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domingo, 16 de agosto de 2015

Laudelina - Por: Cecílio Elias Netto

 
Laudelina
 
Por: Cecílio Elias Netto
 
 Sempre estiveram abertas e viçosas as flores de Laudelina. Quem passasse pela antiga casa, na esquina da 15 com José Pinto de Almeida, poderia vê-las, ainda que protegidas por grades, pedindo para serem roubadas. Pois as flores de dona Laudelina Cotrim de Castro surgiram para ser roubadas por moços enamorados.
 
Eramos uma cidade sem grades, num tempo sem prisões morais e sustos. Em noites de serestas, as flores de Laudelina ficavam assanhadas à espera de quem as roubasse para levar às janelas das namoradas, noites de serestas sob céus enluarados.
 
Pulava-se a mureta do jardim num fingimento comum: ela fingia não ouvir passos mansos no jardim, nós fingíamos que a estávamos enganando.

Quando passo por lá, não consigo deixar de pensar nas flores de Laudelina. E, talvez por essa tristeza que surge não se sabe de onde ou porquê, dá-me uma vontade danada de pular o muro, roubar rosas em plena tarde chuvosa, sair caminhando em busca de um violão e, então, sentar na sarjeta e chamar os amigos para cantar modinha de coisas de amor.
 
Pois estão muito feios os nossos tempos e parece que vão enfeiando até mesmo o amor.
E, na tristeza repentina de uma tarde chuvosa, as flores de Laudelina pareceram aqueles «psius» que ela sabia dar quando se deparava com tolices das pessoas.

Um «psiu» que permanece no ar, diante das tolices que vimos fazendo nesse ir sem saber para onde, nesse vir sem ter para o quê voltar.

A casa que foi de Laudelina fizeram bater uma saudade danada dentro do peito, saudade ou nostalgia não consigo definir, mas sei que melancolia doída como garoa fina caindo em folha seca.
 
Não sei se foram as rosas, se a ausência de Laudelina Cotrim de Castro o que começa a machucar e a doer, pois essa sensação de ausência dói e machuca.
Laudelina preenchia todos os espaços vazios de Piracicaba e sabia afastar qualquer tristeza.
 
Ela não suportaria viver em tempos tão amargos, mas não fugiria deles. Laudelina mudaria os tempos, pois ela era mulher de mudar, de transformar, de mexer.
E se o jardim da casa dela ficou é porque ela permanece viva em algum lugar e não a estamos vendo. O «psiu», agora, entra pelo coração. E fica incomodando.

Temos que mudar, é preciso mudar. Mas não sei o quê, nem como. E, talvez, estejamos cometendo equívocos terríveis pensando que as mudanças venham apenas pela política. Não virão. Há certezas enraigadas demais e, portanto, obstáculos a quaisquer mudanças.
 
Talvez, os tempos estejam pedindo que, no lugar de tantas certezas, passemos a ter mais dúvidas. Princípios é que precisam de raízes, certezas, não. Como as plantas de Laudelina que, enraízadas, se renovavam em cada florada.

Aquela notável mulher sabia viver a experiência do novo sem precisar da novidade, Laudelina tinha a sabedoria de manter vivo o eterno sem deixá-lo envelhecer.
São abençoadas as pessoas que vêem a presença do infinito em cada instante da vida.

A casa de Laudelina era como que um marco de confiança para os estudantes que, indo e voltando – sabendo para onde ir, tendo para onde voltar – subiam e desciam a rua 15, uma passarinhada garrulando em direção às nossas escolas.

De dia, as flores de Laudelina encantavam, perfumavam. De noite, davam piscadelas para ser roubadas. Eram tempos, sim, de saber que as rosas não falam, que as rosas trescalam.
 
Bate uma saudade danada no coração ao ver que não há mais jovens ladrões das rosas de Laudelina, pobres rosas solitárias à passagem da multidão. Sei lá. Ouvi um «psiu» no coração. E deu saudade de Laudelina.
 
Bom dia


 

Fiel companheiro - Texto de Joaquim Nogueira

 
Fiel companheiro
 
 Texto de Joaquim Nogueira
 
 «… chamava-se Ben-Hur… não tinha raça certa e era preto… hoje o meu Black faz-me lembrar um pouco esse meu primeiro cão… eu tinha na altura os meus 5 anos e me lembro muito bem dele…
 
tinha a sua casota ao fundo do quintal junto aos galinheiros e ao pombal… (já naquele tempo o meu pai era columbófilo e de muito cedo a minha paixão pelos pombos se revelou que mais tarde, vim também a interessar-me pela modalidade)… servia de guarda mas de dia andava solto pelo quintal…
 
já contei no meu antigo blogue algumas histórias do meu actual Black mas sobre este meu primeiro companheiro ainda não havia escrito algo sobre ele… quando os meus pais saíam de casa e eu tinha de ficar, ele o Ben Hur ficava comigo dentro de casa…
 
então, inocentemente, brincava com ele e recordo que o seu corpo era maior que o meu… recordo que um dia a brincadeira me cansou e eu adormeci deitado no chão do corredor… ao meu lado o Ben Hur tinha-se deitado com a pata debaixo do meu pescoço e naquela posição ficara até os meus pais chegarem…
 
acordei com o rosnar do bicho… meus pais queriam pegar em mim mas o cão não o permitia… talvez dentro dele se travasse uma batalha: a quem obedecer?… Ao dono, meu pai, ou defender a posição do seu fiel companheiro que era eu?…
 
Recordo de me ter levantado e ao mesmo tempo ele se levantou também e se sacudiu, como é costume deles quando saem da água, como para desentorpecer os músculos que deveriam estar exaustos da posição ora assumida…
 
não tenho uma recordação muito fiel do olhar dele mas lembro-me do meu, dez anos depois quando ele morreu após prolongada doença e já cego não deixou de olhar para onde eu estava a ver os seus últimos momentos… não me via mas sentia-me…

quando tombou o focinho preto no cimento do chão, os meus olhos não contiveram as lágrimas… e, sinceramente, não sei porque me lembrei hoje dele, aqui e agora…
 
talvez porque o latido lá fora do meu actual Black me tenha feito recuar 50 anos no tempo e lembrar-me do meu primeiro cão…»
 
 


 

sábado, 15 de agosto de 2015

EXERCICIOS MENTAIS E SENILIDADE - Por Manuel Fragata de Morais


EXERCICIOS MENTAIS E SENILIDADE

in Memórias da Ilha

Por Manuel Fragata de Morais

Ao chegarmos à média idade, notamos que começamos a esquecermo-nos de pequenas coisas, pequenos acontecimentos e situações e entramos em parafuso, preocupados com a nossa memória que já não mais responde aos comandos tradicionais.
E uma reacção primária e normal, todavia se pararmos para pensar um pouco, cedo chegaremos a uma conclusão óbvia; a de que a memória, tal como o corpo, sem exercício, não funciona de maneira adequada e começa a mirrar, a tornar-se esparsa e espaçada.

O tema de hoje ocorreu-me ao pensar nos 86 anos que minha mãe em breve celebrará, e nos 81 anos que o meu querido amigo e confrade no esgrimir de palavras e ideias, o nosso Uanhenga Xitu, aliás de Agostinho Mendes de Carvalho ou, melhor dito, seu nome de kimbundu, celebrou há dias, com muito carinho de todos nós.

Ambos são pessoas activas e envolvidas, a minha mãe não tanto quanto o ti Mendes nas mesmas lavras, claro. Mas nas dela, é um prazer ver, desde que a memória não lhe seja muito solicitada. Se não, o caso vira prazeroso para todos nós, por ela não se dar por achada,

Li um programa, elaborado por uma americana, a senhora Kimberly McClain, que é uma espécie de guia prático, uma receita, para ajuda do refrescamento da memória, que consiste em exercícios práticos e simples, para que não passemos horas a indagarmo-nos onde é que o raio da chave da casa ficou, para onde é que fugiu o telemóvel, se desligámos ou não o gás da cozinha, culparmo-nos por não termos recordado o aniversário da Maricota, etc.

Esses exercícios são um pouco o que seria a aeróbica para o corpo ou, já que estou a falar de mais velhos, a ginástica sueca, ou a musculação soft do John Weismuller (vejam que já nem me recordo como se escreve), lembram-se?

E não há, hoje, qualquer sombra de dúvida que, para aqueles que se mantêm permanente e mentalmente activos, a senilidade é uma praga ainda bem longe. Perguntem aos mais velhos(as) que passam a vida a fazer palavras cruzadas, passatempos, a jogar xadrez ou damas, quebra-cabeças, a escrever, a desenhar e ou a pintar, a dançar kuduro ou a tarrachinha, a inventar engenhocas com os restos das latas e artefactos velhos e usados, ou a atazanar a vida de colegas quer no Parlamento quer no Governo com picuinhices que fazem muito bem à saúde mental.

E é claro que, numa sociedade como a norte-americana, crescentemente mais envelhecida e «engordecida» (a minha palavra preferida), com o mal de Alzheimer respandido, assim como com outros tipos de doenças mentais, esta preocupação com a memória, atirou a comunidade científica para pesquisas múltiplas, sobretudo no que refere ao scanning e mapeamento do cérebro, onde, com ajuda de alta tecnologia, já o esquadrinharam quase todo para aprenderem e entenderem o seu funcionamento, a fim de que o envelhecimento não signifique necessária e imediatamente uma questão de senilidade.

