Mostrar mensagens com a etiqueta Nº264-05/03/2015. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Nº264-05/03/2015. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 6 de março de 2015

Jornal Raizonline Nº 264 de 5 de Março de 2015 - Coluna Um - Os períodos eleitorais - Por Daniel Teixeira


Jornal Raizonline Nº 264 de 5 de Março de 2015

Coluna Um - Os períodos eleitorais - Por Daniel Teixeira

Os períodos eleitorais são para mim um verdadeiro paradoxo quando atingem aquela febre que já se vai tornando habitual nas suas pontas finais. Penso, por aquilo que leio e ouço que o fenómeno é geral, que existe em todos os países, mas não deixa de ser curioso que o processo tenha sido adoptado nos mais diversos quadrantes, também um pouco resultado do facto das campanhas terem períodos determinados no tempo, com princípio, meio e fim.

É no fim, quer dizer nos últimos meses antes das ditas eleições e nos últimos dias antes da sua realização que os ânimos aquecem, quer por necessidade de dar resposta aos chamados adversários ou por iniciativa própria que os diversos intervenientes no jogo ajustam o vocabulário, aumentam o volume da sua voz e utilizam os meios que julgam necessários para conquistar pontos aos adversários, baseados em análises resultantes de sondagens, em criteriosos estudos que dividem o eleitorado em faixas etárias, faixas de género, faixas de condição económica, faixas de intenção de voto, de utilidades de voto, enfim, a terminologia daria para encher pelo menos algumas páginas.

Faz-me sempre lembrar os jogos de futebol em que uma equipa, que em 90 minutos de jogo não consegue meter um golo na baliza adversária, protesta, pede cartão amarelo, reclama contra as lesões dos adversários que por princípio são sempre fingidas, nesta perspectiva, nos minutos finais e em que o outro, o adversário, aproveita o tempo para fazer as substituições que não fez porque não achou necessário mas que agora já acha que são necessárias ao cair do pano, faz uma falta ou outra desnecessária, enfim, empatam-se as coisas na perspectiva de um e aceleram-se as coisas nesses tais minutos finais na perspectiva de outros.

Um governo, ou qualquer órgão institucional eleito tem pelo menos 4 anos para mostrar aquilo que vale e se vale alguma coisa, as oposições têm também 4 anos pelo menos para mostrar aquilo que acham que o outro não vale, mas tudo se resume (dizer resumir é excessivo) aos tais minutos finais (que podem ser duas semanas, dois meses, ou um pouco mais).

O matraquear ou metralhar do pobre eleitor é um verdadeiro abuso e tudo se conjuga para que as ideias mais ou menos guardadas durante os tais 4 anos (exemplo) sofram uma reviravolta ou se mantenham sem reviravolta, consoante os interesses e os intervenientes.

Descobrem-se» nestes períodos os mais diversos escândalos, sejam eles financeiros sejam eles políticos ou mesmo de outra índole e no final, quer dizer, no dia das eleições, no dia do depósito efectivo do cartãozinho na urna, pelo menos uma percentagem razoável dos eleitores vota, não com a consciência, mas com a percepção algo abstracta de que o seu voto vai no caminho certo ou é «dado» a quem de facto o merece mais ou o desmerece menos.

Afinal será que o eleitorado anda mesmo às aranhas ou que não sabe analisar os comportamentos a longo ou a médio prazo e formar opinião ou será que tem a opinião tão frágil que um único ou vários acontecimentos pontuais faz (em) virar a balança do seu pensamento, será que os últimos minutos são determinantes para a formação e consolidação dessa mesma opinião, ou será simplesmente, o mais provável na minha opinião, que o eleitorado, de uma forma geral, precisa que lhe digam mesmo de uma forma bem explícita em quem deve votar?

O facto de se fazerem grandes obras, de se inaugurarem outras grandes ou pequenas, até por várias vezes a mesma como já tem acontecido, terá de ser assim tão determinante para a formação de uma opinião de voto?

Afinal o resultado do voto, até que as coisas mudem, o que não convém absolutamente nada diga-se (incomoda-me verdadeiramente os países que andam em eleições quase mensais) o resultado desse voto não é para durar os tais exemplares 4 anos e não deveria ser estudado durante os anteriores 4 anos todos e não nos últimos 4 minutos da partida?

É dificil pensar em termos de estabilidade para se fazer alguma coisa quando durante quatro anos, pelo menos,tivemos oportunidade de saber que   por exemplo em Portugal os Presidentes da República são eleitos por mais um mandato, que os governos andam sempre vai não vai sem saber se ficam se vão embora e quando mudam não mudam mesmo, enfim...

As Câmaras Municipais, depois de atravessado um período de longas (e quase eternas) repetições eleitorais, têm ultimamente mudado globalmente a um ritmo acelerado, as administrações dos Institutos Públicos mudam também aceleradamente de acordo com a camisola governamental eleita, e  existem milhares de cargos de nomeação que caem ou não caem depois das eleições, enfim...tudo isto é conhecido em cada um dos períodos em que regem os eleitos, quatro anos nuns casos ou mais noutro caso.

Enfim é um rol quase interminável que leva a esta sensação de inconstância, de fragilidade estrutural, de trabalho de cada um por si (e para si) que os eleitores portugueses vão sufragar neste ano que corre e muitos deles vão fazê-lo instavelmente durante os últimos minutos do jogo como tem sido usual.

O Churchil dizia que a democracia era o pior dos sistemas políticos excluindo todos os outros seguindo a ideia geral deixada por Rosseau no que se refere à representatividade. Ora agora que só localizadamente existem outros sistemas talvez seja bom aperfeiçoar esta mesma coisa a que chamam democracia porque assim é mesmo desesperante.




AS DEBULHAS - Por José Francisco Colaço Guerreiro


AS DEBULHAS - Por José Francisco Colaço Guerreiro

Recolhido em Património

 
Em volta dos montes e de roda das vilas, buscavam-se lugares planos, com o terreno firme, de preferência rochoso ,onde se faziam as eiras. As primeiras eram de planta circular , maiores ou menores ,conforme a abastança e o tamanho da corda que prendia as bestas, forçadas a andar de roda vezes sem fim para pisar o cereal, a fava e o grão por descascabulhar.

 Se as estrumeiras medravam perto das arramadas e das cavalariças, chamadas «casinhas», mesmo juntinho ao casario e para onde desembocavam duas aberturas feitas nas paredes, as eiras, ao contrário, iam-se moldando ,marcando no chão de ano para ano, arredadas da porta .

 Tinham de ficar em sitio descampado por mor de apanharem bem o vento e com a orientação devida , para não encherem as casas de palhuço quando as forquilhas de pau se levantavam ritmadas, oferecendo a colheita à maré.

 Assim, foi durante séculos, mas assim só é ainda, nalgum ponto mais recuado da serra, onde as máquinas se temem a entrar e donde os viventes se recusam a sair.

 Depois das debulhas feitas à custa de braço e pateada, entrou em cena a tecnologia. Surgiram as primeiras máquinas debulhadoras movidas à força do vapor, verdadeiros encantos de potência e desembaraço que pelo modo como aliviaram a faina, ganharam a simpatia das gentes. Eram miradas na passagem e admiradas no desempenho.

 Tornaram-se vultos de ferro e simpatia , motivos de admiração e de algum afeto, a pontos de serem designadas por um nome próprio . Era a «pintassilga». Era a «caminheira». Eram outras mais que de caldeira acesa percorriam as eiras das freguesias.

 Anos depois, vieram as debulhadoras fixas mais ligeiras, de cor amarela no seu tabuado.

 Ceifado o pão e depois de enroleirado, era carregado para as ditas eiras. Só para as maiores que se enchiam de medas , dispostas conforme a variedade do cereal e segundo a dimensão da labuta.

 Na vila, havia debulhas no largo da feira e na eira da máquina, para onde os seareiros transportavam em carros e carrinhas a pequenez das suas colheitas.

 Mas as debulhas tinham grande encanto. Faziam soltar o sortilégio da abastança mesmo que esta fosse curta. Representavam o momento efetivo da devolução pela terra, em forma de semente, do trabalho nela investido em canseiras múltiplas.

 Contavam-se as fundalhas. Corriam nas conversas as finezas e as desgraças de todas as searas. Este fundiu bem, aquele nem dobrou a semente. Foi por mor da chuva, porque não espigou, pegou-lhe a aforra, não foi bem tratado, faltou-lhe o guano, a sementeira traçou-lhe logo um mau fim.

