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sexta-feira, 20 de março de 2015

Jornal Raizonline Nº 265 de 19 de Março de 2015 - Coluna Um - O Dia do Pai - Por Daniel Teixeira


Jornal Raizonline Nº 265 de 19 de Março de 2015 - Coluna Um - O Dia do Pai - Por Daniel Teixeira

Por norma não gosto muito de escrever sobre mim embora toda a escrita que tenho espalhada pela Net em geral e por este Jornal Raizonline em concreto, diga sempre um pouco sobre mim.

Trata-se daquelas coisas às quais não conseguimos fugir mesmo que em muita ficção a presença da minha pessoa possa ser menos notada. Contudo ela está lá, pelos temas muitas vezes, mesmo os mais humorísticos e alguns surrealistas mesmo, e também por um factor ao qual se dá normalmente pouca atenção, o gosto: ou seja, e para este caso, o facto de gostar de escrever sobre algo, mesmo que esse algo apenas remotamente aponte para mim, já demonstra pela escolha uma opção minha e logo eu.

Prefiro o chamado low profile... gozar em pleno e sem interferências a minha querida insignificância.

É difícil, senão impossível, reconheço, obter isto : e estando nestes dias a fazer um pequeno trabalho sobre a importância daqueles que da lei da morte se libertaram trago aqui - repescado desse meu texto em elaboração - o caso do escravo de Camões, Jau, um pobre javanês que na minha opinião e dentro desta minha perspectiva da quase invisibilidade que defendo, teve o azar de ter sido escravo de uma celebridade ficando à sua fama agregado.

Assim e tendo em atenção que este jornal tem no seu dia de publicação a data de 19 de Março e que nessa data é o Dia do Pai, falar do meu pai seria também falar um pouco sobre mim uma vez que eu me revejo nele pelo menos numa parte larga daquilo que sou.

A parte em que sou diferente de meu pai deve-se talvez, ainda na minha opinião, ao facto de o meu pai ter vivido num tempo e ter falecido entretanto não tendo assim as possibilidades de ser meu mentor naquilo que não alcançou transmitir-me em vida.

Claro que há outras diferenças, mas essas, de uma forma bastante clara resultam do facto de ele ter podido dar-me a mim aquilo que os seus pais (e meus avós) não lhe conseguiram dar a ele.

Alexandre O'Neill (um dos meus poetas preferidos) foi um dia questionado sobre aquilo que gostaria de ter como epitáfio na sua sepultura e respondeu, claramente: «Aqui dorme um homem que dormiu muito pouco em vida: bem o merece agora!»

O meu falecido pai não tem um epitáfio destes: tem o seu nome, a referência aos que deixou por cá e um cão de cerâmica em memória aos vários cães que foi tendo durante a sua vida e que assim o acompanham tal como ele os acompanhou.

Um dia, talvez um dia destes eu acrescente algumas palavras àquilo que ele hoje tem, umas palavras simples mas com muito significado para mim: «Obrigado Pai por me teres sempre ensinado a pescar!» 



O conquistador da aldeia - Conto de Virgínia Teixeira


O conquistador da aldeia

Conto de Virgínia Teixeira


Ele tinha calças finamente cortadas na modista da aldeiazinha. A camisa, desabotoada ao nível do coração, deixava entrever um peito liso, duro e forte. O sorriso matreiro denunciava-lhe a condição, sem afastar as meninas. Tinha aquele jeito tão retratado nos livros, o jeito de homem vazio, dotado de um dom único de tornar cativa qualquer uma que o sentisse por perto. Mais do que nos livros, o seu encanto espalhava-se pelas ruas como um perfume ordinário que, apesar de tudo, todas queriam salpicar no corpo.

Era esse o pensamento que as tomava quando o viam passar. Queriam-lhe os dedos espalhados pelas suas curvas, as mãos sôfregas em todos os recantos do corpo e os lábios pousados no suor dos corpos excitados. Até a velha pensava assim. Vira o menino crescer, tornar-se homem, sabia-o de cor (só precisava adivinhar a proporção do tempo) e mesmo depois de tantos anos de cama vazia, quando o via passar ainda se lembrava do beijo atrevido que lhe dera, ainda menino, curioso com os peitos meio descobertos da viúva. Só ela sabia quanto lhe custara mandá-lo embora, ardente como nunca antes.

