Mostrar mensagens com a etiqueta Conto Africano. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Conto Africano. Mostrar todas as mensagens

domingo, 16 de agosto de 2015

A Lenda da Senhora Matilde e da «San Líjà Bote» - Conto de João Furtado

 
A Lenda da Senhora Matilde e da «San Líjà Bote»
 
Conto de João Furtado
 
 Vestida imaculadamente de branco, a senhora Matilde, sim era este o nome da velha que diariamente sentava-se a berma do rio Papagaio.
 
Usava saias longas e de pregas e uma blusa de mangas folhadas. Esperava alguém, alguém que deveria voltar e nunca mais voltaria. Aquela zona era denominada de «San Lijà Bote», em português, senhora Luísa Bote.
 
Que esperava a senhora Matilde? Alias quem esperava ela?O João diariamente passava por ela e tornava a passar. Passava para ir a escola e passava de novo quando voltava para a casa. A senhora Matilde lá estava.
 
Ia bem cedinho e só regressava a noite. Há anos que ela passava o dia sentada. Alimentava de cola e agua. Graças a Deus a cola era uma semente milagrosa. Bastava uma semente para não se sentir a fome durante longo período do dia e era fácil de se conseguir.
 O fazia ela sentada ali e quem esperava ela?
 A agua cristalina e transparente descia rio abaixo até o mar alheio a tudo e a todos e a Senhora Matilde, alheia a tudo que passava a sua volta fixava os olhos no rio e via a agua correr na sua trajectória milenar, enquanto respondia a todos que por ela passassem o «Passô» com outro «passô».
 
Ninguém mais se importava com ela. O hábito de ficar sentada a beira do rio já se havia transformado em normal, natural. Um tão estranho hábito tornou-se habitual e quando o estranho se transforma em normal, ninguém mais liga. A Senhora Matilde já tinha se tornado em parte integrante do ambiente.
 
Um dia ela não pode ir, ela tinha apanhado uma ligeira gripe, ai sim todos acharam anormal e correram para a casa dela, para saberem o que havia acontecido com ela.
 
O João sabia o caminho que devia seguir de cor e salteado. Nunca deveria encurta-la. Devia ir tomar sempre a ponte e atravessar o rio, seja porque razão ou motivo for.
Mas naquele dia estava com pressa e o rio parecia tão calmo… podia saltar a casa ficava a poucos metros da margem do outro lado do rio.
 
Já estava a entrar na água quando ouviu a Senhora Matilda a chama lhe:
- Mino, minooooooooo, vem cá!
 Voltou, veio responder, na Ilha era assim, todos se conheciam e se respeitavam, uma Ilha pequena e uma cidade ainda mais pequena.
 
Tornou a dizer «passo» era o costume. Se encontrassem mil vezes, mil «passo» era dado.
-Sabes porque estou cá sentada? Não, não sabes! Tenho uma única filha, a Maitê, devia ter tua idade quando entrou na água, precisamente onde ias entrar. Nunca mais voltou e eu estou cá a espera dela, um dia haverá de voltar.
-Para onde foi ela?
-A «San Lijá Bote» levou-a para o seu mundo. Todos dizem que ela nunca mais voltará, mas eu sei que um dia a Maitê voltará. Um dia a “San Líjá Bote» deverá dormir e ela fugirá e regressará.
 
-Há quantos anos ela desapareceu?
-Há mais de trinta anos, mas vou esperar, vou esperar até o dia que ela regressar, irá voltar um dia! Era um dia de sol como hoje. A água estava cristalina e transparente. Ela vinha em grupo da escola. Entrou na agua e as colegas ficaram a vê-la, de repente fez um remoinho no meio do rio e ela foi puxada. As outras crianças viu-a a ser puxada e nada podiam fazer, até que ela se perdeu para sempre.
 
-A senhora vai ficar aqui mais quanto tempo? Porque não entra no rio e vai procurar a sua filha?
 
A senhora Matilde não respondeu. Caiu de novo no seu silencio e na sua resposta ao «passo» que os habitantes da Ilha lhe desejava…
 
Por muito tempo o João e os habitantes da ilha continuaram a ver a senhora Matilde imaculadamente vestida de branco sentada esperando a filha Maitê. Até que um dia ela deixou de ser vista. Procuraram-na por toda a Ilha, mas ninguém a encontrou. Ninguém soube ao certo o que aconteceu com a Senhora Matilde.
 