 E dantes os anos, muitos anos a fio, eram ruins. Feitas as contas, não sobrava nada.

 Mas apesar disso, as debulhas tinham o tal sortilégio de provocar encanto e de desenvolver uma mística de alguma paixão bucólica.

 Esperava-se com frenesim a chegada da máquina e contavam-se os dias que faltavam para a ver aproximar-se , lentamente, bamboleando-se, de tombo em tombo ,pela estrada velha. Lá vinha toda aquela arrearia ,toda aquela gente, todo o movimento que o pessoal da máquina ,durante dias, gerava no monte sempre sossegado.

 Encostavam a debulhadora à primeira meda, descarregavam a torgia, acilhavam, travavam os rodados de ferro, preparavam tudo com o preceito sabido.

 Diante da máquina, à distancia da correia de lona grossa, tomava posição o trator que depois, dias a fio, fazia zunir as engrenagens. Mais afastada ainda, ficava a barraca, melhor dizendo, um toldo, feito de sacas esticadas atadas nas extremidades de quatro paus. O bastante para fazer sombra. Juncava-se o chão para dar fresquidão e por ali ficavam as quartas de água e uns banquinhos. tipo mochos, onde o pessoal vinha desencalmar quando era rendido.

 O tratorista, andava por ali, para observar o maquinismo. O saqueiro, aparava a semente, despejava os alcofões dos desperdícios, contava os sacos e tirava a maquia. Lá em cima, mais perto do sol ,andavam os fiscaleiros e os alimentadores, tentando atafulhar a goela larga da debulhadora. Mas ainda cá em baixo, mais perto do inferno, sofria o homem da munha, coberto de pó, enroupado com sacas, empapado em suor, aparando os restos que o fagulheiro deitava.

 E à sombra do toldo juntavam-se também os cães do monte, um gato ou um galo que o pessoal da máquina gostava de trazer.

 Como eles, os moços procuravam o fresco do verde. Com a junça e na hora do descanso os homens mais habilidosos faziam artes. Tranças, cestinhos e bastões que pareciam ir nascendo de uma magia qualquer.

 De quando em vez, feita certa conta de sacos, o saqueiro tocava um apito para a rendição.

 Enquanto as medas minguavam iam nascendo e crescendo os cavalos e depois, as serras de palha .Eram os trabalhadores da casa, com a de cabeça tapada por um capuz de sapec que iam arrastando a palha com um rodo puxado por uma parelha de muares para o sítio apropriado.

 E à noite, depois da ceia, ia-se dormir à eira, ao relento, embrulhados na palha caso refrescasse.

 Passados dias, o monte voltava a esmorecer, quando era chegada a hora de vermos partir ,bamboleante ,aos tombos ,pela estrada velha, a máquina debulhadora amarela e no pó da estrada, ficava por um tempo, o rasto de uns dias diferentes que irradiavam a magia da abastança, mesmo que aparente.



Rejeição Moçambicana a Albinos - Texto de Dr. Albee


Rejeição Moçambicana a Albinos - Texto de Dr. Albee

 

 Em alguns países os albinos são «caçados» como bichos, sofrem amputações de braços ou pernas para fins supersticiosos, sobretudo porque se acredita que o sangue deles ou o cabelo ajuda a acumular riqueza. Na pior das hipóteses, eles são mortos supostamente porque a sua presença numa família é presságio de grande azar. A sociedade continua a repelir violentamente as pessoas nessa condição de natureza genética.

 Na província de Nampula, o @Verdade encontrou Espírito Costa Amisse, de 18 anos de idade, na rua, onde vive há anos por ter sido rejeitado pelos pais porque é albino. Ele é um jovem igual a tantos outros, porém, devido à ausência completa de pigmento na pele, várias pessoas o olham com desdém e acreditam que não morre, mas sim, desaparece.

 Espírito sente-se um homem que não pertence a nenhuma raça e que é desprezado pelos outros indivíduos, desde que a mãe o renegou por causa do albinismo quando tinha apenas um ano de vida. «Estou sozinho e pensava que mais ninguém é como eu por ter sido rejeitado pela minha mãe». Nessa altura, o nosso interlocutor vivia no distrito de Moma (Nampula), tendo mais tarde passado a residir no distrito de Alto Molocué, na província da Zambézia, até aos 10 anos de idade, com o pai.

 Quando atingiu essa idade, o jovem, que frequentava a 3ª classe, disse aos avós que gostaria de conhecer a progenitora e pretendia morar com ela, em Moma. O seu pedido foi aceite. Contudo, chegado ao local, Espírito não pôde continuar a frequentar a escola e a sua vida mudou drasticamente porque os parentes da sua mãe o rejeitaram alegando que não podiam conviver com um albino dentro de casa. Aliás, para a família materna de Espírito quem convive com um indivíduo com falta de pigmentação na pele traz ao mundo um ser humano igual.

«Quando cheguei ao distrito de Moma, a minha mãe foi avisada de que não receberia nenhuma visita de familiares devido à minha presença», disse o jovem que nos assegurou que durante os cinco meses em que viveu com a mãe não houve visitas, para além de que as crianças eram proibidas de brincar com um albino.

 Contrariamente ao que acontece na Tanzânia, onde existem 170 mil albinos, Moçambique ainda não tem um levantamento estatístico sobre a incidência do albinismo na população e o preconceito prevalece. Há relatos de pais que vendem os seus filhos albinos. Entretanto, refere-se que em Africa a vida tem sido difícil para esse grupo de pessoas, principalmente na Tanzânia, onde as pessoas com falta de pigmentação na pele são em número 15 vezes maior que a média mundial.

 Cientificamente, ainda não se sabe por que razão aquele país possui índices tão elevados de albinos. Todavia, acredita-se que a Tanzânia e a Africa Oriental podem ser o berço da mutação genética responsável pelo albinismo. Refira-se que ainda naquele país já houve uma demanda assustadora por albinos porque se acreditava que a ingestão dos seus órgãos genitais secos elimina a SIDA.

 Por isso, esses cidadãos eram mortos e esquartejados supostamente para servirem de remédio. Lucas Mania, líder comunitário no bairro de Muatala, explicou que os albinos são pessoas diferentes de outras raças. Desde que reside em Nampula tem ouvido dizer que as pessoas com problema de pigmentação na pele nunca morrem, mas simplesmente desaparecem.

 O líder crê que quando uma mulher dá à luz uma criança albina deve, ao sair da maternidade e antes de chegar a casa, ser submetido a um ritual tradicional para que não volte a ter filhos com a mesma «anomalia». Antigamente, as mulheres que nasciam albinos eram mortas porque os seus filhos eram considerados obra de espíritos maus.


Os albinos são seres normais

Joselina Calavete, médica generalista no Hospital Central de Nampula (HCN), disse que a falta de pigmentação na pele é um problema genético sem «correcção» em Moçambique, mas não tem nada a ver com as interpretações que a sociedade tem feito.

 Segundo a médica, o entendimento que as pessoas têm sobre os albinos traz constrangimentos sérios para aquele grupo social, uma vez que se sente discriminado e excluído. O recomendável é que um albino use sempre roupas que o protejam completamente do sol e aplique produtos com o mesmo efeito na pele o tempo todo, resguardando os olhos da radiação solar.

 Refira-se que a agremiação que defende as causas e interesses dos albinos em Moçambique queixa-se do facto de nas províncias este grupo de pessoas continuar a aguardar meses a fio para ser observado por um médico especialista. Entretanto, na cidade de Maputo, o tempo de espera reduziu de dois a três meses para um dia a uma semana.

 O desamparo

 Quando se apercebeu de que era, cada vez mais, vítima de discriminação, preconceito, desprezo e afastado do convívio familiar, Espírito tentou recorrer ao comércio para sobreviver mas não teve sucesso. De Moma partiu para a cidade de Nampula à procura do irmão do pai mas, quando chegou ao destino, o tio já tinha passado a viver no distrito de Malema. Sem alternativa, o jovem sentiu-se desamparado e passou a viver na rua, enquanto procurava pela irmã que também reside naquela urbe. Ele levou um ano para localizar a casa da irmã no bairro de Muhala.

 Outra vez rejeitado

 A estadia de Espírito em Muhala durou somente dois dias. O cunhado convidou-o a abandonar o domicílio alegadamente por falta de espaço para acomodação. A opção foi viver na rua novamente.

