro de 2011

Recordar o Raizonline - Trabalhos de números de arquivo - CONTO DE JOAO FURTADO - Realidade fictícia



Recordar o Raizonline - Trabalhos de números de arquivo - CONTO DE JOAO FURTADO - Realidade fictícia

Publicado inicialmente na edição experimental nº (?) antes do Natal de 2008

Não consigo escrever. Vivo este vazio sempre que termino um conto e quero começar a escrever outro. A minha volta é o nada. Nada me sai da cabeça para o papel. A febre que sinto enquanto coloco no papel as minhas ideias mais ou menos formadas se esvazia rapidamente. Sinto uma paz interior, o mesmo que se sente após o orgasmo.
E a mesma vontade de continuar e não poder. Já fui ao computador várias vezes, mas abro, jogo uma ou duas partidas do «solitário», ganho e perco, volto a levantar-me, após fechar o computador, nada sai mesmo, nada de nada. Esforço a memoria faço o filme da minha vida passar vertiginosamente desde o meu nascimento até hoje. Faço projecção para um futuro incerto de mil maneiras, mas nada. Tudo em mim é informe e vazio. Não resta nada a fazer senão esperar.
Posso passar assim algumas horas ou mesmo dois ou três dias. Sem nada poder fazer, brinco com a minha netinha. Deixo ela fazer-me de bebé, o que ela adora. Com o seu pouco mais que um ano, ela adora me dar de comer, me mandar abrir a boca, para ver se tenho algo de errado nela. Ela coloca-me coisas, como a caneta electrónica, na boca, para me repreender. Ou seja o que lhe faço, ela me faz com todo o prazer.
Imagino a historia que gostaria de contar, as palavras me faltam, estou na fase do vazio completo, deixo de ter capacidade de imaginar. A minha mulher fala comigo e eu nem ouço. Ela repete e torna a repetir, eu continuo longe, no mundo de ninguém. Ela me repreende dizendo que devemos estar mais presentes neste mundo. Eu nem ai, bem, para dizer a verdade, sempre preferi o meu mundo.
Vem à mente o quanto sou prejudicado por viver num mundo só meu, mas agora mais do que nunca estou no meu mundo. Lembro com tristeza que tenho sido escada para muita gente subir no meu trabalho. Mas que a possibilidade de subir é para mim escassa, isto porque preciso ser deste mundo. Aproveitar as oportunidades, saber ser um pouco engraxador.

Mas desisto, vou continuar assim, não consigo ser como o José. Já lhe pedi para me ensinar a engraxar, mas, enfim, ele disse-me que engraxar era uma profissão difícil. Ele foi engraxador desde o tempo do colono. Sabe como manobrar a graxa e as escovas. Diz-me para o deixar com a profissão que é dele.
-Mas José, não quero ser engraxador para te tomar lugar, preciso ser engraxador, apenas para poder subir na vida!
-Repara João, repara os outros engraxadores, eles cosem e consertam sapatos, eu apenas engraxo, foi assim que o colono me ensinou, não vou fazer mais nada na vida, apenas engraxo, sou engraxador, nunca vou ser professor. – Disse-me o José.
Ele tinha razão, nasceu para engraxar sapatos, homem forte e cheio de músculos, podia estar a fazer mil e uma coisa, mas preferiu o engraxe. E é com orgulho que diz aos quatro ventos o que faz, assim como ainda recorda com saudades os militares. Afirma mesmo que a ultima vez que comeu bacalhau, foi pouco antes de 25 de Abril, no quartel da tropa. Bacalhau com grão, diz e afirma, não porque não haja mais bacalhau, mas porque quer guardar, quer continuar com a lembrança dos tropas brancos. Não iria comer bacalhau nunca mais na vida.



 

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