O João tinha uma certeza, a Matilde havia entrado no rio, havia ido procurar a Maitê e a «San Lijá Bote» ficou com ela também. Disse para toda a Ilha, afirmou que foi ele que a aconselhou a fazer tamanho disparate, mas ninguém acreditou nele.
 
Ainda hoje fala-se na «San Lijá Bote» na sua fome insaciável de povoar o seu reino encantado e também fala-se do desaparecimento misterioso da Matilde.
 
Mas nunca ninguém ligou os dois casos.
 
Ninguém não, o João os ligou sempre.
 

 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

João Vaz já tem casaco - Conto / Crónica de João Furtado


João Vaz já tem casaco

Conto / Crónica de João Furtado


Os últimos anos não foram dos piores, mas também não poder-se-iam afirmar que eram cor de rosas. Dava para comer e tinha alguma palha que servia para dar aos animais. Já tinham havido muitos outros anos piores. Os melhores anos serviam para que se pudessem casar, baptizar e crismar os filhos. Quem os pudessem fazer. Os outros contentavam com a esperança de que o próximo ano seria melhor e poderiam realizar os seus mais íntimos sonhos.

Até para morrer o felizardo era aquele que morresse pelo menos num ano igual ao que era aquele. Tinha a esperança de saber que a sua morte seria chorada e que as inesperadas visitas teriam o mínimo para comer durante as cerimónias fúnebres. Se bem que uma certeza levava. Todos iriam chorar as suas mortes. As mulheres os seus maridos. As filhas as suas mães. As irmãs os seus irmãos. As mães os seus filhos. As comadres os seus compadres. As amantes e rivais iriam aproveitar para se exporem as suas desavenças acumuladas.

Os parentes e familiares também iria aproveitar para se posicionarem e se darem a conhecer todas as pequenas mágoas do dia a dia. Mas o funeral seria digno dos anais da história, embora ele, a figura principal, pouco se destacaria.

A casa era a peça fundamental. Ninguém poderia sair das barras da saia da mãe, sem ter o seu funquinho (1) . Ainda que o mesmo funquinho servisse para cobrir a cabeça e deixar a chuva e vento o corpo. Bem, a chuva… era um bem quase esquecido. Embora os últimos anos não se pudesse afirmar a total ausência dela, mas também não se podia dizer que a bonança tinha enfim visitado as Ilhas. Todos tinham seu funquinho sim, «quem casa quer casa» não era apenas um adágio popular na Ilha, era uma realidade.

Não poder-se-ia afirmar era que as casas eram efectivamente casas. A maior parte delas de casas só tinham nome, mas enfim eram casa. Algumas pedras sobrepostas e cobertas de palhas. A maioria, por dentro, se tanto a sala era calcetada.

Mas para casar. Casar, mesmo casar, com padre e tudo de direito, eram muito poucos. Casar como o João Vaz pretendia oferecer a Isabel Lopes, era preciso o casaco. O casaco não estava ao alcance de qualquer um. Por isso muito casamentos eternos não passavam de arrumação dos trapinhos na esperança de que o próximo anos seria melhor e haveria a cerimónia com tudo de que era o direito da família. A esperança que transitava de ano para ano.

O João Vaz estava a namorar com Isabel Lopes anos e anos. A Isabel Lopes consciente da realidade estava disposta a «fugir» numa noite qualquer e no funquinho feito a pressa formar seu casamento. Sem roupa de princesa a varrer o chão, sem padre, sem padrinhos, sem nada. A Isabel Lopes não esperava ter o pedido de casamento. Ela sabia da realidade da terra.

A Isabel Lopes era namorada do João Vaz, embora ninguém oficialmente podia dizer com certeza. Todos sabiam que eles, ela a Isabel Lopes e ele o João Vaz tinham «suas aguas sujas» (2) mas como ninguém os viu próximos um de outro a mais de dois metros, como mandava a digna tradição dos mais velhos, podia afirmar que namoravam. As «conversas» com os olhos eram os únicos indícios visíveis. E, também eram as únicas recriminações da mãe da Isabel Lopes. No tempo dela havia mais respeito. Muito mais respeito.