As moças, novas ainda, algumas quase crianças, sustinham as lágrimas ao vê-lo passar, de mala na mão. Algumas queriam-no de novo, mesmo as que tinham tido a juventude estragada por ele. Não esqueciam o seu sabor. As outras que ele, apesar do empenho em percorrer todas da terra, ainda não tinha conseguido levar para os matos, por falta de tempo ou oportunidade, amaldiçoavam a idade e continham a angústia ao vê-lo passar. Quando ele partisse os bailes e festas perderiam a cor e nenhum peito voltaria a disparar ao vê-lo entrar com o seu olhar galante e o sorriso traquina de sempre.

Ele andava, direito e altivo, despedindo-se de cada uma com sorrisos tão especiais quanto vulgares que muitas recordariam para sempre como momentos mágicos. Olhava as novitas, sedento como sempre, mas sem tempo para as acorrentar também. Outros viriam.



Ia deixar a aldeia. Ali, onde era o rosto de cada príncipe nos sonhos de moças e mulheres feitas, estava tudo acabado. Não havia motivo conhecido que explicasse porque se levantara um dia e anunciara a partida. Ia de pés firmes e nem mesmo os amigos podiam adivinhar o quanto estava aterrado, o quanto lutava para manter as forças.

Ao descer a rua principal, pela estrada rodeada de frondosas árvores, adivinhava os passos silenciosos que o seguiam e, a cada sussurro, aumentava as passadas, até descer toda a rua e passar os limites da aldeia.

A vida numa aldeia não é como noutros lugares. O mundo é mais pequeno, mas tão diverso quanto noutro lugar qualquer, provavelmente até mais.
Pedro nasceu ali e, acredite-se ou não, toda a vida do lugar mudou. Quando partiu, numa tarde de Setembro, as nuvens carregaram-se de cinzento e o Inverno mais rigoroso de há mais de vinte anos, chegou para derrubar, destruir e matar.

Eulália foi a última derrubada por ele nos matos dos arredores da aldeia. Foi das custosas, daquelas a quem tinha sido obrigado a declarar-se diante de toda a família a fim de provar o que, na verdade, não sentia.

Vestiu camisa engomada, de uma cor entre o salmão e o cor-de-rosa, que lhe assentava de forma surpreendentemente máscula, calças imaculadas denunciando-lhe as formas firmes e cuidadas, e calçou os sapatos de sempre, depois de passar parte da manhã a engraxá-los.

Para ele era ponto de honra, era sempre. Quando sorria a uma menina e ela escapava do feitiço, o seu orgulho tornava-se armadura para a Cruzada e jamais descansou enquanto não se enterrou em cada uma das presas. Eulália não foi diferente, era das mais difíceis, das que se achavam espertas demais para serem simples raparigas com vontades.

Viu-a numa festa da aldeia, com o seu vestido carmesim. Dançava como se não reparasse nos que lhe olhavam as pernas descobertas nos rodopios e o peito arfante a fugir-lhe pelo decote mal amanhado. O vestido era bonito nela. Nem deixava entrever as costuras cerzidas vezes sem conta, os remendos e folhos gastos. Não fosse por ali todos saberem que todos os anos desde que se fizera quase mulher, levava aquele trapo carmesim às festas e bailes, e Eulália poderia passar por moça do centro da aldeia ou mesmo da cidade próxima.

Mas não, ela vinha das quintas ali perto, de sítios próximos mas que ainda assim no Inverno eram impossíveis de deixar. Passava meses longe dali, da calma agitação do pequeno lugar, mas sempre que voltava, com o seu vestido carmesim ou outro trapo qualquer confeccionado nas noites frias, das sobras de outros vestidos ainda mais velhos, fazia-se notar.
 


Ele viu-a meio tonta pelo vinho bebido por detrás da Igreja, dançando, sorrindo, volteando tão rápido que as pernas se descobriam até às coxas.
Olhou-a matreiro, percorreu-lhe o corpo com a ardência do desejo e ela nada fez. Continuou a dançar, alegre e embriagada. O espinho de sempre rasgou-lhe a alma e, daí em diante, não desistiu e não fez mais do que segui-la e enleá-la na teia de sempre. De fios mais entrançados talvez, mas uma teia como outra qualquer.

