O menino do picolé - Crónica de António Carlos Affonso dos Santos - Acas
«... Essa noite tive um sonho que chupava picolé
Acordei de madrugada, chupando dedo do pé ...»
Acordei de madrugada, chupando dedo do pé ...»
Cantiga de roda antiga; de domínio público
E o roda do carro girava fazendo aquele barulhinho da areia deixada pela última chuva sobre o asfalto da Marginal Pinheiros.
-chiiippttxxxchiiippttxxxx chiiippttxxxx!!!!!!!!!!!!!!!!!
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Gotas de uma chuva fina tocavam o pára brisa, enquanto o rádio tocava uma canção qualquer da música chamada de «nova música sertaneja». A vontade era desligar o rádio, mas eu precisava de uma companhia no carro; função desempenhada pelo rádio «ching ling». Mecanicamente comprimi o dial do rádio com os dedos frios da mão direita, enquanto que a mão esquerda girava a direção no sentido do bairro Pedreira e Cidade Dutra.
O menino estava no ponto de ônibus, diante do qual, até outro dia era uma das portarias da Siderúrgica Villares. Fiz, num átimo, a resenha de minha vida: eu era pouco maior que aquele menino quando cheguei a São Paulo, aos treze anos de idade. Vim para trabalhar. Passados cinqüenta anos, ainda tenho que trabalhar... .
O menino chupava um picolé, talvez fosse de uva, pois pude ver sua boca arroxeada pelo corante do sorvete. Lembrei-me do verso da cantiga de roda. Meu carro, não havia percebido; estava trafegando por volta de cinco quilômetros por hora! Só então ouvi as buzinas dos carros que se postavam atrás do meu: eu estava atrapalhando o trânsito com o meu devaneio infantil. Engatei a terceira marcha, liguei a seta da direita e, enquanto meu carro ganhava velocidade eu ainda via o menino chupando picolé de uva no ponto de ônibus.
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