A Isabel Lopes sentia-se mulher, não queria continuar nas barras da saia da mãe. Varias vezes fez o João Vaz saber disto por meio da prima, a pombo-correio dos dois. O João Vaz respondia sempre da mesma maneira:
 -Diga a Isabel Lopes que ela é a minha rainha, quero entrar com ela na igreja. Só me falta o casaco. Já tenho algum dinheiro, vou completar e comprar o casaco.

A Isabel Lopes esperava o casaco do João Vaz, esperava e desesperava. Os tempos não permitiam ao João Vaz a compra do casaco, por mais que se esforçasse.

O João Vaz trabalhava desesperadamente para comprar o casaco. A Isabel Lopes desesperava para deixar a casa da mãe e ter seu próprio funquinho. A Isabel Lopes mandou outro recado:
 - Diga ao João Vaz que não estou a aguentar mais, para ele arranjar o casaco o mais rápido que puder!

O João pouco podia fazer. O dinheiro não havia maneira de crescer, ia sempre para um remédio aqui, um grogue ali, dava emprestado ali e nunca mais recebia. Estavam nisto. Todos juntavam seus trapinhos. O João Vaz queria entrar na igreja com a sua rainha.

O José de Almeida tinha uma vida mais abastada. Não era muito melhor que os outros. Era menos pobre. Tinha pelo menos dois casacos. O João Vaz sabia disto, foi procurar o José de Almeida e propôs a comprar de um dos casacos. O José de Almeida mostrou os casacos. Dois ao todo. Eram apenas dois casacos. O João Vaz escolheu o castanho. O José de Almeida perguntou-lhe a cor das calças e dos sapatos. O João Vaz disse que as calças eram pretas e os sapatos… bem, não haviam sapatos! Era normal, os sapatos não eram importantes. O casaco sim. O José de Almeida disse que o preto era melhor. Descalço, com calças pretas e casaco castanho não deveria ser grande ideia. Depois chegou a hora de falarem de pagamento.

O José de Almeida queria dinheiro. O João Vaz só podia pagar com trabalho. O José de Almeida disse: -Esta bem, pode ser com trabalho, mas só levas o casaco depois de estar tudo pago. Não havia problemas, até porque o João Vaz não tinha onde guardar o casaco. Trabalhou, trabalhou e trabalhou. Fez de tudo. Não havia como acabar de pagar o casaco. Ia de manha e só regressava a noite morto de cansado a casa, mas não havia forma de acabar com a divida e levar para a casa o casaco.

Propôs trabalhar também de guarda. Passou a dormir lá. Trabalhava de dia, guardava de noite. Só assim poderia um dia levar o casaco para a casa.

A Isabel Lopes deixou de ver o João Vaz. Os olhos deixaram de se conversarem. Os sorrisos disfarçados e comprometedores deixaram de ser feitos. Os sonhos começaram a esfumarem-se. A pombo-correio da prima bem se esforçou, mas nada de João Vaz.

O assédio do Manuel Ferreira que nunca foi tomado em conta começou a ter resultado. As mesmas acções começaram a aparecer de novo. A pombo-correio da prima retomou as idas e vindas por algum tempo, mas o destino passou a ser outro.

Numa manha normal, como outra qualquer, ouve-se choros e gritos na casa da mãe da Isabel Lopes. Todos pensaram no pior e correram para ajudarem e aproveitarem para chorarem os seus mortos. Graças a Deus não era o pior. Foi um alívio e uma decepção. Mais alívio que decepção. Os mortos podem esperar mais alguns dias para serem chorados. A Isabel Lopes havia «fugido».

Todos pensaram que ela estava na casa do João Vaz, mas não estava. Passados os prazos da praxe que a situação exigia ela apareceu, toda envergonhada acompanhada da família do Manuel Ferreira.

Esta, a família do Manuel Ferreira, toda contrita com a situação delicada, colocada pelo doidivanas do filho que não havia pensado nas consequências do acto:
 -Agora somos uma família – dizia a mãe do Manuel Ferreira e sogra da Isabel Lopes – eles já fizeram o que não deviam. Agora temos que os deixar organizarem. Dou a minha palavra de honra que irão casar na próxima «as aguas» (3)!