Ela sorria-lhe com tanta desfaçatez quanto a que usava para lhe voltar costas e continuar a sua marcha; e não fugia dele. Ao invés de entender nisto um indício de aceitação, ele via-lhe no olhar o gozo e o espinho enterrava-se ainda mais. As outras mulheres olhavam-no mais uma vez em caça e, como sempre, ele não olhava em redor. Na sua frustração e orgulho ferido procurava às vezes as de sempre, as que nunca o mandavam embora nem lhe pediam demais, mas jamais planeava conquistar mais do que um coração no mesmo momento. Concentrava-se tanto que o que fingia sentir lhe parecia real e, por alguns instantes, deixava-se mergulhar na sinceridade da emoção. Depois via-lhes o peito e as pernas e perdia o coração.

Eulália tinha o rosto marcado pelo sol, mas a cor assentava-lhe bem. Os cabelos, de um negro baço de quem anda ao sol durante todo o Verão, andavam ao sabor do vento, selvagens. O corpo era pequenino, peito chato, só dois montinhos despontando altivos pelo vestido; as pernas meio acetinadas, cobertas por uma subtil penugem que as dourava de encontro à luz. As mãos acanhadas, dedos finos e quebrados do trabalho, unhas curtinhas rente à carne. Não era bonita, nem era fascinante, era menina ainda, com um jeito diferente apenas.

Já não era só menina, tinha olhar de mulher incendiada por dentro. Despertava com as curvas vulgares do corpo, desejo, e Pedro viu nela a magia que as outras viam nele. Ela era mulher, não era perigosa, apenas uma menina de olhar sequioso para se deitar nas ervas e tê-lo sobre si. Teimosa, apenas isso, mas ansiosa por ser domada. Mas, depois de tantas, ela foi a mais difícil de levar pelos carreiros escusos e a sua saia foi a mais pesada de levantar.

Levou meses, aproveitando que Eulália estava na aldeia, em casa dos tios, provavelmente para escapar ao calor intenso e ao trabalho árduo da quinta. Meses de palavras rebuscadas, perseguição incansável, dia e noite; idas decididas à casa, conversas sérias com a família, e sempre o mesmo fim… Os homens viam-lhe a luta e já riam do seu rosto acanhado e do sorriso cada vez menos altivo.

Viam-no parar diante da porta, benzer-se discretamente e bater, decidido a mais uma investida. Na taberna ficavam à espera que ele saísse, fazendo apostas e rindo. Deixavam as cartas e o dominó e olhavam a porta e as janelas. Cada movimento era motivo de exaltação, cada vulto passado pelas cortinas valia mais apostas.

Tempos depois ele voltava a sair, sempre com aquele sorriso acabrunhado, vencido. E eles viam-na, a Eulália, espreitando pela janela, com um sorriso estranho. Esta era das que sabia lutar e as garras afiadas estavam prontos para uma batalha dura. Nem ele estava preparado.

Depois de dois meses, faltando poucos dias para que a moça voltasse para a quinta, exasperado como nunca antes, enveredou pelo caminho mais estranho e árduo para si. Estava cansado das visitas a Eulália, em que ela lhe sorria e fitava com expressão de escárnio, mas em que afastava as pernas um pouco quando os deixavam sós, deixando-o antever o que desejava mais do que qualquer outra coisa que já tinha desejado na vida.
Conseguira roubar-lhe beijos a que ela correspondera com calma frieza e quase indiferença, e sentia-se cada vez mais extenuado pela caça. O caminho que escolheu foi o truque que nunca antes precisou usar.

Nessa noite vestiu-se com especial cuidado. Foi convidado a contragosto para jantar na casa dos tios de Eulália e levava no bolso do casaco oferecido pela velha viúva (o melhor que tinha) um anel que comprara na cidade próxima. Tinha o discurso bem decorado e até as expressões estavam treinadas.

Uma parte de si sabia que havia uma grande probabilidade da noite acabar em chacota e fracasso, mas recusava-se a aceitar a derrota sem lutar até ao fim e com todos os trunfos que podia usar, mesmo aqueles que pensara nunca ter de fazer uso.

Este era o desafio mais angustiante que já aceitara, e a carta final era o anel, um compromisso tão falso quanto os outros, mas muito mais perigoso.