Aliando-se os exercícios mentais aos antioxidantes, como o selénio, a vitamina C e E, ou às ervas tradicionais, poder-se-á contribuir para um retardamento do processo da perda de memória e a proteger-se o cérebro.

Já é evidente que os processos para evitar-se o «engordecimento» (que me perdoem o bisar do termo, mas trata-se de amor à primeira vista) que leva às paragens cardíacas, como alimentação correcta, manutenção de um colesterol e pressão arterial baixos, exercícios físicos regulares, são os mesmos que protegem o cérebro, daí procurar-se saber se as mesmas drogas para o colesterol serão eficazes para a nossa matéria pensante.

A receita para a memória, que a senhora McClain utiliza, numa possível relação causa - efeito, inclui, entre outras coisas, uma dieta alimentar saudável correndo paralela a exercícios físicos diários, técnicas de relaxamento e exercícios de memória diversos.

Mesmo sabendo que os mais velhos(as), por tendência natural, são avessos a tudo isto que referi, aqui deixo o recado. Toca de exercitar, de comer bem, não em quantidade mas em qualidade se possível, e fazer exercícios mentais, como memorizar o que o vosso guarda-roupa tem lá dentro, por exemplo, ou quando é que viram o vosso neto tomar banho pela última vez.


IN MEMORIAS DA ILHA - CRONICAS

Publicada por FRAGATA DE MORAIS

http://www.literaturafragatademorais.blogspot.com/  



 

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Jornal Raizonline Nº 273 de 30 de Julho de 2015 - Coluna Um - Daniel Teixeira - Os anos da miséria


Jornal Raizonline Nº 273 de 30 de Julho de 2015 - Coluna Um - Daniel Teixeira - Os anos da miséria

Os anos da miséria

Viver em Portugal nunca foi fácil: basta ler alguns dos nossos clássicos, descontando aqueles que fizeram apologias em curtos períodos da nossa história, para ficarmos certos que umas vezes com razão outras sem muita razão, rara é a perspectiva positiva sobre o ser-se português em Portugal.

Camilo Castelo Branco, numa resenha crítica que faz sobre Camões, diz com o sentido de humor corrosivo que se lhe reconhece, que não se quer, na nossa literatura, um Camões sorridente, feliz, quer-se um Camões torturado pela desgraça, um sofredor. A ilha dos amores, esse milagre camoneano vive algures num canto recôndito do longo poema: não tem quase direito a referência.Mas já a morte da pobre Inês enche referências e ensaios aos milhares.

Em certo sentido, com mais humor ou menos humor, uma parte substancial - bem substancial frise-se - da nossa história retém, preferentemente, as partes «choramingas» e com raras excepções o português pela-se por uma boa angústia que venha antes ou após o jantar.

Em rigor pode dizer-se que o português médio (de uma média transversal numérica e de classe) fica feliz apenas quando refere uma forma da desgraça do seu ser português em Portugal. António Gedeão diz num dos seus poemas que «não é impunemente que se nasce em Portugal». Ou seja, tem de se pagar um preço e para os mais pessimistas o total a pagar nunca se acaba.

Por isso continuamos pagando: os jornais mais lidos em Portugal são aqueles que colectam as desgraças do dia a dia e mesmo a chamada leitura cor de rosa tem de ter, por exemplo, a desgraça de se engordar ou de se emagrecer, uns quilitos, nada de mais, esquecendo oportunamente que por este país (e pelo mundo fora) existem pessoas que gostariam de ter semelhantes preocupações.

Eu, por exemplo, não admito sequer a possibilidade de não estar sempre extremamente triste, não forçosamente porque vivo em Portugal mas porque se o não estiver (triste, extremamente triste) sinto-me estrangeiro, emigrado, refugiado.

E quando se diz que se está triste, por estes lados do planeta, é mesmo para valer. Dentro desta alarvidade de tristeza não há gota de alegria que entre, mesmo que ela esteja a chover. Os corpos e as mentes fecham-se, encarquilham-se - é o termo - curvam-se sobre si mesmos e servem de ricochete a toda a possibilidade de alegria que ronde pelas proximidades.

Para finalizar, e para dar uma alegria triste aos portugueses que se prezam da nossa tristeza, afirmo que tenho uma suspeita de que em Portugal e para Portugal e para os portugueses não existe um horizonte de alegria previsto para os próximos anos.



domingo, 26 de julho de 2015

Crónica de José Pedreira da Cruz - As Cerejeiras do Japão


Crónica de José Pedreira da Cruz

 As Cerejeiras do Japão

 

 Sou um brasileiro que vergonhosamente nunca viu um Pau Brasil (razão do batismo de meu País), esquecido por todos e quase que exterminado descaradamente pelo ganancioso vandalismo económico no transcorrer de séculos, mas que muito admira a beleza exuberante do Sakura, ou «Sakurá», como se pronuncia em japonês; ou simplesmente cerejeira, como se diz por aqui.

Quando chega o mês de agosto as abelhas abrilhantam com seus zumbidos incessantes a festa das cerejeiras do Parque do Carmo: um dos maiores da cidade de São Paulo localizado na sua zona leste.

 A revoada de beija-flores e de insetos à procura do néctar das flores rosadas é intermitente e uma sensação de se estar envolvido com a natureza faz com que, todos os anos, este espaço ambiental se torne alvo da visitação pública, aonde os olhos se encantam com a beleza ímpar da florada das cerejeiras, sutilmente transformando em róseo tudo que por ali antes era verde.


 Sakurá

 
O quê deveria ser orgulhosamente chamado de festa do Pau Brasil, chama-se de festa do «Sakurá», isto em razão dos imigrantes japoneses terem pacientemente transladado oceanos com mudas de cerejeiras do Japão e presenteado o Brasil com sua árvore símbolo nacional, e que, anualmente, se jubilam com orgulho, cânticos, comilanças, danças, ritmos, respeito, alegria e admiração.

- E assim que se faz no Japão; é assim que matamos a saudade de lá! – foi o que me disse um velho nissei, que parecia voando na felicidade, e sorria prazeroso, ao ver sua neta vestida a rigor e dançando suavemente o Asadoya -Yunta, a dança da celebração do amor, com gestos leves na cadência rítmica da melodia nipónica.

 O colorido das vestimentas se misturava alegremente ao movimento sutil da dança típica embalada pela música suave que aquietava a plateia, e todos os olhares se focavam para o deslumbrante espetáculo de som e flores em meio ao cor-de-rosa das cerejeiras do Japão.

 E eu, como um simples assistente, mas com uma inquietante dúvida, sem resposta silenciosamente me questionava:
- Será que os brasileiros emigrantes no Japão têm por lá a festa do Pau Brasil?

 Pau Brasil

 Melhor seria se Pedro Alvares Cabral tivesse batizado esta terra como antes queria: Terra de Santa Cruz, assim, quem sabe?...

Esqueceriam nossas florestas e o Pau Brasil estaria a salvo dos assassinos florestais, e eu, assim como os netos e os bisnetos (nisseis e sanseis) dos japoneses fazem, também pudesse festejar alegre e orgulhosamente nossa árvore símbolo nacional, mas, como não a temos, continuarei a festejar o «Sakurá» que agora, também, é brasileiro.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Crónicas do Oriente - Por: António Cambeta - Macau / Tailândia


Crónicas do Oriente -  Por: António Cambeta -  Macau / Tailândia

 SUTHORN PHU - O «Camões» Tailandês


O mais famoso poeta e o mais amado pelo povo tailandês, foi SUTHORN PHU

 No quinto ano do reinado do Rei Rama I, nascia no dia 26 de Junho de 1786, em Bangkok-noi, por detrás do palácio onde hoje se situa a estação de caminhos de ferro, um jovem a quem puseram o nome de PHU.

 Seu pai era natural da província de Rayong. Sua mãe era de outra província. Sunthorn Phu nasceu pouco depois de ter sido estabelecida a cidade de Bangkok (1782), volvido pouco tempo seus pais se divorciaram, tendo seu pai regressado à sua terra de origem, Muang Klaeng, Rayong, onde entrou para um mosteiro tornando-se monje budista.

 A sua mãe voltou a casar-se, passando a servir no Palácio Real. O jovem Phu foi educado no Wat (mosteiro) Sri Sudaram que se situava em Klong, Bangkok-noi, tendo abandonado os estudos para exercer o cargo de escriturário do governo, no palácio real, porém o que lhe agradava mais fazer era escrever poemas, tendo composto um longo poema baseado na história de Khobutra, o qual não chegou a completar.

Sendo uma pessoa muito independente e com um espírito muito curioso, criou uma série de conflitos, entre eles e o mais grave foi ter-se apaixonado por uma dama, ligada à realeza, de apelido Chan (ou Jun), dama essa que exerceu uma enorme influência no trabalho poético que Phu realizou. Phu foi punido e preso, por desrespeitar e violar a tradição monárquica.

 Após o indulto, e já com 21 anos de idade Sunthorn Phu, resolveu sair de Bangkok, indo visitar seu pai, que vivia na província de Rayong. Durante a longa viagem que durou um mês, o poético rapaz escreveu o seu primeiro poema chamado «Nirat Muang Laeng» poema esse que descreve a viagem com grande detalhe e sua grande paixão e saudade pela dama Chan, isto no ano de 1807.