 Em 2007, o Infantário Provincial de Nampula acolheu o jovem e matriculou-o na 2ª classe, mas a sua permanência naquelas instalações durou seis meses. Antes de terminar o ano lectivo, o nosso interlocutor foi levado de volta para a casa da mãe, no distrito de Moma, sem o seu consentimento. A convivência não foi das melhores, tendo Espírito deixado a residência para passar a habitar na rua mais uma vez.

 Espírito, deixado à sua sorte pelos parentes, disse que deseja voltar a estudar com vista a superar as dificuldades que enfrenta, algumas por causa do desleixo da sua família. Entretanto, ele está ciente de que na rua terá de batalhar bastante para conseguir concretizar os seus sonhos. O nosso entrevistado sobrevive da lavagem de carros na via pública, uma actividade que lhe rende entre 20 e 100 meticais por dia.

 Detido por duas vezes

O jovem a que nos referimos já esteve preso por duas vezes na cidade Nampula. Na primeira ocasião foi indiciado de roubo de um telemóvel numa das viaturas que estavam sob sua vigilância, e na segunda Espírito foi igualmente acusado de roubo de telemóvel e dinheiro num lugar por ele escolhido para passar a noite.




Pacatez - Conto de Daniel Teixeira


Pacatez - Conto de Daniel Teixeira


O suspense, ah, o suspense, aquela certeza incerta ou aquela incerteza certa de que algo vai ter lugar, que alguma coisa vai acontecer, seja como for e da forma que for é seguramente um atributo da mente humana que não tem nem pode ter explicação racional. Mas esteve ali comigo, naquele dia, naquela hora, naquele local.


Segundos antes eu era apenas uma pessoa sentada num banco de jardim, uma pessoa qualquer, alguém que procurava fazer passar o tempo, ou deixá-lo passar por mim, tanto me fazia.


Segundos antes : ouvia os pássaros a chilrear, o ruído das ramagens das árvores bandeando ao vento, as buzinas de carros e comboios lá ao longe, o chapinhar da água de encontro aos muros da doca, os gritos agudos das gaivotas e tudo, mas mesmo tudo,  parecia normal.


Depois veio aquela sensação estranha, aquele incómodo, aquele aperto no estômago, aquele acelerar da pulsação, aquela sensação incerta e mista de medo e de expectativa, e mais nada ficou normal dentro do meu pensamento: ia acontecer alguma coisa, eu sabia, sabia isso. Mas não sabia o que seria.


Contudo não demorou muito até tudo acontecer, poderia dizer felizmente porque para mim foi libertador, ou seja, libertei-me de uma sensação de indefinição para passar a viver uma situação que podia definir mas ainda hoje estou sem saber se na altura senti que uma situação foi melhor que a outra.


Ouvi o grito, um grito longo, um grito de socorro, estridente, talvez a cinquenta metros de mim, para trás de mim e virei-me quase instintivamente. Não vi nada. As ramagens que bordejavam a álea não me deixavam ver, ramagens espessas, recortadas. E era dali que tinha vindo o grito, aquele grito longo. Tentei levantar-me e correr, senti vontade de intervir, tentei, estou absolutamente certo de que tentei, mas as pernas não me deixaram.


Ouvi o grito de socorro de novo, e de novo, e de novo, estridentes, prolongados e depois apercebi-me que enquanto os gritos, aqueles gritos, iam durando o seu volume baixava e se ouvia como que um debater quase silencioso nos silvados e que finalmente quase tudo desaparecia como que num soluço para voltar a aparecer de novo, para voltar a ouvir-se de novo e para voltar a silenciar-se aos poucos.


Confesso, hoje posso confessar, agora que já passou algum tempo que foram as minhas pernas que não me deixaram sair do banco onde estava sentado e correr em direcção ao grito porque era isso que eu queria mas foi isso que eu não consegui.


Desde esse dia, quando me sento naquele banco de jardim lembro-me daqueles gritos de socorro sobre a origem ou a causa dos quais nunca ninguém disse nada. Eu vivo numa cidade pacata, as pessoas são pacatas, se alguma coisa aconteceu ali ninguém iria falar nisso.


Mas nunca mais senti aquela sensação de intranquilidade, aquela sensação estranha, aquele incómodo, aquele aperto no estômago, aquela sensação incerta e mista de medo e de expectativa e isso é bom, para mim é bom.


O que quer que fossem aqueles gritos, viessem donde viessem e fossem pelas razões que fossem, em cada um dos dias que lá me sento, logo que são passados os primeiros minutos sei que nada vai acontecer. Sinto isso.


(Série contos impopulares)

 


quinta-feira, 5 de março de 2015

Crónica por Martim Afonso Fernandes


Crónica por Martim Afonso Fernandes

Histórias da Vida Real

A Cadeia Pública

Em minha cidade natal tive vários amigos mais velhos, ou melhor, «com mais tempo de casa neste planeta!». Há amizades que conservo até hoje.

Alguns já mudaram-se para o piso de cima. É muito bom recordar!

A cadeia pública ficava próxima da usina de geração de energia, da lagoa de alimentação e circulação do sistema energético. O acesso à cadeia era pela rua principal, onde localizavam-se estabelecimentos comerciais e residências.

Como os moradores eram ordeiros, se o carcereiro dependesse do dinheiro da carceragem para viver, morreria de fome.

A cadeia já servia de moradia para o policial responsável.

O movimento do Porto era ininterrupto. De vez em quando algum marinheiro tomava umas graspas fora da conta e aparecia fazendo algazarra.

A polícia logo fazia o convite e o levava para curtir o porre e «ver o sol nascer quadrado». A ordem de descanso era de doze horas.

Quando era alguém de Imbituba, conhecido do delegado ou do policial, que desse algum apronto, era recolhido para que servisse de lição.

A cela tinha grade de madeira e era fechada por fora. Só o nome «cadeia» já impunha respeito ou medo.

Geralmente depois do preso completar umas duas horas de estágio, o policial chamava o detento e dizia:

-Vou dar uma volta. Lá naquele canto tem uma taboa solta. Levanta e sai pelo buraco, mas coloca a taboa no lugar. Some, porque se eu te pegar por aí, vais passar uma semana toda dentro do cubículo.

O detento atendia a ordem do policial, e para se ver livre, corria direto para casa. Como a saída da cadeia era pela rua principal, geralmente deduzia-se que aquele tinha sido preso. O pior era no dia seguinte agüentar as piadas e gozações dos amigos.

Porque sempre tinha alguém para perguntar:
 -Fulano, pagaste a diária do hotel do delegado? Que tal, a cama era boa? E o café da manhã?

Velhos e bons tempos, que não voltam mais.

Imbituba era uma cidade tão tranqüila, que quando o delegado queria falar com alguém que cometia algum deslize ou que descumprisse alguma lei, mandava um recado por um amigo ou pelo vizinho, para que o dito cujo comparecesse à delegacia.

Aconselhava-o paternalmente e prometia-lhe que se reincidisse na falta, da próxima vez a pena seria de uma semana no xadrez.

Assim a tranqüila Imbituba ia levando seus dias de paz e ordem.

O progresso veio lentamente, a imigração foi aumentando, a população crescendo.

Felizmente, o índice de criminalidade e o tráfico de drogas é mínimo para a expansão demográfica desta bela cidade de avenidas bem traçadas e de praias, ilhas e lagoas espelhados pelas águas límpidas e azuis do Atlântico.




Coluna Poética de Liliana Josué


Coluna Poética de Liliana Josué 

NA JANELA DA MINHA VIDA

Sentei-me à janela da minha vida
uma procissão de personagens desfilou
o sol desmaiava de vergonha
como tela desbotada, sem imagens.

Fechei os olhos e vi
beijos e bandeiras pejados de esperanças
cantares de primavera
viragens e crenças
mudança iminente.

A certeza na igualdade
foi minha companheira
como verdade certeira.

Corri, sorri, gritei, acreditei...
Ai meu horizonte de cor
meu suspiro tão fraterno.
Tudo nascia em verdade.

Acreditei no que fiz
por momentos fui feliz.


SUSPIRO

Lembro-me de ti
há já muito tempo
talvez do princípio do mundo.

Sei que te vi
como a minha salvação
da solidão que vesti.
Teu olhar deu-me alento
para me olhar bem no fundo.

Caminhei na tua direcção
confiante
num suspiro delirante.

Foste luz, paz, vida...
foste tudo.
Eu do meu recanto mudo
saí
numa onda de paixão
gratidão e confiança.

Mas tropecei no acaso
e sem saber como
caí.

 
VIVÊNCIAS

Por Liliana Josué

Eu penso que está sol...
Sinto que está sol...
tenho calor
estou mole...

