Crónicas e ficções soltas - Alcoutim - Recordações XV - Por Daniel Teixeira - Uma ronda sem casamentos
Dentro das minhas recordações das minhas estadias em Alcaria Alta e embora eu seja um defensor tão acérrimo quanto possível das tradições e da rememoração delas há algumas que ainda hoje me fazem sorrir pela máscara quase místico - iniciática que as envolvia comparando-as depois com a sua simplicidade vista agora e vista também logo na altura, ainda que jovem, neste caso.
A «Ronda» por exemplo é uma delas: durante alguns anos, talvez dois, e a partir da altura em que me encontrava já naquele limiar em que eu e os meus amigos íamos crescendo ainda que nos encontrássemos em patamares de um ou dois anos de diferença sendo eu mais novo fui assistindo com alguma frustração ao arranque nocturno destes meus amigos mais velhos para irem fazer uma coisa a que se chamava de «ronda».
Durante esses dois exemplares anos que referi e que não sei se foi exactamente esse o tempo passado nesta situação senti-me diminuído, segregado, ansioso por crescer, embora houvesse também um ou dois amigos na mesma situação que eu que acabavam por ficar a curtir as mágoas comigo. «Eles», os outros, iam para a ronda e não nos levavam e contavam-se então as coisas mais incríveis com alguma conotação apropriada à altura, beijinhos nas meninas, uns abraços mais apertados, enfim.
A efabulação dos maiores (dos que faziam já a ronda) traziam sempre detalhes cada vez mais picantes e silêncios cúmplices e a ânsia de crescer e ter assim direito a fazer a ronda, que era coisa para os mais velhos, para os quase casadoiros, foi crescendo e crescendo até que num ano, talvez tendo eu os meus 14 anos, fui informado a meio da tarde pelo grupo (para aí 10 ou 12 jovens no seu todo) que estava na altura de eu aprender umas coisas e que nessa noite ia com eles fazer a ronda.
Para além de ficar contente por obter assim sem esperar um direito a que ainda não me achava com...direito e quando pensava ter de penar mais uns anos sem conhecer o ritual da ronda fui também esclarecido sobre a necessidade de seguir os passos dos mais velhos que se resumiam praticamente a bater à porta quando elas estavam fechadas, a pedir licença para entrar e tirar o chapéu quando se entrava, a dar as boas noites primeiro ao dono da casa, a seguir à senhora e por fim às filhas e por vezes primas e vizinhas jovens e menos jovens que se juntavam para fazer serão tricotando na sua grande parte.
As moças aprimoravam-se nos arranjos pessoais, isso eu reparei bem, comparando aquilo que ali via com o que via durante as jornadas diárias de trabalho delas, pastoreando os animais, lavando roupa em pedras perto dos poços, regando nas hortas, enfim...eram verdadeiros trajes de quase saída, por vezes com os cabelos bem soltos nos ombros a contrastar com o apertado dos lenços diários.
Ora a ronda no início era uma coisa bem complicada afinal: os moços na sua grande parte eram tímidos e para fazerem a entrada real na ronda da base acabavam por entabular sempre uma conversa por vezes prolongada sobre os trabalhos da lavoura, sobre a chuva e o tempo até quebrar o ambiente e fazer generalizar a conversa. As moças, também tímidas e intimidadas pela presença dos pais e familiares mais velhos praticamente não abriam a boca ou respondiam por monossílabos quando inocentemente questionadas até sobre as cores das meias que tricotavam. Mas havia uma convenção implícita nas «jogadas»...
O dono da casa tinha sempre de ir tratar dos animais e saía ao fim de meia hora, mais ou menos e a dona da casa começava a cabecear com sono logo depois, altura em que as moças não se mostrando mais tagarelas para não fazerem barulho começavam então a olhar para os moços tendo cada uma um deles já escolhido de antemão.
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