 Regressado a Bangkok com ela contraiu matrimónio, desse enlace nasceu um filho chamado «Pat» que na idade adulta foi nomeado Juiz. O Phu entretanto tornou-se um alcoólatra, arranjando sempre conflitos com sua esposa, por esta foi abandonado. No ano de 1821, foi preso por se ter envolvido numa briga.

 O casal Phu estava casado ainda há pouco tempo, e foi por essa altura que Phu se envolveu em amores com outra senhora, o que levou a ter que se divorciar. Este foi o primeiro de muitos casamentos que contraiu e que terminaram em divórcio. Porém, a mulher que ele mais amou foi a Jun. No ano de 1809 morre o Rei Rama I, sucedendo-lhe no trono o Rei Rama II, este um poeta de génio, tendo visto Sunthorn Phu chamou-o para junto de si .

 O Rei quando escreveu o seu livro Ramakien, muitas vezes consultou o poeta Phu, tendo encontrado nele sempre uma metrificação, tendo sempre uma resposta sábia para os assuntos que o Rei indagava. Tão satisfeito ficou que lhe concedeu o título de Khun (Sir) Sunthorn Voharn.

 O poeta continuava a beber e a arranjar atritos, e um dia entrou em vias de facto com um tio de sua majestade, sendo por isso preso.

 A prisão serviu para o poeta como uma bênção , visto que foi durante a sua estadia na prisão, que concebeu a ideia de escrever um longo romance, onde narrava as aventuras vividas por dois irmãos, num mundo cheio de magia e encantos. Foi esta escrita imaginativa, uma das maiores obras literárias que se tornou famosa sendo seu título Phra Abhai Mani.

 Esta obra só foi concluída quando o poeta atingiu a meia idade, tendo-a publicado em capítulos e ganho algum dinheiro com isso, e tendo-se tornado famoso. Não ficou muitos anos preso, visto sua majestade lhe ter concedido perdão e lhe dar o posto de professor régio, tendo ensinados os príncipes e sendo conselheiro literário do Rei.

 Foi nesta qualidade de conselheiro literário do Rei que ele incorreu na ira do filho mais velho do Rei, Príncipe Jesdabodindra, também um ilustre poeta, que Phu se aventurou a fazer criticas públicas de algumas linhas escritas pelo Príncipe, ao ponto de corrigir e alterar a sua escrita. O Príncipe tomou isso como uma ofensa pessoal e, infelizmente para o poeta ele nunca mais o esqueceu e jamais o perdoou por isso.

 Em 1824, o grande patrono do poeta , o Rei Rama II, faleceu, tendo subido ao trono o Príncipe Jesdabodindra, tendo retirado ao poeta o título de Kun (Sir) , perdendo este igualmente o seu posto no palácio, saiu da capital e se dedicou à agricultura, porém por pouco tempo tendo se refugiado num mosteiro, onde permaneceu 18 anos tendo escrito vários poemas, o mais notável Nirat Suphan e Nirat Wat Chao Fa, obras estas escritas durante as suas viagens e em lugares diferentes, tendo saído do mosteiro para se tornar comerciante.

 No ano de 1832, o Príncipe Lakhananukhun, filho do Rei Rama III, teve o prazer de ler os poemas de Phu, adorou a sua escrita, tendo-o chamado para junto de si, tendo Phu escrito para o seu patrono alguns poemas.

Mas o poeta obstinado e criando sempre problemas, quando o seu patrono morre no ano de 1835, tornou a ser expulso do palácio, tendo passado a vaguear de lugar para lugar usando um barco que lhe servia de habitação e vendendo seus poemas, sempre que podia.

 Porém um grande poeta como era o Phu não podia continuar vivendo na obscuridade, foi então que o Príncipe Isaresrangsan, outro filho do Rei Rama II, o mandou chamar ficando o poeta aos seu serviço.

 Este Príncipe era o irmão querido do Príncipe Mongkut, assim que seu irmão subiu ao trono como Rei Rama IV, concedeu ao poeta o título de Phra Sunthorn Voharn, tendo passado o restos de seus dias vivendo em paz até que faleceu em 1885.

 Ele deixou para trás um legado de poemas que se tornaram famosos ao longo do tempo, porque eles descrevem a história da Tailândia.

 Os seus poemas são ensinados nas escolas tailandesas, tal como o Lusíadas em Portugal, ficando assim a saber - se a história de seu Tailândia.

 As suas obras poéticas foram homenageadas pela UNESCO. Ele começou o poema épico, Phra Aphai Mani na prisão, e publicou-o em parcelas ao longo de 20 anos. Durante o período de 1824 a 1851, sendo Rei Rama III, o poeta por ter sido por ele criticado pela forma forma como escrevia e por ter por ele sido punido, pouco mais escreveu.

 

domingo, 12 de julho de 2015

A hora e vez do Romi-Isetta - Texto de Cecílio Elias Netto


A hora e vez do Romi-Isetta

 Texto de Cecílio Elias Netto

 
 Em 1955, a indústria Romi (barbarense) construiu o carro mais inteligente que podia existir. Mas foi esmagada pela estúpida indústria de carrões.

 Foi em 1956 que surgiu, no Brasil – e fabricado pelas Indústrias Romi, barbarenses – o revolucionário carro Romi-Isetta. Era o primeiro veículo produzido nacionalmente. O visionário Emílio Romi conseguiu, em 1955 – da empresa italiana Isso, que o idealizara – o direito de construção no Brasil. Tratava-se de um veículo de praticidade espetacular, mais ainda do que o já minúsculo Fusca. O automóvel de Emílio Romi era para duas pessoas, com portas que se abriam pela frente, atingindo velocidade de até 85km/h, com consumo de combustível de 25 km. por litro.

 Seus idealizadores, ainda no pós-guerra, haviam imaginado um veículo pequeno, seguro, barato, que atendesse as necessidades de famílias pequenas, de estudantes, de operários. Tratava-se de um carro mais para circulação urbana, digamos que para uso individual. E o sucesso foi imediato na Europa. Foi como se a Isso italiana – e o barbarense Emílio Romi – tivessem previsto o que haveria de acontecer, com a desvairada fabricação de carrões imensos e pouco inteligentes. Aliás, o próprio Henry Ford – há 90 anos – advertiu e reconheceu: «A cidade está condenada».


O Romi-Isetta durou muito pouco tempo. Acho que até 1961. Foi esmagado pelo poderio das bilionárias empresas automobilísticas que se instalavam no Brasil após a abertura dada por Juscelino Kubitschek. O preço daquele desenvolvimento alucinado foi a morte da razão em favor da ambição. A realidade foi construída para um crescimento desordenado no qual a pessoa humana não foi levada em conta. Como o próprio Marx previra, o capitalismo – depois de conseguir o máximo de onde se instalou – iria em busca de novas oportunidades, novos povos, novas terras. Nos 1960, a América do Sul tornou-se cobiça internacional. Em relação à mobilidade urbana e interurbana, as grandes vítimas foram: os trens, os bondes e o Romi Isetta.

 Atualmente, os carros pequenos – adequados aos graves problemas atuais – começam a ser, inteligentemente, construídos e usados especialmente na Europa. Aqui mesmo em Piracicaba, já circulam alguns. O Japão está em vias de lançar – se já não o fez – o pequeno automóvel dobrável, que se fecha, para estacionar, como duas páginas de caderno. Ou seja: há, sim, vida inteligente no mundo. Preocupações legítimas. E buscas de soluções racionais, de ordem prática, imaginativas, criativas.

 Estamos diante, novamente, da vez e da hora do Romi-Isetta. Piracicaba jamais teria a imaginação de participar dessa experiência inteligente de redescobrir que «menos pode ser mais». Pelo contrário. A vocação política dos últimos tempos parece ser a favor da burrice. Vai daí, passamos a produzir, orgulhosamente, grandes, imensos carrões. E quase ninguém percebeu estarmos próximos da hora em que exibi-los nas ruas, ostentá-los será humilhante e vergonhoso. Que se há de fazer? Bom dia.


 
O Romi-Isetta foi o primeiro automóvel produzido no Brasil, entre 1956 e 1961, pelas Indústrias Romi S.A., com sede em Santa Bárbara d'Oeste, interior de São Paulo.
 
 
 

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Promoção e poder - Tom Coelho


Promoção e poder

* por Tom Coelho

“Contrate e promova primeiro com base na integridade; segundo, na motivação;terceiro, na capacidade; quarto, na compreensão; quinto, no conhecimento;e, por último, como fator menos importante, na experiência.
Sem integridade, a motivação é perigosa; sem motivação, a capacidade é impotente; sem capacidade, a compreensão é limitada; sem compreensão,
o conhecimento é insignificante; sem conhecimento, a experiência é cega.”
(Dee Hock, fundador da Visa)

“O poder muda as pessoas”.

É muito provável que você já tenha proferido a frase acima para qualificar a mudança no comportamento de um amigo após este ser promovido em seu emprego. A este respeito, permita-lhes contar uma breve história...

Há mais de uma década eu estava como diretor de uma empresa para a qual contratei um representante comercial. Em tal posição, o rapaz não tinha vínculo empregatício, ou seja, não precisava cumprir horários ou mesmo comparecer regularmente à companhia. Cabia-lhe apenas visitar clientes para gerar negócios, estando subordinado a mim e ao gerente comercial.