Houve choro. Era o fim do nojo inesperado e curto. Depois veio a festa. Houve matança de porcos. A mandioca e o cuscus (4) não faltaram. Estavam preparados. Ninguém sabia. Mas o recado recebido uma semana antes «no próximo sábado iremos ai!» era esclarecedor, Já estavam a espera. A festa durou toda a noite.

Enfim o João Vaz conseguiu pagar o casaco. Tomou a casaco. Fez questão de vestir e ir passar mesmo a frente da casa da mãe da Isabel Lopes. Queria que a Isabel ou a prima o visse vestido de casaco. Iria arranjar uma delegação de pedido da noiva.

Quando aproximou-se ouvi o barulho das batucadeiras (5) . Havia festa na casa da mãe da Isabel Lopes. Perguntou o que estava a passar. Todos sabiam do namoro de João Vaz com a Isabel Lopes. Não tiveram pena dele, deram a noticia o mais cruel possível:
 -Isabel Lopes saiu de casa com Manuel Ferreira e foi apresentada a casa dos pais ontem.
 O João Vaz caiu estatelado no chão. Desmaiou. Mas ainda pode dizer:
 - Eu já tenho o casaco!

O João Vaz nunca mais tirou o casaco. Nem de dia, nem de noite. Dizem que passou a dormir com casaco. A frase dita no momento de desespero tornou-se popular.

Ainda hoje diz-se sempre que alguém tenha algo que muito desejou e não havia conseguido antes – DJON BAZ DJA TEN KASAKU – o que quer dizer, João Vaz já tem casaco.

Sim João Vaz conseguiu casaco, mesmo que lhe tenha custado a perda da sua rainha, Isabel Lopes.



(1)- Funquinho – cubata de pedras, normalmente em forma circular, coberto de palha.
 (2) - aguas sujas – segredos, gostavam um do outro
(3) - As Aguas - Época das chuvas. Época produtiva
 (4) - Cuscus – Pão de farinha de milho cozido a vapor.
 (5) - Batucadeiras- Mulheres que tocam batuco. Colocam pano dobrado sobre a perna, onde com as mãos, no ritmo cadenciado do batuco, batem sobre o pano.

João Furtado



terça-feira, 31 de março de 2015

João e Marquinha - Conto de João Furtado


João e Marquinha

Conto de João Furtado


Sentado a porta da casa, o João olha para o nada. O seu olhar é vago e a solidão que o atinge faz-lhe estar distante de tudo. A electricidade não chegou ainda à sua casa. Não tem televisão nem rádio.

Descalço e com roupa retalhada, as pernas não são as mesmas de há 60 anos atrás. Nem a memória é a mesma, mas uma coisa é certa, o amor que sente pela Marquinha é o mesmo de sempre.

O rosto enrugado e a boca desdentada, mal consegue suportar o peso do cachimbo fumegante, seu companheiro de sempre. Muita vida vivida foi para esquecimento, mas a Marquinha continua viva nele. A única que não morreu numa memória cada vez mais morta que viva.

Marquinha era diferente de todas. Teve muitas mulheres durante os seus longos 80 anos de vida, mas nenhuma foi como a Marquinha, o seu primeiro amor. Nunca teve uma foto da Marquinha, mas sempre a teve na memória. A imagem da Marquinha jamais saiu da sua memória. Hoje, que nem dos filhos se recorda bem, continua a viver a sua Marquinha.

A casa da Marquinha era no alto da colina, nos Órgãos, Ilha de Santiago. Era um sobrado lindo e via-se de longe, entretanto não era fácil lá chegar. Para se ir a casa da Marquinha tinha-se que andar quase dois quilómetros sempre a subir. Num serpentear de curvas e contra-curvas entre argilas e pedras, que qualquer descuido seria razões de acidente gravíssimo. O caminho íngreme e quase perpendicular obrigava a uma perícia incalculável.

O João, hoje velho e cansado, continua a ter a imagem da Marquinha, dengosa, com pano amarrado à cintura bamboleando quando transportava a lata de água, ladeira acima. Negra, esguia e bela, subindo ao compasso do batuque. Luxuriosamente bela, a Marquinha era a única lembrança da juventude do João.