E tu aí?
Como vives o calor?
Será que sentes ardor
ou apenas ignorância
dessa tua inconstância?

Eu vejo o mar azul, limpo.
E tu aí?
Vês o mar no seu total
no seu humor desigual
ora doce, ora fatal?

Eu dou-lhe a areia a namorar
e ele desfaz-se em espuma
deslumbrado.
E tu aí?
Sentes a areia pelo ar
namoriscando o seu mar
afagando como pluma
esse azul... tule adorado?

Todas as minhas vivências
são experiências
pessoais.
E as tuas?
São segredos tão iguais?
NAO

Eu sinto o meu existir
E tu aí?
Existes no teu sentir?...




Amanhã poderá ser tarde demais - Texto de Sá de Freitas


Amanhã poderá ser tarde demais - Texto de Sá de Freitas



(Texto escrito sem a consoante "Q")

 (O meu maior respeito às idéias não concordantes com a minha.)

 Sem dúvida todos trazemos, nas dobras da consciência, crostas e mais crostas pegajosas e virulentas de remorsos, formadas por erros cometidos voluntária ou involuntariamente, ao longo dessa vida ou de outras passadas.

Nessas crostas, muitas virtudes ficam retidas a espera da desobstrução a fim de se manifestarem no terreno de realizações mais edificantes.

Não há ninguém sem defeitos e ninguém sem virtudes. O nosso íntimo traz um misto de bondade e de maldade; de amor e de ódio; de alegria e de tristeza .

Na verdade, não passamos de frágeis e imperitos navegadores, reunidos no barco dessa existência e expostos ao mar furioso do mundo.

Conhecedores disso, não podemos nos deter nas curvas das lamentações, da autoculpabilidade e das preocupações exageradas, em relação a matéria, perdendo o tempo precioso e disponível à nossa regeneração, em benefício da nossa ascensão em direção a Deus.

O arrependimento, em si, demonstra a nossa vontade de mudança, mas não apaga os erros, pois as sementes plantadas germinarão e a colheita será inevitável, com atenuantes ou não.

Se esperarmos ser perfeitos para depois servirmos, nunca praticaremos a caridade, pois é a caridade o caminho único para buscarmos o nosso aperfeiçoamento. Fora dela, como disse Kardec, «não haverá salvação».

Muitas vezes a porta, a conduzir-nos a elevados ideais, fica emperrada pela ferrugem do egocentrismo, dificultando o nosso avanço em direção ao engrandecimento espiritual, onde há muito para se aprender e praticar. Se não arregaçarmos as mangas e não partirmos dispostos a escalar as montanhas das realizações beneméritas, jamais atingiremos o cume desejado dessa necessária elevação.

 Efeitos nulos terão nossas rezas, orações, preces e as nossas idas às Igrejas, se não cumprirmos o mais valioso de todos os Mandamentos: «Amai a Deus acima de tudo e ao próximo como a vós mesmos», pois religião alguma, sem boas obras, poderá levar alguém a um Plano melhor.

No Universo tudo se encadeia, tudo se completa, tudo se interdepende, no percurso da evolução do nosso mundo e dos seres. Todos os elementos cósmicos e terrestres, com a ação do tempo, se entrelaçam e misturam-se, num só amplexo , para o avanço inexorável do(ao) progresso. Sem essa coesão constante e ininterrupta de seres, elementos, ações e tempo, nada teria saído do seu estado embrionário.

 Contudo, o ser humano apenas vislumbra a sombra de um ideal maior, relacionado à espiritualidade, por estar com os olhos voltados exclusivamente aos interesses do desenvolvimento material, a visar tão somente a casa confortável, o emprego rentável, o veículo importado e a farta mesa, não se falando do conhecido «bem gozar a vida».

Não estamos no mundo para ficar eternamente. Nossas passagens já estão reservadas para a grande viagem, cujos dia e hora ignoramos. Com esse procedimento materialista, passamos a Vida Eterna a segundo plano. «Amanhã- pensam muitos - cuidarei da minha alma. Meu corpo tem prioridades, não estou ainda preparado para prestar a devida caridade. Preciso aumentar o meu capital para ter base sólida e aí então farei grandes obras em socorro aos necessitados.

Por ora a minha família está em primeiro lugar. Além disso preciso ser mais religioso, seguir um caminho certo, ser mais solidário, mais puro em minhas ações e isso farei somente depois de preparar o futuro dos meus filhos, da minha esposa e o meu também.»

Entretanto, nossas passagens estão reservadas, o transporte chegará inesperadamente , não temos bagagem e não há como adiarmos a partida. Tudo deixaremos na Terra, inclusive o nosso corpo. E agora? Tarde demais para o nosso espírito lamentar o tempo perdido e.....

SEM DUVIDA, VOLTAREMOS PARA NOVAS LUTAS, PARA OUTROS SOFRIMENTOS E APRENDIZADOS.




Se o Mundo Acabasse por Laé de Souza


Se o Mundo Acabasse por Laé de Souza


Aquele dia foi de alvoroço. Cruzei com um amigo acostumado a prosa, numa correria e recusou-se a conversa, alegando que não podia perder tempo, pois tinha algumas coisas a concluir antes de começar a escurecer. Espantou-se com a minha ignorância de que o mundo estava prestes a acabar. (Preciso encontrá-lo para ver o que tanto não podia ficar sem fazer.) Por preguiça não escrevi no momento. Se acabasse mesmo, seria desperdício de tempo. Mas entre a dúvida de ficar no meu canto a rezar e sair a indagar e a observar, venceu a curiosidade.

Uma mulher que tinha um caso antigo com um vizinho, convenceu-o a se levantar bem cedo e sem dar satisfação aos cônjuges se dirigiram a um jardim e com olhos fixos no firmamento, de mãos dadas, esperavam a chegada do Senhor.

Uns doaram bens numa atitude desesperada da busca do paraíso. Juliano vendeu esperanças e garantiu lugar privilegiado a quem tinha posses. Aos de menos recurso, por preço camarada um lugar mais na frente da fila. E faturou um troco legal.

Mães de santo cobraram fortuna para prorrogar o fim. O Pastor Queixada me garantiu que o mundo só não acabou como previsto, por sua intercessão e para que desse tempo a alguns irmãos se arrependerem. Mas me avisou que não vai dar para segurar por muito tempo, portanto, desapeguem-se dos seus bens.

Muitos rezaram, confessaram e se arrependeram.

Minha filha me fez perguntas que nunca ousou. Minha mulher me questionou umas coisas esquisitas, que prometi responder assim que escutasse a primeira trombeta tocar e visse os anjos descendo do céu.

Gumercindo não despregava os olhos do relógio e de nada resolveram os calmantes. Chorava que dava dó e pedia perdão à mulher por falhas e contou coisas que só se conta na hora da morte e morte certa mesmo.

Chiquinho abriu as gaiolas, soltou todos os pássaros e se escondeu debaixo da cama.

Roberval, devedor contumaz, fez mais compras e mandou que todos os credores viessem no dia seguinte.
 
MAS NÃO ACABOU.

Assim, por culpa de um tal de Nostradamus, o que ia até mais ou menos se encrencou. A mulher do Gumercindo retirou o perdão e foi para a casa da mãe com as crianças, não sem antes dar uma bofetada no sujeito e ameaçá-lo de proibir visitas aos filhos.

Chiquinho chora a falta dos pássaros e Roberval se esconde dos cobradores. A mulher com o vizinho tiveram que juntar as trouxas e fugir. Eu ando me esquivando da mulher, mas sinto que a qualquer hora ela vai me pegar de jeito e vou ter que responder àquela pergunta, e aí, não sei não.

Por tudo isso, Manelão se interrogou: "Ele erra na profecia e nós é que se ferra?
"


 



Mulher: Verônica - Por Abílio Pacheco


Mulher: Verônica

Por Abílio Pacheco



Para homenagear as mulheres por ocasião do dia oito de março que se aproxima, resolvi retirar das gavetas esta prosa poética que faz parte de um projetinho de livro nascido após a leitura de As cidade invisíveis, de Ítalo Calvino. A ideia: cada texto teria um nome de mulher com letra inicial diferente. Eis a letra “v”.