Entretanto, aquele profissional se destacava em relação aos demais em igual função. Ele fazia questão de ir à fábrica, conhecer em profundidade nossos produtos, processos e sistema de gestão. E, diante deste envolvimento, sempre que possível trazia-nos sugestões diversas para melhoria, de forma realmente despretensiosa.

Após um ou dois meses, notei que estava diante de uma pessoa singular, muito acima da média dos demais funcionários. Alguém que não se reduzia aos limites de seu papel, que apresentava admirável visão sistêmica e nítida capacidade de gerenciamento e inovação. Refleti e tomei a decisão de promovê-lo.

Para encaixá-lo no organograma, criei o cargo, até então inexistente, de gerente administrativo. Era o que melhor se enquadrava em seu perfil, posto que transitava com fluidez do departamento de vendas à produção, passando pelo atendimento e suprimentos. Todavia, algo inusitado aconteceu.

Em menos de uma semana no cargo, sua relação com os colegas mudou diametralmente. Ele passou a tratá-los com soberba, em especial a equipe da área comercial, com a qual interagia anteriormente. Até mesmo sua postura física ao caminhar alterou-se! As reclamações começaram a chegar à minha sala até que, menos de um mês depois, não tive opção, demitindo-o.

A grande lição que extraí deste episódio foi de que, em muitos casos, subir na hierarquia faz o poder subir à cabeça. E isso ocorre porque o poder, tal qual o dinheiro, são excepcionais matérias-primas para a vaidade. Porém, diferentemente do que se possa parecer, eles não mudam as pessoas, mas apenas as desmascaram, porque se a arrogância e a prepotência as visitam, é porque sempre estiveram ali presentes, na essência.

Assim, para evitar um infortúnio similar ao que vivenciei, considere três aspectos essenciais antes de promover alguém em sua organização.

Primeiro, conheça o profissional. A rigor, este cuidado deve ser tomado já por ocasião da admissão. Ou, como gosto de dizer, contrate devagar, mas demita rápido. Analise criteriosamente o perfil do executivo, considerando sua personalidade, comportamentos, motivadores e competências. Há instrumentos poderosos para este tipo de avaliação que, quando bem utilizados, permitem colocar a pessoa certa no lugar certo.

Segundo, explicite suas expectativas. Antes mesmo de formalizar a promoção, tornando-a pública, convide o profissional antecipadamente para uma conversa com portas fechadas. Neste momento, informe-o dos motivos que levaram você ou sua equipe a escolhê-lo, elencando os desafios e responsabilidades do cargo, as metas que se espera atingir e qual a autonomia, infraestrutura e equipe que lhe serão disponibilizadas. Apresente também o plano de remuneração e os benefícios inerentes à função.

Por fim, pare e escute. Após o passo anterior, deixe que o profissional relate suas próprias expectativas acerca da nova colocação e se a mesma está alinhada aos seus propósitos pessoais. É neste momento que a promoção pode ser recusada em virtude de uma decisão consciente.

A experiência que relatei confirma a tese de que nem todas as pessoas são indicadas para cargos de liderança. Embora esta seja uma competência possível de ser desenvolvida, há aqueles que não de adequam ao papel de líder. E isso pode ocorrer por dois motivos.

Há profissionais que se sentem deslocados em seu ambiente de trabalho por ter seus pares, antes meros colegas, agora como seus subordinados diretos, impactando o relacionamento interpessoal e gerando uma sensação de desconforto e angústia. Isso é muito recorrente em funções operacionais, em especial com líderes oriundos do chão de fábrica.

Porém, o mais comum são aqueles que, a exemplo do meu antigo representante comercial, não enxergam que liderança é uma posição transitória que não se impõe, mas se conquista, e que precisa ser respaldada por competência, legitimidade, sensibilidade, carisma, persuasão e outros fatores. Contudo, assumem a alcunha de “chefes”, com presunção e orgulho, menosprezando colegas e fornecedores, e desperdiçando uma grande oportunidade.


* Tom Coelho é educador, palestrante em gestão de pessoas e negócios, escritor com artigos publicados em 17 países e autor de oito livros. E-mail: tomcoelho@tomcoelho.com.br. Visite: www.tomcoelho.com.br e www.setevidas.com.br.





quarta-feira, 8 de julho de 2015

FALAR DE MONTANHEIROS - Texto de Daniel Teixeira


FALAR DE MONTANHEIROS

Texto de Daniel Teixeira

Tenho lido amiúde e de forma dispersa no tempo e nos temas alguma coisa sobre as denominações e terminologia própria dos Montes do Interior algarvio e embora não tenha consultado o Dicionário do falar algarvio de Brazão Gonçalves e não sabendo portanto se esta terminologia que vou referir vem lá expressa e desenvolvida vou escrever esta crónica com base naquilo que conheço por ouvir dizer (pronunciar) e isto ainda sem dar uma atenção específica àquilo que li noutras fontes.


Não se trata de um exercício egoísta ou de desconsideração sobre aquilo que outros já escreveram sobre estes termos (que não são muitos na minha memória) mas trata-se sim de os manter enquadrados nos momentos próprios e ambientes em que eles foram ditos de forma isolada ou repetida na minha presença.


A minha avó por exemplo não sabia, não conseguia e não queria dizer «máquina» referindo-se a uma qualquer ou tão simplesmente à máquina de costura: para ela era «mánica» e nem as constantes correcções nossas a faziam demover da sua ideia: «é máquina que se diz avó!!» mas ela mantinha-se na sua, não por birra, conforme me fui apercebendo, mas porque fazia parte dela já esse termo.


Infelizmente não tive oportunidade (convenhamos, era uma criança...) de comparar com o que as outras mulheres, sobretudo, diziam sobre estes objectos mas lembro-me de que anos mais tarde ter ouvido que «as mánicas da tropa arranjaram alguns caminhos do Monte de Alcaria Alta» misturado com algumas «máquinas».


Tive de percorrer no Google um relativamente longo caminho para encontrar num sítio de anedotas sobre alentejanos alguma coisa que me desse para escrever mais umas linhas sobre este assunto. E é assim: «- Oh pai, isto éi uma mánica , daquelas muito sufisticadas para cortar as árvores , faz logo o trabalho todo . Fui agora mesmo buscá-la á do Fialho a Evora . Querem vê-la a trabalhari !?»


Há também em Italiano algumas coisas que referem esta terminologia mas com base diferente uma vez que se referem à posse: talvez minha = ma + coisa = nica sendo este conceito bem mais geral no sentido português do «é minha!!» com algum sentido também do conjunto «é minha e eu sou o que é meu», isto visto numa forma muito geral e só para ilustrar.


Ora embora se possa chegar à conclusão de que se trata de uma deturpação do termo base «máquina» (pelo menos a acreditar no falejar da anedota alentejana) certo me parece ser que a primeira vez que a minha avó deve ter visto «mánicas» foi precisamente nos períodos de ceifa nas Herdades do Alentejo.


A tentação de juntar estas coisas faz parte da natureza humana, certo, mas vamos admitir que esta propensão para a utilização do termo «mánica» em vez de «máquina» tenha a sua origem no calão alentejano, pelo menos neste caso.


«Pial» que eu tenho visto referido nalguns textos sobre os Montes do Concelho de Alcoutim não me lembro de o ter ouvido: sempre me foi referido «sente-se aí no poial» - por exemplo e embora se admita uma redução geral algarvia pelo «comer» de sonoridades de mais difícil pronúncia nunca ouvi. Arreata por exemplo é bem mais difícil de pronunciar do que rédea e não foi «comida» ou substituída pelo seu equivalente.


Há aqui uma questão de estatuto também, rédea é de animal nobre, cavalo, e arreata dá para os humildes burros e mesmo para os híbridos muares. Será a questão do estatuto suficiente para levar à separação das utilizações? Já «escaleiras» em vez de escadas vem nitidamente do espanhol e não me lembro de se utilizar o termo escadas.


Ora, comecei pelo termo «mánica» e por ele irei terminar, ainda que num outro plano: os animais, sobretudo os muares (e mesmo os cavalos) tinham de ser tratados com «pezinhos de lã» no que se refere a sustos ou coisas que os assustassem. Os asininos também sofriam de um descontrole em face do desconhecido que os fazia entrar em parafuso mas eram relativamente controláveis: baixinhos, bastava desmontar mesmo a salto e tratar do assunto depois.


Ora nos cavalos era preciso aguentar a parada (empinar e correria) e para isso era preciso ter experiência de montar e treino suficiente para não fazer asneira. Os muares, quando em carroça, neste caso em dupla, dos lavradores Vilão, que foi os que conheci neste plano entravam em processo de «espanto» (dizia-se espantaram-se) com aquilo que na altura achávamos ser uma coisinha de nada.


Como eram dois a puxar a gente parava o carro e virava-os de forma a que não vissem o objecto do potencial espanto, mas como eram dois bastava que um visse para que o processo fosse comum. Neste caso que vou contar, talvez o mais grave que nos aconteceu dado o acidentado do terreno da disparada dos dois animais, um indivíduo de Giões resolveu comprar uma «mánica» motorizada em vermelho vivo que até a mim me assustaria.


Ora um tio meu estava de férias no Monte e não havendo ainda telefone em Alcaria Alta e tendo ele um estabelecimento em Lisboa um dos empregados telefonou para Giões por uma questão qualquer que precisava de uma solução do proprietário.