Desde muito cedo, João enrabichou-se pela Marquinha, ele tinha 18 anos e ela 14. Ele de enxada no punho e ela de balaio e pano à cintura. Ele a cavar o chão para ela semear.

Eram muitos, quase 30 pessoas, entre homens, mulheres, rapazes e raparigas, mas ele só via ela, a Marquinha. E ela, dengosa, fingindo-se alheia a tudo, mas atirando o feitiço de mulher, que bem cedo sabe da força que esconde nos seios firmes e libidinosos, escondidos por fino e sensual pano de cetim.

Um pouco acima da fina cintura de cobra, fazia salientar a bela e carnuda anca de mulher badia. Ele a cavar para ela. Era um djunta-mon, onde não estava apenas o trabalho, mas mostrar do que era capaz. Que era melhor que todos os outros rapazes! Ela era o troféu em disputa.

Ela, a Marquinha sabia disto, se mostrava e se sentia orgulhosa a ser razão do frenesim que à sua volta desenrolava. Mas não falava com ninguém, se mostrava e se escondia, no jogo do amor e do pudor. Os adultos, os pais, viam tudo e fingiam nada ver.

Todos sabiam do jogo. Todos participavam no jogo. Ela tinha que se resguardar e se mostrar difícil. Ele queria que ela fosse difícil e ficava orgulhoso disso. À tardinha ia esperá-la na ribeira. Sabia que ela ia e ela sabia que o ia encontrar lá. Continuavam os rituais.

Ele insistindo na conversa e ela esquiva jogando com as palavras:
 -Marquinha, sou louco por ti!
 -João devias era ir para o hospital então para te tratares!
 -Marquinha, deixa de brincadeiras, estou a falar a sério. Quero-te! Quero casar contigo!
 -João, não vês que ainda sou criança?

O João pegava-lhe nas mãos e ela lutava e fingia-se ofendida. Afirmava que a mãe estava a vir atrás dela. Dizia que ontem tomou uma carga de porrada, porque a madrinha dela teria dito à mãe que a viu com o João. O João todo fanfarrão prometeu que ia falar com a tagarela da madrinha da Marquinha! O que tinha ela a ver com a vida dos dois?

A Marquinha ameaçou-o:
 -Se disseres alguma coisa, sou eu que nunca mais falo contigo!

Ela tenta fugir dele e ele tenta fazer-lhe ficar mais uns minutos. Ela corre e ele vai atrás. Tenta prende-la, a lata de vinte litros de água que leva à cabeça cai. A lata fica informe, ele tenta dar um jeito. Está a ficar escuro. Ela tem mesmo que ir. Não seria desta vez que receberia um sim. Ele sabe que ela esta a gostar, mais fica orgulhoso com o não. Assim o sim será mais valioso. O não é uma pré-garantia de que a mulher vai ser fiel. Amanhã dirá sim, tinha a certeza!

-Quando te verei de novo? – Quase gritou, porque ela já ia longe!
-Não sei, amanhã irei à Praia vender umas galinhas e ovos! – Respondeu a Marquinha antes de se perder no escuro. - Era uma resposta que ele queria. Ela, tentando desconversar, está a convidá-lo a ir com ela à Praia. Era isto que iria fazer!

O cérebro humano é mesmo uma caixa de surpresas. O João que já nem se lembrava do seu próprio nome, não conseguia esquecer nenhum pormenor do seu romance com a Marquinha.

No dia seguinte levantou-se muito cedo. Às quatro já estava na estrada à espera da Marquinha. Ela vinha com as amigas. Quando o viu foi-se disfarçando, como se estivesse com carga a mais ou tivesse alguma pulguinha nos pés que a impedia de andar.

As amigas entenderam, sorriram e avançaram a passos largos, para depois continuarem mais devagar. Não queriam atrapalhar os namorados, mas também não queria deixa-los sozinhos. A viajem era longa, porque teriam de fazer quase dezanove quilómetros. A Marquinha ia à Praia, mas o João não, o João a acompanhava apenas uma parte do caminho, talvez um ou dois quilómetros.

