quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A cegueira de Abdala - Um Conto de Daniel Teixeira



A cegueira de Abdala - Um Conto de Daniel Teixeira
Abu Abdala, tal como fazia todos os outros dias em Beja, estudava a obra de Al Gazali. Para o lado de fora da janela do seu quarto, naquela tarde quente de mais um Agosto alentejano, o mundo que via aparecia-lhe como um quadro pincelado com rebanhos acostados às árvores, como se, sendo eles os barcos daquele mar terreno, procurassem assim fugir à vermelhidão quente de um solo que expelia serpentes de vidro.

Estas, depois de se elevarem da pele rugosa da terra desapareciam naquele vazio que os filósofos e os poetas diziam comportar tudo não sendo coisa nenhuma. Assim afirmava Al Gazali - pensava Abdala: «O vazio é o espaço que não é coisa nenhuma e que pode comportar tudo o que há na terra.» E, aquelas serpentes de calor tinham partido do ventre da terra e esgueiravam-se rasteiras por entre as placas crestadas do solo alentejano, que ele via da sua janela, para o vazio que tudo pode conter.

Talvez tivesse sido a sensação de um vazio igual ao vazio do espaço que o tinha feito deter ali, em Beja. Talvez ele mesmo se tivesse também sentido vazio por dentro, sem se aperceber desse vazio, antes de conhecer Al Gazali. E Alba... antes de conhecer Alba... também.

Talvez tivesse sentido um vazio como aquele que sentia agora , só que hoje tinha plena consciência disso; conhecia-o. Abdala era, pois, um ser consciente que tinha consciência do vazio que o preenchia. A sensação que sentia naqueles momentos em que reflectia sobre si mesmo e sobre o vazio que o ocupava parecia ser a sensação de conter em si um espaço sedento de preenchimento, que ele tentava suprir metodicamente dia a dia sem nunca chegar ao fim da sua tarefa. E no dia seguinte tudo recomeçava. Mas tudo começava do princípio - ou quase do princípio - não sabia muito bem.

Aquela cidade onde vivia, e as razões que o levavam a ali viver prestavam-se, e eram a razão, para toda a necessidade que sentia de responder às suas próprias perguntas com interpretações que acabavam por suscitar novas perguntas. Ou talvez fossem sempre as mesmas perguntas com novas formulações. Abdala não sabia. Abdala não sabia nada sobre aquilo que se passava consigo, senão que tinha um vazio para preencher e procurava as respostas em Al Gazali e o esquecimento em Alba.

Na verdade - perguntava-se infinitas vezes - que fazia ele, rico comerciante que conhecera durante muitos anos muitas rotas e muitas terras, que conhecera perigos e mares revoltos, que entrara em batalhas e que defendera o que ia possuindo, tantas vezes com a lâmina da sua espada (?) ; que fazia ele numa cidade que fora romana e goda, numa cidade onde tinham progredido os infiéis e onde viviam ainda aqueles que não tinham como verdade a palavra do Profeta?! Que fazia ele, Abdala, naquela cidade e porque estava ele ali havia já cinco anos quando nas suas anteriores viagens mais não fizera do que ficar o tempo suficiente para cobrar os dinheiros que investira nos mantimentos das guerras?!




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