Simpaticamente o tal homem da motorizada vermelha ofereceu-se para dar um saltinho a Alcaria Alta dizer-lhe que de lá tinham pedido para ele ligar para Lisboa.


Pois bem «apanhámos» (nós e os muares) a motorizada vermelha à nossa saída do Monte em frente à Cerca do Toril na parte que era da minha Tia Bia e as duas mulas entraram em disparada enveredando em direcção aos Farelos. Quem conduzia era o Manelito Vilão e cá atrás na caixa íamos três: a gente na nossa inocência achámos piada porque íamos num carro de corrida.


O carro dava saltos (eram ainda rodas de aro de madeira) e só nos apercebemos de que a coisa podia ser grave quando ele nos disse para nos deitarmos no fundo do carro porque o carro podia virar.


O Manelito Vilão (já falei do falecimento dele por ataque cardíaco aqui no Hospital de Faro) gaguejava um pouco mas a ordem de nos deitarmos e agarrarmo-nos bem veio toda sem gaguejo.


Ele lá conseguiu controlar os animais ao fim de bastante tempo, mas quando me relembro de tudo penso que o carro a virar-se era indiferente estarmos deitados ou de pé: os animais continuariam na sua correria arrastando a carroça e muito pouca coisa nos salvaria estando dentro dele.


O susto demorou a passar: ficámos ali um bom bocado a respirar fundo. Depois encetámos o caminho de regresso. Pois bem...felizmente que o nosso destino inicial era uma horta frondosa a cerca de 50 metros da estrada. Achei estranho ele meter o carro em maior velocidade minutos depois correndo-se em direcção às árvores da parte traseira da horta até que olhei para o Monte e para a serpenteada estrada. Lá ao longe vinha a «mánica» vermelha.


Chegámos mesmo a tempo de tapar da vista dos animais o até para mim insólito objecto. E lá ia ele, com o meu enorme e pesado tio na boleia quase arrastando os pés pelo chão.


Levámos muito mais tempo que o costume a regar a horta, a sachar, a limpar as árvores. Só faltou dar-lhes brilho...e só saímos dali depois do regresso do meu tio e do regresso a Giões do motociclista.



domingo, 28 de junho de 2015

Crónicas da Minha Terra - Por Arlete Piedade - Festa na Aldeia


Crónicas da Minha Terra

Por Arlete Piedade

Festa na Aldeia

 
(Nota: Este texto foi escrito recordando as festas populares da minha aldeia, que animaram a minha infância e adolescência, e que recordo como os momentos mais felizes e animados, que durante todo o ano esperava ansiosamente).

Pouco passava das sete horas da manhã e já estalavam foguetes no ar, uns a seguir aos outros, fazendo um barulho infernal que deixava todos os habitantes da aldeia em alvoroço.

São as tradições da terra, amigos! – Temos que saudar o dia que chega com muitos foguetes para os vizinhos das outras aldeias virem todos para a festa e trazerem muitas ofertas para o Santo! – Esclarecia o dono da casa, sorridente, para os seus espantados convidados que tinham acordado assustados.

- Ofertas para o Santo? Para quê? – Perguntaram os dois convidados que tinham chegado na véspera de Lisboa e queriam saber todas as tradições da aldeia, para poderem comparar com as da sua terra.

- O Santo da aldeia é o S. Silvestre! – Respondeu o anfitrião, que acrescentou:
 - O santo protege os animais contra as doenças e os donos dos rebanhos vêm com as cabras, ovelhas e vacas dar umas voltas á capela, para agradecer a protecção do santo!

- Que engraçado isso! E que música é esta que estamos a ouvir a aproximar-se? – Perguntaram os dois amigos, que adoravam musica.
 - Ai meu Deus! – Deve ser a banda que já aí vem, com os festeiros para levantarem a oferta! – Exclamou o amigo, com um ar de aflição que fez rir os convidados.
 - Não riam! – Tenho que ir ver se está tudo em ordem! – Até já amigos! Sentem-se á mesa e comam. Não esperem por mim!

Mas os hóspedes queriam ver e acompanhar tudo e seguiram o amigo até á entrada da moradia, onde ele tinha disposto as ofertas para o Santo. Já se via ao longe na rua, o cortejo que se aproximava, com os festeiros á frente.

Vestiam fatos tradicionais com um colete de flanela vermelha por cima. Na mão esquerda traziam estandartes, com uma bandeira com a imagem do santo, na mão direita traziam sacos de veludo preto com que recolhiam as ofertas e dinheiro.

Outros traziam recipientes metálicos, onde levariam o azeite oferecido – foi explicando o anfitrião, aos dois amigos!

Mas á frente do cortejo, vinham os lançadores dos foguetes que iam deitando alguns para o ar mesmo em frente á casa , enquanto paravam e a banda tocava alegremente.

Mas a pedido do dono da casa, cessaram de lançar os foguetes para o ar, a banda calou-se e os festeiros que eram os habitantes da aldeia, encarregues da festa, aproximaram-se para recolherem a oferta já preparada.

Depois de dar uma quantia substancial em notas, que os amigos não viram bem, mas calcularam que seria cerca de 100 contos (100.000$00 escudos ou 500 euros pela moeda actual), o amigo ofereceu também 10 garrafões de azeite que seriam depois vendidos, e cujo valor revertia para a comissão de festas.

Os dois amigos, não querendo fazer má figura, perguntaram se aceitavam cheques, e foram buscar cada um, um cheque no valor de 50.000$00 (250 euros), que ofereceram aos festeiros para colaborarem conforme podiam.

Depois do cortejo se afastar, voltaram para a cozinha onde a mesa estava posta para o pequeno almoço, mas mal tinham acabado de sentar-se, ouviram lá fora o tropel dos rebanhos que se aproximava para irem dar a volta á capela do santo, e os primos quiserem ir ver a capela e a festa.

Entretanto no enorme fogão a lenha, coziam já as galinhas mortas de véspera, para fazer a canja. Também tinham abatido um porco e um borrego, e as mulheres descascavam batatas para disporem nos enormes tabuleiros de barro, onde já se encontravam pedaços de carne temperada com banha e massa vermelha feita de pimentos esmagados.

Depois de tudo regado com azeite e vinho, colocaram os tabuleiros nos fornos do fogão, onde ficariam a assar.

Enquanto isso, os convidados de Lisboa, acompanhados do amigo aldeão, estavam a entrar na pequena capela da aldeia. Ao fundo no altar, a imagem de S. Silvestre, que segundo lhes explicou o festeiro encarregado da capela, tinha sido um papa natural de França.

Mas antes de ser religioso, fora soldado ao serviço do imperador romano e como tal era afeiçoado aos cavalos e outros animais que protegia e curava de doenças.

Os donos dos animais, quando tinham algum animal doente, faziam promessas a S. Silvestre pedindo a cura do animal doente.

Assim no dia da festa, compravam uma pequena estatueta do animal que se tinha curado, a qual era colocada no altar, para atestar o poder do Santo.

Admirados os dois amigos, primos viram o altar cheio das pequenas estatuetas, e na sacristia ao lado, filas de prateleiras com mais figurinhas, representando vários animais em miniatura.

Depois de darem uma volta pelo arraial, voltaram a casa, onde os esperava o almoço juntamente com dezenas de convidados, que iam enchendo o jardim e o pátio fronteiro á casa.

Depois de devorarem a suculenta canja, e esvaziarem as travessas de carne assada com batatinhas e salada de alface, foi a vez dos doces e sobremesas.

Arroz-doce, pudim de ovos, salada de frutas e leite-creme foram servidos e devorados por aquelas pessoas que aparentavam não comer há uma semana tal a gula com que devoraram tudo que lhe era colocado á frente.

Foi a vez dos bolos confeccionados nos últimos dias pela dona de casa, serem cortados em fatias e colocados em pratos de vidro na mesa, bem como as filhoses cobertas com açúcar e canela e dispostas em enormes travessas intercaladas com os pratos de bolos.

O dono da casa, tinha ido buscar bebidas finas, tais como vinho do Porto, licor de amêndoa amarga e uísque para acompanharem os bolos. As senhoras de Lisboa, preferiram fazer café na máquina expresso que tinham trazido, o qual começaram a servir aos convidados que faziam fila esperando a sua vez.

Findo o almoço todos se dirigiram ao largo da aldeia, onde centenas de pessoas estavam aglomeradas, conversando em grupos, os mais novos dançando ao som da banda que tocava num palco improvisado ao fundo, os homens em grupos cumprimentando os amigos das aldeias vizinhas, as mulheres olhando os vestidos umas das outras para ver qual era a mais bem vestida, as crianças brincado e comendo pinhões em cordões.

Os namorados dançavam, outros jovens e pessoas de todas as idades, acotovelavam-se ao balcão da quermesse para comprarem rifas e verem se tinham sorte em serem premiados com bugigangas diversas que as fábricas e lojas tinham oferecido para serem sorteadas e leiloadas e o dinheiro arrecadado reverter a favor do Santo e da comissão de festas, o que era quase a mesma coisa.

Ao fim da tarde, todos se dirigiam para casa, os convidados para casa dos anfitriões que os tinham recebido, outros de regresso ás suas aldeias, enquanto os habitantes da aldeia se apressavam para irem servir o jantar, porque depois haveria baile e ninguém queria perder a actuação do famoso conjunto musical que tinha sido contratado para a noite de passagem de ano, a noite de S. Silvestre.