Pareceu-lhe estranho o esgar de quase satisfação de Eulália quando o ouviu fazer o pedido. Reparou que a moça se controlou rapidamente e fechou a cara na indiferença de sempre, mas por um breve instante viu nela uma mulher como as outras.

A resposta veio numa voz quase gélida, ornamentada por um riso matreiro que voltou a reduzi-lo ao papel de homem humilhado. Sentiu-se encolher na cadeira enquanto ela desfiava um rosário de condições às quais, sem saber o que dizer, ele baixava a cabeça em aquiescência.

Eulália sentou-se diante dele, os tornozelos cruzados e a saia subida o suficiente para o deixar descortinar parte da coxa, e disse-lhe, sem rodeios nem gentilezas, que o sabia um vadio que não parava em cama nenhuma e jamais seria mais uma.

Com ela ele teria de esquecer as outras mulheres, deixar o jogo e encontrar a responsabilidade de um trabalho constante. Ele aceitou tudo, sem pensar mais de um momento, enlouquecido já com a visão da coxa daquela moça esquiva demais. Sabia-se demente mas não conseguia controlar o desejo e a obsessão que ela despoletara com aquela longa luta.

Nesse dia assinalaram o noivado perante a família dela com um beijo fugidio em que nem o calor dos lábios dela conseguiu sorver o suficiente para lhe aplacar a ânsia.

Eulália não chegou a voltar para casa. Ali ficou e a ela juntaram-se a mãe e uma prima, para ajudarem nos preparativos do casamento.

A prima Laura era uma mulher esguia, de pele alva e pequenas sardas que lhe tornavam o rosto vagamente comparável ao de uma menina traquinas, emoldurado perfeitamente pelo cabelo avermelhado, tão denso que parecia querer soltar o chapéu de palha rude que a protegia do sol da viagem.

Pedro estava cego de ânsia por Eulália, mas o olhar escapou-lhe quando a viu subir as escadas, com o peito farto escondido por rendas quase delicadas, se não estivessem tão gastas pelo tempo. Com a noiva a seu lado preferiu baixar o olhar e dedicar a Eulália um dos seus sorrisos mais sedutores, que ela recebeu com a gentileza glacial usual.

Mas Eulália estava feliz nesse dia. Foi receber a prima saltitando como uma criança e abraçou-a com um desvelo tal que o faminto homem se viu reduzido a sentir, pela primeira vez na vida, verdadeira inveja. A moça trouxe a prima pelo braço, conversando alegremente com ela, até encontrar Pedro no cimo das escadas. Mudou de expressão, olhou-o com um interesse novo, e apresentou-lhe a prima com uma delicadeza mais enérgica e entusiasmada do que lhe era costume na lida com ele.
 
O rapaz sentiu-se feliz com a mudança, e agarrou-se à alegria da noiva com um regozijo quase infantil. Encantado com o prodígio daquela tarde nem se demorou nos olhares a Laura, sem se deixar sequer reparar que ela lhe sorria afectuosamente, e que a todo o momento o fitava com um interesse descarado. Eulália falou com a prima pela tarde adentro, envolvendo o noivo na prosa, tornando-o motivo de conversa e falando-lhe da prima, com uma graça nunca antes vista.

Faltavam poucos meses para o casamento quando a mãe de Eulália e Laura chegaram, e, daí em diante, nunca mais ela foi com ele a moça fria e impávida que o vinha a torturar há tanto tempo. Tornou-se quase meiga e encetou, com ele e Laura, hábitos de longos passeios e noites passadas a jogar e a bebericar chá na cozinha da casa.

Algum tempo passado as humilhações e desdém pareciam coisas do passado e os momentos passados com a noiva adquiriram uma nova cor, uma esperança nova de a conseguir derrubar antes de ter de se comprometer realmente.
Mas Eulália ainda se escapava de abraços mais estreitos e recusava os beijos mais fervorosos, sem deixar no entanto de o provocar. Sabia-lhe bem aquele jogo, via-se no rosto dela quando se afastava dele com sorrisos traquinas depois de o deixar a arfar de desejo. Ele limitava-se a controlar o corpo e a dizer a si mesmo que podia esperar. Na verdade aquela luta começava a presenteá-lo com ferroadas agridoces que o magoavam tanto quanto aliciavam.

Uma tarde, deitados na erva de um campo, junto à toalha de piquenique, Eulália e Laura conversavam baixinho, enquanto Pedro fingia dormitar.
 