A Marquinha chamou as amigas, elas não responderam. Sabiam que ela estava a fazer fita, fazia parte do jogo. Ele a pegou. A disse que havia chegado o momento.
- …Ou me dizes sim ou não te largo!
- … Não, não e não… - Disse a Marquinha.

Ele não foi na cantiga, não a largou. Pegou-lhe na mão. O João lembra-se como se fosse hoje. A Marquinha abaixou-se à procura de algumas pedrinhas. O Coração de João alegrou-se. Imaginou o que ia acontecer. Sabia o ritual. A Marquinha endireitou-se com três pedrinhas na mão e atirou uma a uma contra o peito do João dizendo:
-Te quero…….., te quero…………, te quero !

Estava cumprida a tradição para o primeiro acto. Haveriam mais cenas no futuro, mas o primeiro acto terminava ali com te quero, te quero, te quero…Sabia que nem um beijo iria conseguir se não roubasse. Rapidamente abraçou-a e beijou-a. Ela, a Marquinha ruborizada e envergonhada fugiu apresada. Ele disse, já enquanto ela se afastava:
-Venho te esperar aqui, logo a tarde!
-Sim! – Respondeu ela já longe.

Satisfeito e alegre, ele regressara para ir trabalhar. Ela a Marquinha juntara-se às colegas e caminharam rumo a Praia. Ambos ignoravam que estavam a ser espiados desde início pelo Joaquim.

Joaquim gostava da Marquinha, mas sabia que Marquinha tinha um fraco por João. Ele morava noutra ribeira, mas a algum tempo que vinha a espiar a Marquinha, na esperança de poder ter algum favor por parte dela. Com o sim que ouviu não restavam muito mais esperanças, senão fazer o que devia ser feito.

O João, hoje velho e desdentado, sentado a porta, com o cachimbo apagado na boca, engolindo o indigesto ar fedorento de tabaco que ele mesmo ainda cultiva ao redor da casa, revê como num filme, mais uma vez, aquele dia que marcou profundamente a sua monótona vida de jovem agricultor.

Lembra-se, como se tivesse sido ontem, a felicidade que sentiu quando deixou a Marquinha e foi tomar o pequeno-almoço reforçado antes de ir trabalhar. Lembra-se que ia a imaginar o dia em que mandaria seus pais pedir a Marquinha em casamento. Imaginava tudo, titim por titim.

A Marquinha haveria de lhe dizer que no próximo sábado era boa data. Ele informaria aos pais. Os seus pais falariam com os pais da Marquinha. Informariam que iriam pedir oficialmente as mãos da Marquinha. O teatro estaria encenado e sem possibilidades de falha alguma. Chegaria o sábado escolhido.

No sábado escolhido, os seus pais iriam. A Marquinha que já havia cochido e pilado o milho. Feito xeren, cuscus, massa e mais iguarias. Tudo para uma grande festa. Mal visse a delegação a subir a difícil ladeira que dava acesso a sua casa, iria afastar. A Marquinha ficaria longe e acompanharia tudo à distância.

Os pais da Marquinha iriam fingir que nada sabiam. Surpresos com a visita, que muito os honrava, mas não viam como a sua criança pudesse estar a pensar no casamento, ela a Marquinha que ainda ontem usava fraldas. Devia ser engano.

Bem,… por via de duvidas, seria melhor que fosse a desavergonhada a confirmar. Iriam chamá-la. Chamariam várias vezes para depois ela aparecer cabisbaixa. A Marquinha iria confirmar que ele o João andava há muito atrás dela, mas ela nunca lhe havia dado alguma esperança.

-Se não tivesses dado, eles não estariam cá! – Diria a mãe toda imperiosa e triste com tamanha ingratidão por parte da filha.
Ela baixaria mais a cabeça, pareceria que quereria beijar o chão. Não responderia nada!
-Diga lá, queres ou não casar com ele? - Tornaria a mãe da Marquinha, a Marquinha continuaria em silêncio. - Falas ou não falas? Posso dizer que não queres?

-Sim mãe, fui eu que mandei! – Diria a Marquinha tão baixo, tão baixo, que só se perceberia, porque todos já sabiam a resposta e a Marquinha também já sabia que quanto mais baixo, mais respeitada pareceria aos olhos da futura família que estava a arranjar! Seguiria o momento de choro por parte da mãe da Marquinha pela ingratidão da filha e por parte da Marquinha pela incompreensão da mãe.