Por isso depois do jantar foram de novo para o largo da festa, os miúdos felizes com os brindes que tinham conseguido ganhar na quermesse e que eram uma bola de futebol branca e azul, um carro de bombeiros telecomandado que apitava e buzinava, e uma estatueta de barro que representava um casal de crianças que brincavam.

Agora era a vez de lançarem um balão de ar quente, que já estava pendurado no alto, por cima de uma enorme fogueira destinada a enchê-lo de ar aquecido.

Curiosos, todos se aproximaram, mas ainda iria demorar, só perto da meia-noite seria o lançamento programado. Então dirigiram-se para o salão de baile de onde chegava o som do conjunto musical a afinar os instrumentos.

Daí a pouco começaria o baile, ponto alto das festividades pelo qual todos os jovens esperavam ansiosamente para dançarem com as namoradas os que já namoravam, para arranjarem ou tentarem conquistar uma namorada, os que ainda não tinham.

Em volta do recinto de dança, em duas filas de cadeiras e algumas mesas, as mães vigiavam, enquanto os pais no bar ou no café conversavam de assuntos de homens.

A meia-noite o baile foi interrompido para irem ver subir o balão que se perdeu no céu escuro, e em seguida o baile prosseguiu até de madrugada.

No dia seguinte todos se levantaram tarde depois dos festejos da véspera. Era dia de Ano Novo, mas a seguir ao almoço, enquanto a festa continuava o grupo preferiu regressar a Lisboa.

A chuva tinha recomeçado a cair, anoitecia cedo e o trânsito devia estar caótico na auto-estrada, depois do fim - de - semana de festas.

Arlete Piedade



My Blueberry Nights - crônicas da madrugada.- Lua, nua, lua...- Por Cynthia Kremer


My Blueberry Nights - crônicas da madrugada.

Lua, nua, lua...

Por Cynthia Kremer

Eu sou mesmo uma mulher lunar.

É impressionante, mas desde bem pequena tenho a sensação de que todos os chatos vão dormir cedo. Assim como os escoteiros, não fumantes, crentes, adeptos da vida saudável e todos os seres aborrecidos da mesma linhagem.
Outro dia estava assistindo um filme que adoro, chamado “Todas as Mulheres do Mundo” – e de repente me dei conta do teor de um diálogo do personagem do ator Paulo José, comentando com o amigo que a mulher dele estava deprimida, que há dias não saía do quarto e como ele dizia, havia dois tipos de mulher: as solares e as lunares; ele temia que sua mulher fosse uma mulher lunar...

Mas eis que de repente ela (Leila Diniz) aparece magnífica e cheia de vida na praia bem ao alcance da vista do marido - que aliviado - desabafa ao amigo: “ela é uma mulher solar!" Aquilo me soou quase como uma crítica, como um desprezo a minha condição de mulher lunar!

Mas a noite é minha amiga fiel. Traz-me aconchego, paz e vontade de fazer as coisas. Este é o problema; pouco do que quero e tenho ânimo, posso fazer à noite. Mudaria o mundo às três da madrugada! Mas aí chega o dia, que implacavelmente, apaga, como o sol a um letreiro de neon, as minhas vontades. Mas não reclamo. Faço o que posso e gosto ao longo das madrugadas.

Ouço minhas músicas, leio jornais, escrevo muito, mando e-mails atrevidos para lugares impensáveis, entro em blogs aleatoriamente, me afilio a ONGs de proteção animal e ambiental, etc. Fico meio pirada depois das três horas da madrugada! Sei que alguns dirão: "coitada, é solidão..."

Pois eu lhes asseguro: é paixão! Paixão pelo desconhecido, por uma sensação de algo suspenso no ar, pela quietude das coisas, das árvores, das ruas e de tudo em volta. É nesta hora que a minha percepção fica mais aguçada e as idéias fluem com mais facilidade.

Há um verso “Nox”, de Antero de Quental, (meu tio-trisavô), que pelos poemas e sonetos, era também um amante da noite.

NOX

Noite vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, Inalterável,
Caindo sobre o Mundo, Esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

Antero de Quantal - in Sonetos





terça-feira, 23 de junho de 2015

O ESPAÇO, O TEMPO E O SILÊNCIO.- Texto de João Brito Sousa


CRÓNICAS PREMIADAS QUE EU ESCREVI...

O ESPAÇO, O TEMPO E O SILÊNCIO.

Texto de João Brito Sousa

É por esta via que podemos chegar à felicidade. Pelo menos depreendi isso, num texto que li no Jornal Expresso, quando o articulista se mete a explicar o binómio caçador/ caça, e, lá para às tantas, depois daquelas reuniões de amigos, tanto do seu agrado, onde não se fala de mulheres, nem de política, nem de cinema, nem de literatura mas apenas de caça e de caçadores, surge esse momento mágico no encanto da noite.
Depois de terminada a refeição com os amigos, um copo inofensivo na mão esquerda, um puro na mão direita, uma soleira de porta alentejana para se sentar, o espaço, o tempo e o silêncio, fazem desse, o momento magnânimo e único que apetece viver.

O espaço, esse local onde não se passeiem as multidões e que nos permite olhar e respirar, onde nos possamos encontrar a nós próprios, sem medo e com total confiança, que nos pode até conceder a patente de donos do mundo. Naquele momento tudo é nosso. O espaço é fundamental para a nossa afirmação, para a concretização dos sonhos no silêncio das noites.

O tempo, no sentido intrínseco do termo, é o local onde a vida se vive, onde os nossos sonhos se manifestam, onde nos reputamos presentes, é aí o domicílio da nossa vida. O tempo, essa dádiva que nos é concedida e é imprescindível, sem ele não há nada, nada de nada, nem sequer a esperança. O tempo vive-se melhor no silêncio. E às vezes vive-se sem tempo porque não temos tempo para ter tempo.

È bom viver. Em qualquer circunstância, mesmo naquelas condições do caçador que na hora da deita se lembrou que no dia seguinte tinha uma letra no banco a pagamento. Lembrou-se e gemeu. O colega da caçada, perguntou-lhe, o que é isso ó Fernando, o que é que tens? E ele, amanhã…

Ou aquela cena, em que o bancário visitou o cliente que dormia a sesta, lá para as catorze e tal e a esposa foi-lhe dizer, está aí o homem do banco. E o cliente interrompeu a sesta e veio dizer ao bancário que estava a descansar e que ele, bancário, não tinha o direito de o vir acordar. E ainda lhe perguntou: ouviu o que eu disse?

O espaço, o tempo e o silêncio, funcionam como irmãos na família da vida e às vezes constituem o que há de melhor na nossa existência. O espaço é liberdade, o tempo é liberdade e o silêncio é liberdade. Nessa trilogia espaço, tempo e silêncio o homem encontra-se consigo próprio, estabelece padrões de vida, pensa e age, perspectiva situações, analisa e admite que pode ser feliz. Ou que um dia será. E às vezes até se julga poeta. E escreve umas palavras num papel e chama-lhe poesia. Nesse momento tudo lhe é permitido.

Um dia virá em que não haverá mais espaço nem mais tempo nem mais silêncio. Mas tudo continua, igual ou talvez não, num outro local, que pode ser na porta ao lado. Com uma mão vazia e outra cheia de nada, como disse a poetiza Irene Lisboa. Os poetas dizem cada coisa. Tinha que ser um poeta a dizer. E tinha que ser um poeta a escrever. Descobri agora que sou poeta, que tenho essa qualidade de ver as coisas por um lado diferente.

Gostava de ir à caça amanhã e usufruir desse tal momento mágico onde o espaço, o tempo e o silêncio fossem de minha propriedade. Única.

Nunca se sabe o que nos pode acontecer. Por enquanto o palco é aqui, neste espaço, neste tempo e neste silêncio.

João Brito Sousa




A porta de vidro - Crónica de Abilio Pacheco


A porta de vidro

Crónica de
Abilio Pacheco
 
Semana passada, fui ao chaveiro tirar cópias de umas chaves. O molho tinha três chaves. Segurei duas delas e disse que gostaria de uma cópia de cada. Era uma senhora. Ela recolheu das minhas mãos, sumiu e depois voltou segurando a que não era para copiar e disse: duas cópias, certo? Não, senhora – respondi – uma de cada das outras duas. Ela revirou o chaveiro e fez cara de quem entendeu mas não gostou.

Colocou uma das chaves num suporte. Depois tirou e disse: É de uma porta de vidro. Como não disse nada, ela insistiu: Não é de uma porta de vidro!? Eu lhe disse que não. Ela puxou um huuummmm prolongado. Meditou e quis saber de onde era a chave. Disse-lhe que era da porta do apartamento. De vidro? Não, senhora. De madeira. Aprumou matriz e chave lisa no esmeril, resmungou: porta de vidro. Enquanto tirava a cópia da outra chave, dizia: De vidro. É de uma porta de vidro.

Aparou arestas das duas chaves e voltou-se para mim segurando a chave como brandindo: Esta chave é de uma porta de vidro! Convenci-me que não adiantaria discutir. Em qualquer outra situação, eu iria insistir que estava certo, mas havia rodado mais de 170 km (Capanema-Belém), eram quase 16h e tinha alguma fome. Além do mais, não me parecia haver motivo para insistir. Resolvi não teimar. Conforme ela me estendia a chave, eu confirmava que era. Era de uma porta de vidro. Eu pegaria as chaves, pagaria pela cópia e iria para casa.