Verônica

Conheci Verônica numa noite de sábado já passada a meia-noite, portanto domingo eu deveria dizer. Não digo. A magia do sabath para mim só encerra pela manhã, aos raios do sol. E a magia dos encontros com essa mulher nada tem a ver com o dominus diem. Seus cabelos pagãos, seus olhos em brilho de Blimunda, seu rosto serenado em sisudez, seu corpo em talho de telha e em textura de camurça, seus seios suculentos e em formato de minhas mãos enconcheadas, sua língua com gosto de prazer procrastinado… toda ela tinha promessa de me deixar proscrito. Definitivamente Verônica era mulher de outras vias diversas da via sacra. O amor nela, por ela, com ela não combinavam com o domingo.

Não pense que de Verônica tive o retrato dado, compreendido, logo de primeira. Sabia que ela estava no 11º piso da torre, cujos andares tinham pé direito sobrelevado em metade. Só não sabia da rusticidade do prédio. Não bastava o esforço de argumento para convencê-la de me ceder endereço de sua morada. Nem o quanto ainda iria papear para poder conhecê-la mulher. Era preciso demonstrar fôlego. Pé ante pé. Degrau a degrau. Patamar por patamar. A torre tinha os elevadores defeituosos e, naquele dia, quebrados. Suspeito dela me ter chamado justo neste dia propositadamente. Era preciso vencer algumas provas. O controle da ansiedade era já por si a primeira e aqueles 363 degraus eram a segunda. No alto, é certo, estaria a terceira.

Como disse, não espere que dela tenha conhecido mulher já nesta subida. O esforço de subir degraus e três lances de escada por andar resultaram-me em gostosas dores em abdomên e panturrilhas. A porta, dissera-me, estaria apenas encostada. Foi o que lembrei já passando o sexto andar, quando os movimentos do corpo tornam-se de repetição irreflexiva. Subi o último lance de onze degraus no esforço de controlar respiração e caminhei até a porta de olhos fixos num post-it. Entre e esteja à vontade. Era um conjugado, ao primeiro passo era já possível dar conta do apartamento todo. Estava vazio.

* * *

Eu chegaria a ela naquela primeira noite apenas por acordes e melodias. Ainda semi-esbaforido sentei à borda da cama. Apoiei cotovelos em joelhos e depois derreei-me para trás sobre os lençóis aplainados. De olhos fechados, veio-me Verônica por uma voz em melodia a sair de mim mesmo quase como num canto em capela:


Verônica, me sinto tão só…
 Quero sua boca beijar… (*)

(*) são versos da canção intitulada “Verônica”, de Maurício Reis



quarta-feira, 4 de março de 2015

Coluna de Antônio Carlos Affonso dos Santos. - ACAS, o Caipira Urbano. - Ipês


Coluna de Antônio Carlos Affonso dos Santos.
           ACAS, o Caipira Urbano.

Ipês


Ipê Amarelo


Conheci os ipês na minha infância, numa fazenda de café no interior de São Paulo, Brasil. Extasiava-me aquelas árvores soberbas, vestidas de roxo, rosa, amarelo e branco. Conforme aprendi com os mais velhos, aquela era uma árvores sagrada, posto que o Criador havia feito um trato com ela (árvore) para que elas se vestissem de festa para mostrar que, a cada ano, a vida se renova no final do inverno e chegada da primavera. Os ipês roxo e o branco florescem entre julho e agosto; o amarelo e o rosa, no início de agosto e estendem-se até meados de setembro, quando anunciam aos trabalhadores do campo que já é hora de preparar a terra para mais um cultivo de arroz e de milho.

Mês de agosto. Inverno no seu último estágio. Os pastos ressequidos pela ação das geadas abrigava um gado magro e sonolento. Com pouco para comer nas invernadas e piquetes, os animais aguardavam com paciência bovina e eqüina, o pouco de ração de cana picada e milho «silado em trincheira», que o fazendeiro sovina nunca queria fazer na quantidade suficiente. A poeira levantava com os redemoinhos de sacis dos ventos mogianos, nas estradas secas onde os roceiros de pés descalços, rachados pela ação frio e da terra alcalina, caminhavam nos campos onde os ipês solitários, coloriam aquele resto de inverno, com sua melhor e mais bonita roupa floral estampada. O inverno, normalmente uma estação triste e cinzenta, vestia-se de alegria, com os ipês floridos...

 

Ipê Rosa


Quando somos crianças, «o tempo corre devagar». Naquela época, o tempo era diferente: moroso como as vacas que voltam no fim da tarde, com os úberes murchos, mas com esperança de rever seu filhote e quiçá comer uma iguaria, que tanto pode ser sal ou cana picada, ou silagem. Tudo andava ao ritmo da natureza, nos seus estágios e estações naturais.

E os bosques da Fazenda São José ficavam todos enfeitados por dezenas de ipês floridos. Havia o ipê roxo, o ipê rosa, o ipê branco, o ipê amarelo. Muitos anos depois, já na vida citadina, soube da existência do ipê verde, tão raro quanto bons leitores ou beija-flores vermelhos. Há um consenso no interior do Brasil que o ipê tem sentimentos iguais aos dos humanos: se ficamos concentrando nossa energia, focados na realização de um sonho, de repente tudo muda. E muda para melhor. Este «Ponto de Desequilíbrio», faz com quê até pessoas das quais nada se espera, num momento de superação, façam algo que nos surpreende, que vai além das previsões mais otimistas. 


 Ipê amarelo – Arvore Símbolo do Brasil


O ipê (amarelo) é a árvore símbolo do Brasil. O nome ipê vem da língua tupi, e pronuncia-se «ype», e significa «árvore com casca grossa». A designação científica do ipê é: gênero Tabebuia, da família das Bignoniáceas. A madeira do ipê é muito comercializada, especialmente para revestir pisos, devido à sua alta resistência. A casca do ipê roxo é considerada uma panacéia para muitos males, inclusive para prevenção contra o câncer. Como curiosidade, destaco outros nomes com que os ipês são conhecidos no Brasil: páu-d’arco, peúva, peroba-de-campos, ipê-amarelo, ipê, aipê, ipê-branco, ipê-mamono, ipê-mandioca, ipê-ouro, ipê-pardo, ipê-vacariano, entre outros.

Há uma lenda que conta a origem do ipê. Ela diz o seguinte:


«Naqueles tempos, o inverno estava nos seus últimos dias e todas as árvores da floresta estavam começando a florescer. Somente os ipês continuavam sem flores. Os ipês, cada vez mais se entristeciam com aquela situação. Eles eram os únicos que não tinham nem flores nem frutos.

Então, os amarelos canários da terra, percebendo a tristeza dos ipês, resolveram fazer seus ninhos somente nos galhos de um dos ipês. E ninhais também foram feitos pelas araras vermelhas e azuis e os sanhaços em outro; as garças brancas em outro, as siaciras em outro, e num outro ipê menos imponente, foram os periquitos, jandaias, maritacas e papagaios.

Os ipês ficaram muito felizes e resolveram pedir à Providência Divina que lhes dessem flores, como forma de agradecimento aos canários da terra e a todos os outros pássaros da floresta, pela alegria que tinham levado a eles.

No dia seguinte, dizem; sob o mais belo céu azul que aqueles sertões já conheceram, os ipês floresceram em várias cores. Cada um dos ipês se vestiu nas cores e matizes dos pássaros que os havia adotado. Quando tudo isso aconteceu, dizem, era agosto. E assim, desde então, os ipês têm florescidos em agosto.

Agora, a cada agosto, um vento frio sopra desde os sertões do Brasil: é a Providência Divina anunciando que ainda mais uma vez os ipês florescerão, cumprindo a aliança entre Deus e a Natureza. As cores dos ipês são, portanto, expressão de um milagre do amor de Deus pela natureza e pelos seres que vivem na Terra».
Ipê Branco


Mas eis que, de repente, esta árvore de outros espaços irrompe no meio do asfalto. Interrompe o tempo urbano de correrias, semáforos, buzinas e ultrapassagens. E eu tenho de parar ante esta aparição do outro mundo! Assim como aconteceu com Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, quando viu um arbusto pegando fogo, sem se consumir. Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: «Tira as sandálias dos teus pés, pois a terra em que pisas é santa». Acho que não foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde, sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o Escritor Sagrado estava certo. Também eu acho sacrilégio chegar perto e pisar as milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido sua vocação de amor.

Mas sei que no espaço urbano as coisas fluem de maneira diferente. O milagre da floração dos ipês é visto por muitos moradores dos centros urbanos como canseira para a vassoura. 

Ipê Rosa e Chão Sagrado

-Melhor o cimento limpo que a copa colorida, dizia uma minha conhecida.