Os homens assistiriam impávidos e serenos à espera da cena seguinte. A nova mãe, ou seja a mãe do João iria acariciar e acolher nos braços a nova filha ou seja a Marquinha. Seguiria a fase dos sermões e regras de namoro, com mais e menos restrições. Por fim o almoço e a recepção digna do momento.

Recorda com nostalgia o dia que foi o mais pequeno de trabalho e o mais longo de ansiedade. Trabalhou e não sentiu o peso da enxada. Não sentiu o peso da enxada mas sentiu que estavam quase parados os ponteiros do relógio.

Por fim chegou a hora. À tardinha saiu e foi ao ponto combinado esperar a sua amada. Esperou e desesperou. Ela não apareceu.

O Joaquim teve a certeza que havia perdido a batalha. Sabia que se não agisse rapidamente podia ser pior. Chamou os amigos e ficaram à coita. A Marquinha chegou antes da hora prevista. Normalmente chegavam da Praia ao escurecer. Mas desta vez as meninas chegaram antes das quatro. Sabia que ela ia a casa e arranjaria alguma desculpa para ir ao encontro do João. Escondeu-se e esperou.

A Marquinha estava alegre. Falou com as meninas até chegarem à Praia. Estava alegre, irradiava felicidade, as amigas ficaram contagiadas. Riam e falavam sem parar. O negócio correu bem, muito melhor do que o esperado. Uma hora depois já tinham tudo vendido. Regressaram muito mais cedo também. Antes das quatro já estavam nos Órgãos. Cada uma na sua casa. Estava ansiosa. Queria ver o João. Gostava muito dele. Já deviam estar a namorar se não fosse a tradição que exigia que a mulher fosse difícil.

Imaginou como seria o casamento. Iria entrar na igreja toda vestida de branco. As amigas cheias de ciúmes iriam vê-la. Os olhos estariam salientes e inchados de ter passado a noite toda a chorar. Mas iria chorar de verdade. Queria ser feliz, muito feliz. A felicidade e o choro são sentimentos directamente proporcionais. Era assim.

Estaria sentada e rodeada de mulheres mais velhas e vividas, ela já tinha assistido algumas vezes. As mulheres iriam descrever a vida difícil que iria ter. O calvário que seria o casamento. Quanto pior for descrito e pintado o quadro da sua vida futura mais profícua e feliz seria. Ela estaria preparada para o pior e contentava-se com o que a providência lhe proporcionasse.

Mal começara a escurecer pegou na lata e disse que ia apanhar água. A mãe quis faze-la desistir. Estava cansada, acabara de chegar da Praia. Ela não desistiu, disse que o pote estava vazio. Que ia num pé e voltaria noutro. Foi e só voltou meses depois.

O Joaquim e os amigos esperavam-na na estrada. Mal ela ia a passar saíram e pegaram-na. Colocaram-na no ombro e levaram-na. Prenderam-na dentro de casa durante meses. Ela nunca se conformou e cada dia que passava odiava mais o Joaquim. A saudade do João. O amor não vivido do João a fazia odiar cada vez mais o Joaquim.

O amor forçado, amarrado e unilateral do Joaquim só piorava mais a situação. Foi na dor e na tristeza que a Marquinha se engravidou. Presa no pé da cama, feita de quatro estacas de madeira enterradas ao chão. Ia ser mãe no cativeiro. Não tinha outro remédio senão ser mãe. O Joaquim ao vê-la grávida, soltou-a.

Dias depois deixou de a ver, bastou um descuido que ela regressou aos Órgãos, grávida, infeliz e sem honra.

O João estava noivo da Bianina, uma das suas amigas. Não amava Bianina, amava Marquinha, mas ia casar com a Bianina. Não queria casar-se de burro e com uma das pernas da calça rolada. A Mariquinha jamais casaria, teve um filho, o filho do Joaquim. Não casou nem com o João nem com mais ninguém!

Mas o amor de João por Marquinha e de Marquinha por João foi eterno, hoje ele não se recorda de mais ninguém, mas de Marquinha continua a ter a mesma saudade!