Ela puxou de uma vez: Afinal, o senhor não disse que a porta era de madeira!? A mulher me desmontou de vez. Não quisera teimar, mas tergiversar parece que não fora a melhor opção. Estiquei um ééééé… Ela inclinou o rosto para um lado como quem dissesse ‘tô te vendo!’. Respirei calmo e disse, procurando um caminho no meio daquela armadilha. Senhora, a chave (hum!!) é de uma porta de vidro (ãh), mas a minha porta é de madeira (ah!).

Ela parecia ter se desarmado e ia me entregando a chave quando recuou novamente e perguntou onde eu morava. Cruzando minha resposta ela emendou a pergunta se eu estava indo para lá. Naturalmente, sim. Essa sua história está estranha, viu moço! Eu vou lá com o senhor. E foi. No caminho, resmungou outros problemas de clientes como eu. Aquilo não era somente uma cópia de chave errada. Seria caso de polícia. A chave era de uma porta de vidro. Conhecia bem aquelas chaves, seus formatos…

Chegamos à porta e lhe mostrei a madeira. Pegou a chave, ela mesma. Enfiou na fechadura e girou. Olhou-me aborrecida. Cobrou-me pelas cópias e pela visita. Paguei sem reclamar. Ela pegou o dinheiro, fez um rolinho e levantou alto como fosse uma vareta e vibrou o braço bradando. A chave é de uma porta de vidro. E ainda de costas reclamou: de vidro!

Belém/Capanema, 07 de fevereiro de 2013.

Abilio Pacheco

Professor universitário, escritor de prosa e verso, revisor de textos e organizador de antologias. Mestre em Letras (UFPA) e doutorando em Literatura (THL-UNICAMP). Três livros publicados. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá), Cônsul dos Poetas Del Mundo para o Estado do Pará, Embaixador da Paz pelo Cercle Universal des Ambassadeurs de la Pax (Genebra-Suiça) e faz parte da AVSPE.




sábado, 6 de junho de 2015

Jornal Raizonline Nº 270 de 7 de Junho de 2015 - Coluna Um - Daniel Teixeira - O efeito borboleta


Jornal Raizonline Nº 270 de 7 de Junho de 2015 - Coluna Um - Daniel Teixeira - O efeito borboleta


Daniel Teixeira

 
O efeito borboleta, por aquilo que sei, faz parte das teorias do caos, coisas para as quais nunca pendi muito em termos de pesquisa, embora tenha tropeçado em derivadas ou copiadas, várias vezes.

Por princípio o efeito borboleta é composto de uma série de eventos conjugados ou seguidos cronologicamente, intervindo num dado campo ou para um dado campo, levando à progressão aritmética e/ou geométrica do seu desenvolvimento com vista ou convergindo para um dado efeito.

Aqui há anos achei bastante piada (semi trágica, aliás) quando um responsável por uma Divisão de Obras Públicas do Estado, disse que a causa da queda de uma passadeira elevada sobre uma estrada, queda essa da qual resultaram alguns feridos e alguns carros esmagados, que essa tal de causa tinha sido uma borboleta que tinha batido as asas algures na Asia.

Isto é visto com sentido de gozo, porque pior que andar metido a debitar teorias é pensar-se que se as conhece. Pelos vistos o tal de engenheiro arranjou o argumento que só não foi mais gozado porque se tratava de uma questão séria, com gente ferida e bastantes danos materiais.

Pois, a surpresa veio depois : não é que foi feita inspecção, género necrópsia, à dita passadeira arruinada e não se chegou a qualquer conclusão sobre a causa do evento?

Enfim, não vamos aceitar agora a história da borboleta mas vamos dizer que talvez (maybe) as causas da queda da ponte apenas pudessem ser vistas antes dela cair, o que pode parecer absurdo, mas ao fim e ao cabo vai de encontro àquilo que se pretenderia, ou seja, evitar a sua queda. Por outras palavras aqui a própria queda da passadeira «apagou» as causas que originaram essa queda.

Simples...não há nada de sobrenatural aqui nem de borboletas de asear inoportuno.  As coisas, quando vistas numa perspectiva ou numa dada situação podem apresentar, e apresentam pelo menos parcelarmente, resultados diferentes.

Pois bem, eu já tinha quase jurado a mim mesmo que não falava mais na crise financeira mas não posso deixar de dizer que o que disse acima se aplica inteiramente às leituras que se fazem agora dos resultados dos inquéritos e dos julgamentos mais em voga sobre corrupção, fraude, lavagem de dinheiro, etc.

Na verdade, nestes campos atrás referidos, ainda não assisti a um único resultado de um inquérito que apontasse as causas ou as culpas de quem quer que seja sobre factos considerados pelo menos reprováveis.

A minha ideia é simples: tratando-se de dinheiro, seria lógico que uma contabilidade, ainda que ficcionada por normas unificadoras, desse para fazer o percurso inverso para se detectar o ponto crítico onde as coisas começaram a descambar, ou seja, onde a borboleta começou a bater as asas.

Mas não, em quase todos os casos - não quero generalizar - os factos reprovados ao serem realizados (quando o foram) não deixam traços que permitam a sua reconstrução para efeitos penais, pelo que, muito a contragosto, acabo por ter de acreditar na borboleta.




sexta-feira, 5 de junho de 2015

Sexo - crônica de costumes, na música sertaneja...Por: Se Gyn


Sexo - crônica de costumes, na música sertaneja...

 
 Por: Se Gyn

A música sertaneja, ao contrário da música nordestina, por exemplo, nunca recebeu um tratamento adequado, criterioso e, desarmado da crítica musical, formada majoritariamente por gente que ouve MPB e, música estrangeira. A má vontade, começa na tentativa de separação entre a música do passado e, das décadas mais recentes, criando dois rótulos diferentes: música caipira, para a primeira e, música sertaneja, para a segunda.

No primeiro caso, o rótulo pode ser perfeitamente associado às imagens pintadas por Almeida Jr, onde o crítico enxerga o mundo do campo idílico de gente muito assemelhada ao Jeca Tatú, de Monteiro Lobato.

No segundo caso, uma música cheia de influências estrógenas, das raízes corrompidas, feita para o mercado, feita para o grande consumo - quando não está longe da verdade, pois o que era outrora o homem do campo, agora está morando nas periferias das grandes cidades, o que não significa que rompeu inteiramente com suas raízes. Nem uma coisa nem outra, mas o tema do meu texto não é este.

Quero demonstrar rapidamente aqui, as possibilidades que podem decorrer de uma boa pesquisa desarmada, sobre o acervo gravado de música sertaneja, desde os seus primórdios. Peguemos os costumes e práticas sexuais, como exemplo. Para os cultuadores da idéia de que a verdadeira música do homem do campo é a tal da «música caipira», esse assunto parece provocação, mas vamos lá.

Lá pelos anos cinqüenta - época em que ainda estava cristalizado o machismo e as músicas falavam de relações sexuais ditas normais, Raul Torres fez com pacífico uma música que se transformou num clássico, Cavalo Zaino. A letra é bucólica e, fala da paixão de um homem do meio rural por um cavalo de primeira linha. Mas, no meio da letra, há um verso misterioso, que diz: «...O macho que eu quero bem!». Isso passou desapercebido e, foi tomado de uma forma simbólica, pelos ouvintes de música sertaneja, fixados majoritariamente na zona rural.

No começo dos anos 70, quando os músicos da MPB exploravam a imagem andrógina e letras com vagas sugestões de experiências sexuais alternativas e, começava um impressionante êxodo da população do campo para as cidades, Tião Carreiro e Pardinho - em cujo repertório surgiram as primeiras manifestações sobre preconceito e diferenças raciais no Brasil, gravaram uma música em que um personagem oculto e, moribundo (situação diante da qual, seriam permitidas a ele certas liberdades ou arroubos) narra sua espantosa paixão por duas mulheres, dizendo exatamente o seguinte: «Oh, meu Deus, que mãe bonita/ oh, meu Deus que filha linda/ mulheres iguais a elas/ no mundo não vi ainda»... e, a certa altura, vão mais além, «Se eu me casasse com as duas/ oh, meu Deus, que maravilha/ Vivia num mar de rosas/ nos braços de mãe e filha!»

Já nos anos 80, enquanto no mundo do Rock nacional e da MPB já se fala direta ou indiretamente de relações homossexuais, Chitãozinho e Chororó gravaram uma música que, à parte a melodia modorrenta, fala da surpresa daquele que foi o homem do campo com a rápida mudança dos costumes e práticas sexuais, em «Amor a Três». O estribilho da canção começa meio indeciso: «Não querida, não!/ amor a três/ assim não consigo/ já estou sabendo/ que pensa em outro, estando comigo/ uma mulher e dois homens - é impossível/ adeus, querida...» mas, arremata com firmeza: «...eu vou partir nesta hora fique com ele agora/ viver em três não é vida!».

Dias atrás, ouvi uma música em que Daniel canta, de passagem, sobre gostos sexuais diferentes (se me recordo bem, tem uma parte assim: «...Se você gosta de homem e/ eu gosto de mulher - o que é que tem? O que é que tem?» ), mas, não vale muito a pena escrever sobre ela, porque, convenhamos, depois do atrevimento de Tião Carreiro e Pardinho, que invocaram o amor concomitante de mãe e filha - que envolve o crime da bigamia e, o conseqüente tabu do incesto, isto sob a invocação complacente de Deus, não há muito mais o que falar, há?