Não raro sei de casos de pessoas que, por se cansarem de varrer as flores do ipê caídas no piso do quintal ou na frente das casas; atacam os ipês. Outras árvores são também castigadas pela ignorância dos humanos. Lembro-me de uma araucária numa rua ao lado do escritório no qual eu trabalhava; indefeso, com sua casca cortada a toda volta, e furos de broca. Meses depois, estava morto, seco. Restaram somente dois ninhos de bem-te-vis; um com filhotes e outro com ovos.

Numa manhã qualquer, passei sob o grande pinheiro seco e os dois ninhos estavam no chão, talvez arrancados por uma ventania, talvez derrubados pela mesma mão assassina que matou o pinheiro. Num dos ninhos estavam os fetos de dois filhotes, no outro as cascas de dois ovos quebrados. 



 Ipê Roxo


Mas no final, o que importa é o ritual de amor que o Criador faz manifestar-se no inverno. Ele espalhará sementes pela terra e a vida triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto, e as flores nas cores em tons roxo, rosa, amarela e branca, enfeitarão nossas cidades, ano após ano. Alguns poucos ainda verão os ipês de flores verdes, que tanto procuro e nunca vi.

Espero, ansioso e esperançoso, que um dia o ser humano respeite a natureza. A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza, e nos esperarão tranqüilos, todos os meses de agosto de nossa curta vida, por toda a eternidade. Todo ano temos um encontro marcado: no mês de agosto, devemos nos preparar para ver e sentir a floração dos ipês, pois ainda haverá de vir um tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia e os ipês serão os ícones desse «Novo tempo».



 Ipê Amarelo em Rua da Cidade de São Paulo - Brasil

 
PS: em setembro de 2008, recebi de uma escritora de um site no qual participo; imagens com as fotos de flores do ipê verde, as quais por pura imperícia as perdi. Também fui homenageado pelos curumins e cunhãs da Escola Primária de uma aldeia indígena da região de Dourados, MT.

Nota: O Raizonline conseguiu encontrar o Ipê verde que o autor refere acima. Ei-lo



Os pequenos brasileiros fizeram desenhos dos ipês floridos e repassaram aos seus pais, na aldeia, a lenda do ipê. Só isso me bastaria para que ficasse orgulhoso, mas a cada mês recebo algum tipo de manifestação sobre este texto. Agradeço a Deus por tê-lo feito, mostrado e contado.




domingo, 1 de março de 2015

Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio


Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio


Sobre o autor:

João Antônio (1937 – 1996), além de jornalista, foi um escritor do submundo, retratando nas suas obras os marginalizados – prostitutas, cafetões, porteiros, malandros – aos quais empresta a profundidade da filosofia e da teoria literária. Abandonadas pela vida, estas personagens periféricas surgem assim enaltecidas por uma linguagem de registo, simultaneamente contista e de reportagem, com frases curtas e estilo conciso. Malagueta, Perus e Bacanaço, o seu primeiro livro, que conta a história de três malandros paulistas, ganhou dois Prémios Jabuti e foi traduzido para oito idiomas.
 

«Há algum tempo que venho  afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando.

Chutar tampinhas que encontro no caminho. É só ver tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra.  Qual a marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a ideia de que para acertar, necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável, o entusiasmo desaparecer antes do chute. Sem graça.

Meu irmão, tipo sério, responsabilidades. Ele, a camisa; eu, o avesso. Meio burguês, metido a sensato. Noivo...

– Você é um largado. Onde se viu essa, agora!

É que eu, às vezes, interrompo conversas na calçada para os meus chutes.

Só um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar um chute digno para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa. Sobem. Não demoram muito, que ainda não sou um grande chutador. Mas capricho, porque elas merecem.

Minhas tampinhas... Umas belezas.»




sábado, 28 de fevereiro de 2015

Refugiados da Ucrânia

Refugiados da Ucrânia

Recolhido no Bloguer Livres Pensantes
 
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgvpwq_2A7v58h0Na5tKBMLwQbDIFfUolNL1UyuiUE9FkqDmMBE0wXI0cbUe7Pq1luccNP5SVky5xg5VwkqoXJv58A3CaW2nSS47TfBjk8JqHSD2A4gTFrE59TV_WWltbNustNX3amg1rU/s1600/Refugiados.png

Refugiados afegãos, paquistaneses, palestinianos, congoleses e somalis  num centro de detenção em Chop, no oeste da Ucrânia, em 2009.

Refugiados da Ucrânia

O Guantánamo do Este

Menos mediática que o Mediterrâneo, a Ucrânia é um importante ponto de passagem para a Europa dos refugiados que fogem dos islamitas na África oriental. Mas as condições de acolhimento são indignas, como testemunham os requerentes de asilo.
Por Lorenzo Ferrari

"Hasan Hirsi tem 21 anos e saiu da Somália aos quinze anos, depois de os terroristas de al-Shabab terem atacado a sua aldeia e assassinado o seu pai. Fugiu para Moscovo e, a partir de lá, uma rede de tráfico de humanos levou-o até Kiev. Hirsi demorou cinco anos – e cinco tentativas – para passar da Ucrânia para a União Europeia. Cada vez que tentava, era detido pelos guardas fronteiriços ucranianos, húngaros e eslovacos e passou cerca de três anos em centros de detenção e prisões ucranianas, onde afirma ter sido roubado, espancado e torturado pelas forças de segurança. Hoje em dia, revela ao Spiegel, refere-se à Ucrânia como “o inferno” e continua a ter pesadelos.

Apesar de a atenção dos meios de comunicação social e dos políticos se concentrar sobretudo nas rotas de imigração que passam pelo Mediterrâneo, Maximilian Popp observa, numa longa investigação publicada no site em inglês da revista alemã, que “até agora o interesse era limitado no que diz respeito à rota oriental e à saída de imigrantes como Hasan Hirsi”. Contudo, “no ano passado, com o conflito em curso na Ucrânia, centenas de imigrantes tentaram chegar à UE através da Europa oriental”.

Um dos principais cruzamentos da rota oriental situa-se na cidade ucraniana de Uzhgorod. Os refugiados passam, muitas vezes, meses à espera que as suas famílias lhes enviem o dinheiro necessário para seguirem o seu caminho. Em seguida, “em troca de várias centenas de euros, os traficantes ucranianos conduzem os imigrantes desde Uzhgorod até à Hungria ou à Eslováquia”, escreve Maximilian Popp.

Apesar de os Estados-membros da UE serem responsáveis por examinar os pedidos de asilo, “os países ao longo da sua fronteira oriental, como a Hungria ou a Grécia, ignoram muitas vezes as regras e enviam os refugiados para trás”. Foi assim que Hirsi, que queria apresentar um pedido de asilo, foi enviado várias vezes de volta para a Ucrânia.

Entre 2000 e 2006, a UE concedeu 35 milhões de euros à Ucrânia, para que esta reforçasse o controlo das suas fronteiras. Nos últimos anos, Bruxelas desembolsou 30 milhões de euros adicionais para construir e modernizar os seus centros de detenção e de acolhimento para imigrantes.
Um acordo assinado em 2010, entre a UE e a Ucrânia, estabeleceu que os refugiados que entram na UE através da Ucrânia podem ser reenviados para esta última.

“Ao longo da fronteira oriental da Europa, a externalização da política de asilo da UE é mais avançada do que em qualquer outra região”, escreve Popp, que acrescenta que, “aparentemente, Bruxelas espera que este sistema leve à diminuição do número de requerentes de asilo na Europa – sem chamar demasiado a atenção”.

Mas, já em 2010, a ONG Human Rights Watch tinha criticado a UE “por esta ter investido milhões com o intuito de deslocar o fluxo de imigrantes para longe da Europa e em direcção à Ucrânia, sem garantir que foram tomadas medidas suficientes para assegurar um tratamento humano dos refugiados.

Segundo o testemunho de Hasan Hirsi, os refugiados na Ucrânia são tratados de forma desumana. Um dos campos de detenção onde esteve detido, em Pavshino, era por exemplo conhecido como “o Guantánamo do este”. Nos campos, os imigrantes “eram mantidos num local escuro e não aquecido e os guardas recusavam-se a deixá-los utilizar as casas de banho.

Muitos refugiados urinavam em garrafas ou no chão e não recebiam nada para comer durante dias. “Estávamos encarcerados como animais”, afirma Hirsi. Durante os interrogatórios, os agentes batiam nos imigrantes e davam-lhes choques eléctricos. Segundo Hirsi, um deles disse: “agora estão na Ucrânia e não na Alemanha ou na Inglaterra. Aqui, não há democracia”.

O relato de Hirsi coincide com o de vários outros relatórios e testemunhos. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a detenção dos imigrantes na Ucrânia viola a Convenção europeia dos Direitos Humanos.

Teme-se que o tratamento dos imigrantes possa piorar devido à actual crise na Ucrânia. Tal como observa o representante do ACNUR, “o Governo de Kiev já se encontra totalmente sobrecarregado com a gestão e a protecção dos refugiados internos, cerca de um milhão de pessoas. […] Na verdade, não tem condições para se ocupar também dos requerentes de asilo”.

Voxeurop, Der Spiegel




Poesia de Virgínia Teixeira


Poesia de Virgínia Teixeira


Eclipse


O eclipse chega montado num raio que esgrima o céu vibrante 
Elas seguem-no com o olhar, as carpideiras de rostos taciturnos
O eclipse envolve-lhes o mundo num manto escuro num instante,
Abraçando com ferocidade o Sol com os seus tentáculos nocturnos

E elas olham, desamparadas, sem reter as lágrimas ainda no peito para derramar
Enquanto a escuridão se espalha, como uma sinuosa nuvem de pó negro
E tudo engole, num momento de terror, na senda de tudo apagar
Cada recanto. Cada rua. Cada casa. Cada memória. Cada alma.

As carpideiras ajoelham-se, gritando enlouquecidas um lamento visceral
Ai o Mundo! Todo o seu Mundo! Agora rendido, chamuscado, perdido…
O rio de lágrimas destas carpideiras condoídas abre caminho para o triste funeral … 

O caixão vai pesado de sonhos, de memórias, de risos e de esperanças
E elas, as carpideiras, que carregam com temor esse caixão de um Mundo traído
E lamentam-no, esse cadáver envolto em solidão, despido de todas as crenças…


Peregrina


Fitando a janela chora a cansada peregrina
Encosta desamparada a cabeça no mármore gelado
E murmura baixinho doridas preces, lamentando a sua sina
Sabendo que ainda não encontrou o caminho almejado

Vislumbra o amanhecer lá fora, e o céu a clarear de mansinho,
A noite que se despede preguiçosa com laivos de carmesim e dourado,
A Lua que boceja cansada e parece desaparecer no seu cantinho,
E o Sol que acorda resplandecente no seu lugar honrado

Suspira profundamente, a cigana, e fita cansada o seu bordão
Um último olhar para a neve lá fora, imaculada, ainda sem pegadas
Tão alta que parece envolver todo o mundo numa fofa nuvem de algodão

Campos brancos imensos que gritam a imensidão dessa terra já sem magia
E adiante, lá fora no ar gélido da madrugada, esperam por ela as incontáveis estradas
 Que percorre, sentindo a cada passo uma mais profunda nostalgia…


Prece


Um rio de lágrimas grossas e salgadas
Desce pelo rosto até aos lábios unidos em prece
Uma ladainha demente de almas atormentadas
O rosto marcado pela saudade que não envelhece

Querer é o castigo que carrega no peito
Esta ânsia que acorda e rouba o sono
Este desejo sem fim tão longamente insatisfeito
As saudades que caem como folhas velhas no Outono

Saudades que renascem com cada nova Primavera
Que não queimam ao calor abrasador do Verão
Nem conhecem Invernos que não sejam de espera

Falta de ti que não abranda nem  conhece fim
Corpo e alma sequiosos de ti, cegos de razão
Sonhadores do instante perfeito em que mergulhas em mim... 






 

Poesia de Pedro Du Bois


Poesia de Pedro Du Bois


CALMA

 
na calmaria cede espaço ao cansaço.

Descansa o silêncio e se desentende

em ritos descontinuados. Desavenças

e calçadas ressoam passos. Acalma

o vento. Reclama ao vento a passagem.

Impressiona o sono em ideias aleatórias

de descobertas e conformismos. No

dito recupera da razão o lídimo saber

sobre a calma na alma despossuída.

Em passos atravessa a hora e despede

do gerânio a flor inacabada. Gira o Sol

em retorno: o dia permanece na explosão

sintética da espera. A calma na calúnia

desdita arrebenta os sinos entre torres.

O desafogo na morte: calma arrebatada

ao espírito. Acalma o corpo ao começo.
 
(Pedro Du Bois, inédito)


 SOLO E ÁGUA


 O solo absorve

aqüífera água. O poço

                         cancela

                         o isolamento: corda

                                               caçamba.



Retiro o cesto e guardo a garrafa:

o vinho descansado

sugere o instante da embriaguez



                          o solo absolve

                          a água derramada.
 
(Pedro Du Bois, inédito)


 TER


 Na formação aleatória

                    e responsabilizada

                    acredito na suavidade da música

                    no encontro das esferas: a colisão

                    evitada céus estrelas combinadas

                    em esburacados espaços (negros)



na deformação trazida

aos olhares informes das cobranças

sei do absoluto mistério



nas informações transmitidas

ao menino criado em ordens

reunidas renuncio ao saber

das asperezas e me rendo: músicas

suavizam a finalidade na destruição

conformada das vivências.
 
(Pedro Du Bois, inédito)



http://pedrodubois.blogspot.com






Poesia de Mário Matta e Silva


Poesia de Mário Matta e Silva


NO SONHO DO BEM-ME-QUER

Vou na amplitude da tarde
colher a vastidão das planícies
ofuscar-me nos brilhos do sol
derramar por aí o meu próprio eu
tão insolente e tão irrequieto
no extravasar desse imenso rol
de deusas e de musas que caem do céu
aos trambolhões, em queda-livre
sobre o amontoado de fantasias
que vou construindo sem regras
nem preceitos, nem esquadros
dicionários, guias, mapas ou tratados
mas que guardo para mim ao fim dos dias
que se vêm misturar ao sono perturbado
para que nessas planícies feitas
de libertinagem, tenha por companhia
essa luz uniforme e cálida do dia
com os seus matizes e os seus perfumes
prenhes de papoilas e mal-me-queres
ensopados de ácidos estrumes
com raiva depositados no ventre terra
e a partir dela desabrocha a natureza
tão meiga, tão generosa, tão aveludada
que tanto se deseja e tanto se quer
pelo restolho árido de cada madrugada
febril a mitigar a sede em riacho puro
até que pela noite ribombe o escuro
num sonho morno feito de bem-me-quer.

5 de Agosto de 2014

MÁRIO MATTA E SILVA


BATIAM AS SEIS DA TARDE

Batiam a seis da tarde
Numa recepção à lua
Tarde fria de luz crua
Na despedida do sol
Vem outra noite a rebol
Batiam as seis da tarde.
 
Batiam as seis da tarde
Ténue tom crepuscular
Vem a noite pra te amar
Tão solene e tão vilã
Mesclado de romã
Batiam as seis da tarde.
 
Batiam as seis da tarde
No campanário sombrio
Vai de manso água do rio
Nas sombras do arvoredo
Cresce o pranto, cresce o medo
Batiam as seis da tarde.
 
Batiam as seis da tarde
Foi-se o dia radioso
Em teu corpo esplendoroso
Chora a criança num pranto
Sofrem velhos sem encanto
Batiam as seis da tarde.
 
Batiam as seis da tarde
Há um crime, uma traição
Acelera um coração
No amor, na euforia
Da praia vem maresia
Batiam as seis da tarde.
 
Batiam as seis da tarde
Ouvem-se tiros estridentes
Morrem à fome inocentes
E tudo cega o olhar
Perfumes, peitos a arfar
Batiam as seis da tarde.
 
Batiam as seis da tarde
Numa luta de emoções
Canalhas, agiotas, aldrabões
Declarações apaixonadas
Na espera das alvoradas
Batiam as seis da tarde.

22 de Janeiro de 2015

Mário Matta e Silva





 

Três Lendas


Três Lendas



Lenda do Manto de Santo António
 
À entrada da vila de Monchique existe uma imagem de Santo António com um manto azul bordado a ouro que lhe foi oferecido por uma jovem em agradecimento por o santo lhe ter arranjado casamento. Mas a verdade é que este casamento não foi tão feliz como a jovem esperava. O marido tratava-a mal apesar da gravidez anunciada da mulher.

Nasceu uma filha que cresceu entre discussões azedas até que aos oito anos a menina decidiu apelar para a bondade de Santo António pôr termo a tamanho martírio.