O goiano Odair José, com a sua «Pare de tomar a pílula» não passou nem perto em termos de provocação. Os sertanejos escaparam da censura, é claro, justamente por causa daquela visão preconceituosa do censor, o tipo urbano que, igual aos outros, achavam que música sertaneja era coisa de gente atrasada. Algo assim: «- o que podem fazer de mal esses capiaus, que vivem por aí, picando fumo e cantando musiquinha que fala de roça?»...

Se Gyn




quinta-feira, 4 de junho de 2015

O GALOPE LENTO DO TEMPO - Texto de Daniel Teixeira


O GALOPE LENTO DO TEMPO

Texto de Daniel Teixeira

Para começar esta crónica é preciso dizer que é necessário ter vivido com burros para ter memórias sobre burros, como é lógico. Eu tenho-as e muitas e dado aquilo que hoje sei e que outros que conheço não sabem lamento que nem toda a gente tenha passado, pelo menos uma parte da sua vida, com burros, mesmo que de facto tenham passado tempo a viver com «outros» burros.

E é neste aspecto que a coisa se torna paradoxal. Existe alguma vergonha em confessar que se viveu com burros, por pouco tempo que tenha sido, porque existe uma descriminação ridícula, porque é apenas verbal e de uso, contra o nome desses pobres mas sempre aparentemente felizes animais.

De um lado são considerados pouco espertos, o que não é verdade; deve existir de facto dentro da sua mente (se é que pudemos falar assim) uma tranquilidade neuronal muito semelhante à paz que todo o ser humano desejaria ter e uma aceitação da inevitabilidade do seu destino que pode parecer depressiva mas que vive dentro deles de uma forma harmoniosa.
 
Realismo, puro e simples, é o que eu acho que é : nada de ambições para desfiladas incomportáveis nem para liberdades excessivas e uma fidelidade aos parceiros a toda a prova.

Uma vez pedi um burro emprestado ao meu primo que os tinha a pastar num restolho: o que ficou teve de ser segurado na estaca e mesmo assim coitado acabou por cair dado que estava peado: o outro levou-me onde quería, às Eiras Velhas, a nossa hortinha perto do ribeirão, mas mal me distraí saiu em desfilada. Ainda corri um bom bocado sobretudo para ver se ele se encaminhava directo para o ponto de partida e lá ia ele, galopando de regresso certeiro.

Levar os burros a espojar era um dos meus trabalhos preferidos. Arranjava-se um bocado de terreno relativamente limpo de pedras e ervas e eles acabavam sempre por perceber: rebolavam-se pelo chão, coçavam as costas, podiam levar dez minutos nisso, relinchavam com aquele som cavo a que se chama zurrar, sacudiam a terra do pelo como um cão molhado e eu acho que eles acabavam sorrindo por segundos para depois voltarem à sua condição de burros, baixando a cabeça e ficando ali, quietos, sem capacidade de se movimentarem sem que nós puxássemos por eles.

Quando comecei a ir a Alcaria Alta o meu avô já tinha passado definitivamente de cavalo para burro tanto no sentido financeiro como no sentido real. Uma viagem de retorno sem retorno à vista e assim o burro era para ele o animal do presente e o animal do futuro. Cuidava deles com cuidado embora não fosse preciso muito para os manter contentes e felizes.

Tinha dois porque para lavrar é normalmente necessário parelha, sobretudo quando se trata de burros. Lavrar com um só animal só com muares ou cavalos. Estes últimos não se «gastavam» nessa tarefa por principio, mas nem sempre eram eminentemente decorativos e as éguas iam ao cavalo o que era uma garantia relativa de gerarem cavalos.

Pode parecer absurdo e para mim foi durante muito tempo que uma égua tenha um filho burro, por exemplo, ou um muar, mas era assim mesmo. Os muares, híbridos, como se sabe, não geravam, mas tinham a vantagem de serem excelentes animais de trabalho. Uma burra podia ir igualmente ao totoloto cavalar e depois era só esperar o que saía dali. A força dos genes comandava tudo...mas o meu avô só tinha burros, mesmo burros no masculino, e serviam para o dia a dia, para lavrar e gradear.

Gradear era, para quem não sabe, tentar afastar do terreno de cultivo as pedras que durante o resto do ano «nasciam» por força das enxurradas; a terra ia com a água, as pedras ficavam. Trabalho sempre anualmente repetido e agora lembro-me de uma personagem que não me podia lembrar naquele tempo. Sísifo foi condenado pelos Deuses gregos a fazer subir uma rocha até ao topo de um monte e deixá-la depois escorregar e ir buscá-la de novo. Comparativamente era isso que o meu avô e os outros lavradores do Monte faziam. Todos os anos o mesmo, tiravam pedra e esta (outra) voltava no ano seguinte.

Quando apareceram as máquinas, os tractores que tinham alfaias para lavrar e para gradear só interessava e só era possível que eles trabalhassem em espaços grandes. O mini tractor ainda não existia e mesmo que existisse ninguém o compraria senão os lavradores e nem esses os compraram, é claro. Eram por princípio possuidores de muita terra, pouco dinheiro e mão de obra relativamente barata. Hoje já não há senão a muita terra e o pouco dinheiro.

As máquinas que havia eram compradas por profissionais com dinheiro liquido suficiente para investir, normalmente emigrantes, que se deslocavam de monte em monte à hora ou á tarefa. Quando da minha segunda volta pelo Monte, cinco, seis anos depois, havia já bastantes terrenos tratados por máquinas.

Estas, cegas como eram, na ceifa, deixavam muito grão nos solos o que fomentava a visita da passarada: as cotovias, com a sua pequena popa no alto da cabeça eram as mais abundantes. Pardais também havia, toutinegras que eram assim chamadas por terem uma mancha escura no peito branco e outros. Os pardais civilizaram-se muito rapidamente e começaram cedo a conviver com o monte, fazendo ninho no telhado da escola primária.

Esta, não sei exactamente em que data foi construída, acabou por funcionar muito pouco tempo: cedo deixou de haver crianças para irem à escola, os montes dos arredores deixaram também de fornecer criançada e voltou tudo à primeira forma, aquela que a minha mãe tinha conhecido 50 anos antes: ir à escola a Giões para o primário, fazer o secundário em Faro ou Vila Real de Santo António para os poucos que tiveram essa possibilidade, muito poucos mesmo.

Mas as minhas memórias sobre os burros estão muito acima destas questões que apelido de laterais e contêm todo um conjunto de recordações que me levam de monte em monte, de ribanceira em ribanceira, de ribeira a ribeira, de actividade de trabalho a actividade lúdica, atravessando transversalmente a minha vida.

Pode dizer-se que consegui uma parte razoável do meu conhecimento do mundo de burro e por isso lhes estou grato, muito grato mesmo. Em certo sentido posso dizer que muito do que sei do mundo e da natureza aprendi porque os burros me levaram lá, me mostraram tudo o que havia para ver e tudo o que lá havia para aprender. Com eles aprendi também que é possível ser-se feliz com muito pouco, por exemplo.

O burro é o animal quadrúpede agregado às actividades campesinas que maior confiança nos pode merecer. Não a merece toda, a confiança, mas merece muito mais confiança do que um nervoso cavalo, uma temperamental mula, ou mesmo uma chata vaca que embica os cornos na nossa direcção nas estreitas azinhagas, não para nos fazer forçosamente mal mas porque é larga e não nos deixa espaço de passagem nem consegue virar ou recuar (essa sim é mesmo burra, geneticamente, por destino, diga-se) deixando-nos como alternativa a nós, humanos ditos inteligentes, o recuo, a retirada, a vergonhosa fuga por vezes quando a proximidade é demasiado próxima e a idade curta.

Com um burro diz-se «Alto!» alto e com bom som e o animal estaca e ali fica, parado, compreensivamente imóvel, à espera que nós passemos. Mas os meus burros, os burros que conheci, tinham outras qualidades, arrisco mesmo dizer que tinham todas as qualidades exigíveis a um burro e mais algumas que seriam exigíveis a muitos bípedes.

Anunciavam a sua chegada ao monte através de um sonoro zurrar, conheciam os melhores caminhos como ninguém, graças aos arreios só tinham duas velocidades, a primeira e a segunda, facilitando assim a condução e podiam ser cavalgados em pelo, com albarda, com sela até mas mostrando nestes primeiro e último casos todo o seu respeito pela condição do seu montador apesar da ausência dos arreados travões traseiros.

Um burro deixa-se por aqui ou por ali e vai-se buscá-lo quando se precisa que ele está ali mesmo ou um pouco mais além quando algum cardo ou uma erva mais apetitosa o puxou para a desobediente deslocação de poucos metros.

Tenho inúmeras recordações de burros, de momentos em que aprendi algo com os burros, dos momentos em que os burros foram meus mestres. Contarei um dia, ou irei contando, mas devo confessar que quando me lembro disso, do quanto que aprendi com eles, que nessas alturas que não são muito raras, tenho sempre muita pena que nem todos tenham tido a possibilidade de ter burros como mestres. 

Talvez o mundo fosse melhor, quem sabe..?