Ajoelhou-se junto à sua imagem e prometendo-lhe que nunca lhe faltariam flores, a menina sentiu após algumas horas que alguém lhe batia no ombro. Um homem estranho e atraente perguntou-lhe porque estava ali e pediu-lhe algo para comer e um sítio para descansar.

A menina levou-o para sua casa e enquanto que a mãe acolheu o visitante o pai resmungou pelo atrevimento da filha. O visitante dirigiu-lhe frases apaziguadoras, alertando-o para o facto de que estava a desperdiçar uma felicidade que estava perfeitamente ao seu alcance: a de viver em harmonia com a sua mulher e a sua filha.

Como que encantado pelas palavras do visitante, o homem ajudou pela primeira vez a sua mulher a preparar a refeição e sentiu que iniciava nesse instante uma vida nova.

Quando voltaram à sala, o estranho homem tinha desaparecido e no seu lugar estava uma pequena imagem de Santo António, semelhante à que se encontrava no nicho da vila.

A notícia do milagre correu a aldeia e a partir daquele dia aquela casa encheu-se de felicidade e ao santo nunca mais faltaram as flores.




A Moura do Castelo de Tavira

A noite de S. João é, desde tempos imemoriais, a noite das mouras encantadas. A tradição conta que no castelo de Tavira existe uma moura encantada que todos os anos aparece nessa noite para chorar o seu triste destino.

Os mais antigos dizem que essa moura é a filha de Aben-Fabila, o governador mouro da cidade que desapareceu quando Tavira foi conquistada pelos cristãos, depois de encantar a sua filha. A intenção do mouro era voltar a reconquistar a cidade e assim resgatar a infeliz filha, mas nunca o conseguiu.

Existe uma lenda que conta a história de uma grande paixão de um cavaleiro cristão, D. Ramiro, pela moura encantada. Foi precisamente numa noite de S. João que tudo aconteceu. Quando D. Ramiro avistou a moura nas ameias do castelo, impressionou-o tanto a sua extrema beleza como a infelicidade da sua condição.

Perdidamente enamorado, resolveu subir ao castelo para a desencantar. A subida através dos muros da fortaleza não se revelou tarefa fácil e demorou tanto a subir que, entretanto, amanheceu e assim passou a hora de se poder realizar o desencanto.

Diz o povo que a moura, mal rompeu a aurora, entrou em lágrimas para a nuvem que pairava por cima do castelo, enquanto D. Ramiro assistia sem nada poder fazer.

A frustração do jovem cavaleiro foi tão grande que este se empenhou com grande fúria nas batalhas contra os Mouros. Conquistou, ao que dizem, um castelo, mas ficou sem moura para amar...



Lenda das Três Gémeas

No tempo em que Silves pertencia aos Mouros, vinha o rei Mohamed a passear a cavalo quando encontrou um destacamento do seu exército que trazia reféns cristãos.

Entre estes estava uma lindíssima jovem, sumptuosamente vestida, acompanhada da sua aia, filha de um nobre morto durante o saque ao seu castelo. Mohamed ordenou que a nobre dama fosse levada para o seu castelo, onde a rodeou de todas as atenções, e lhe pediu que abraçasse a fé de Maomé para se tornar sua mulher.

A jovem chorou de desespero porque Mohamed não lhe era indiferente, mas a sua aia encontrou a solução: ambas renegariam a fé cristã apenas exteriormente para agradar ao rei mouro e possibilitar o casamento.
Passado algum tempo, nasceram três gémeas a quem os astrólogos auspiciaram beleza, bondade e ternura, para além de inteligência, mas avisaram o rei que este deveria vigiá-las quando estas chegassem à idade de casar. O rei não as deveria confiar a ninguém.

Passaram alguns anos e a sultana morreu, ficando a aia, que tinha tomado o nome árabe de Cadiga, a tomar conta das jovens. Quando estas eram adolescentes o rei levou-as para um castelo longe de tudo, onde havia apenas o mar por horizonte.

As princesas tornaram-se mulheres, mas embora gémeas tinham personalidades muito diferentes. A mais velha era intrépida, curiosa, porte distinto e de olhar insinuante e profundo. A do meio era a mais bela, de uma singular beleza e apreciava tudo o que era belo, as jóias, as flores e os perfumes caros. A mais nova era a mais sensível. Tímida e doce, passava horas a olhar o mar sob o luar prateado ou o pôr-do-sol ardente.

Um dia, contra todas as indicações do rei aportou perto do castelo uma galera com reféns cristãos, entre os quais se salientavam três jovens belos, altivos e bem vestidos.

Curiosas, as princesas perguntaram a Cadiga quem eram aqueles homens de aspecto tão diferente dos mouros. Cadiga respondeu-lhes que eram cristãos portugueses e contou às princesas tudo sobre o seu passado.
Como as princesas começassem a ficar demasiado interessadas com os jovens cristãos, Cadiga pediu ao rei que levasse as filhas para junto de si, sem lhe explicar a razão. Cavalgavam as princesas com o rei e o seu séquito a caminho de Silves quando se cruzaram com os três cativos cristãos que não respeitaram a ordem de baixarem o olhar.

As princesas quando os avistaram levantaram os véus e o rei, furioso, mandou castigar os cristãos insolentes. As princesas ficaram muito tristes mas conseguiram convencer Cadiga a arranjar maneira de se encontrarem com os jovens cristãos.

A paixão violenta desencadeada por aquele encontro foi alegria de pouca dura. Os três cristãos foram resgatados pelo rei português e iriam embora em breve. As princesas dispuseram-se a segui-los e a converterem-se à fé cristã antes de casarem com os nobres cristãos.

Cadiga rejubilava por conseguir resgatar para a fé que secretamente professava as filhas da sua ama. Foi então que a princesa mais nova se recusou a partir e a abandonar o pai.

Ficou para trás e, conta a lenda, morreu de tristeza pouco tempo depois.
A sua alma ainda hoje se lamenta e chora na torre do castelo nas noites sem lua.





Duo: Arlete Brasil Deretti Fernandes e Hildebrando Menezes


Duo: Arlete Brasil Deretti Fernandes e Hildebrando Menezes

A Criança que vive em mim.
.
Dei-me conta da criança que um dia fui,
Que vive em mim, e à qual sou grata,
Não poderia esquecê-la nem deixá-la morrer.
Foram e são tempos bons e inocentes
Sem as armadilhas perversas doutras idades
Que por vezes nos assaltam sem piedade

Presto-lhe a homenagem de meus sentimentos.
Sua evocação suaviza os difíceis momentos,
Com esta menina aprendo a viver.
E assim me faço intenso a evitar sofrer
Por não deixar o tempo ao espírito desaquecer
Tudo então ganha sentido e bela coloração

Observo através das recordações, nos jogos,
doces gestos, pensamentos e inclinações,
Isto revela-me a doçura da sensibilidade.
Que depois reponho e componho a saudade
Nos versos mais simples nas entonações
Entôo, canto e ouço as mais lindas canções

Ao recordá-la, enlaço-a à minha existência,
Ela me inspira, me alegra e me vêm sensações
Através de palavras e sorrisos inocentes.
Assim tudo ganha graça, sentido interessante

Porque eu sinto vibrar a força aqui presente
A impulsionar a alavanca que ergue a mente

A segurar atos, habilidades e pensamentos
Não quero cometer este crime simbólico
E por isto evoco a criança com satisfação,
Ela me dá a pedra de toque da emoção
Também não quero deixar morrer a jovem.
Que envelheço rápido a sentir vertigem

Minha existência é um todo, hoje sou do ontem
A continuação, e do amanhã a construção.
Assim minha vida não se perde em blocos.
São alicerces e sustentáculos da satisfação
Por isto admiro a simplicidade nos gestos,
Que formam o mosaico da autenticidade

Nas atitudes onde não tem lugar a maldade.
Vejo-me a colher flores com toda a liberdade.
Do natural ao transcendental das traquinagens
A subir em árvores de variadas espécies, a
Colher frutos e por insetos ser picada,
Chegando em casa com minha roupa rasgada.

Sentar-me ao colo de meus pais com carinho.
Dar e receber os afagos na maior ternura
No cheiro e no cafuné coberto de doçuras
Às vezes, sair disparada, a correr
da avó para não levar uma chinelada.
Tudo isso traz no seu bojo a eternidade

Na parreira colher deliciosas uvas, cultivadas
Com amor pelo meu pai. Sentir alegria de viver,
Sem tristezas, tudo era somente prazer.
E aqui nesse dueto eu revivi ao escrever
O menino, a menina que apesar de crescer
Esta ainda dentro de mim a me enternecer.