Olhava a noiva com uma atenção desmedida e, de súbito, o peito pareceu contorcer-se e o ar faltou-lhe. O medo fê-lo tremer e os ramos da árvore pareciam agitar-se com a agitação do homem. Ele viu-a, com uma flor presa numa orelha, um sorriso de menina e o ombro descuidadamente desnudo, e apercebeu-se. Se ela se entregasse a ele naquela noite não sabia se era capaz de a deixar, como fizera com todas antes dela.

Havia nela algo diferente, uma energia estranha que já o tinha enfeitiçado mais do que tinha pensado possível. Achava-se de pedra, capaz de seduzir e abandonar qualquer menina ou mulher que tivesse a temeridade de o deixar tomá-la.

Naquele instante descobriu que no peito tinha agora uma emoção diferente, maior, sufocante.

Quis dizer-lhe, mas não foi capaz. Já lhe tinha mentido tanto que receava que ela visse no olhar dele o mentiroso que fora. Preferiu esquecer o conhecimento novo que tinha dos próprios sentimentos e manteve o carinho e cuidado com a moça, imperceptivelmente mais genuíno.

Laura parecia entendê-lo. Atacava-o sem dó e, sem a prima por perto, dizia-lhe o que pensava dele. Sabia-o falso, mas não o acusava com malícia, parecia ter simpatia por essa característica dele e dizia-lhe sem pudores o quanto ele lhe despertava interesse, a afeição que vinha a desenvolver por ele e a graça que lhe achava quando o via com Eulália, desesperado e endoidecido.

De principio ele fugia dessas conversas, temeroso da influência que Laura poderia ter na prima, mas rapidamente compreendeu que podia descobrir nela uma amiga. Admitiu-lhe que tudo começara porque Eulália era uma moça difícil de derrubar nos campos, mas já não sentia o mesmo.
 
Custava-lhe mais admitir o quanto a queria agora do que admitir o quanto lhe tinha mentido. E Laura via-lhe no olhar a vergonha por amar, e sorria com candura, acariciando levemente os cabelos do homem, sem o deixar sentir-se acabrunhado por estas demonstrações de carinho. Todas as tardes conversavam mais e mais, e cedo os três tornaram-se amigos inseparáveis, cada um com laços singulares e ocultos que os ligavam uns aos outros.

Ouviu um toque leve na portada e despertou. Era manhã cedo ainda, o Sol parecia rasteiro e o frio da madrugada não dissipara por completo. Apressou-se a levantar, gritou para a porta que estava a caminho e foi-se vestindo descuidadamente pelo corredor. Na vidraça fosca da porta viu a silhueta feminina e apressou-se a abrir.

Espantou-se com o sorriso de Laura, esperando a expressão plácida de Eulália, mas convidou-a a entrar, preocupado com o motivo de uma visita tão cedo no dia.

Ela entrou vagarosamente, explicou rapidamente que não havia motivo de preocupações e recusou sentar-se, preferindo deambular pela sala, a observar cada canto com uma expressão pouco atenta. Na verdade, pensou Pedro, tinha a expressão de quem tem algo a dizer mas não sabe como.
 
Quis dar-lhe tempo para se recompor, para achar as palavras que lhe aprouvessem e seguiu até ao quarto para se vestir de forma mais decente.
Laura ficou na sala um pouco ainda. Pouco depois atravessou o corredor, entreabriu devagar a porta e viu o homem, de costas, com o peito ainda desnudo, os braços rijos e as costas largas e masculinas.

Abriu um pouco mais a porta e aproximou-se pé ante pé, sem o alertar da sua presença. Sentia-lhe o cheiro cada vez mais perto e sentia-se realmente inebriada. Tocou-lhe de leve nas costas e ele assustou-se, mas não soube afastá-la. Não era da sua natureza resistir, por mais que, no peito, não quisesse ceder.

Laura encostou os lábios devagar num dos ombros masculinos e deslizou-os em carícias, seguiu o pescoço e descobriu os lábios secos de desassossego do homem. Quando conseguiu sentir o calor da boca dele, aproximou apenas um pouco mais o corpo do dele, o suficiente para que ele lhe sentisse os peitos túrgidos contra a pele, e Pedro libertou-se.
A cabeça deixou de funcionar e o coração calou-se um pouco. Abraçou a mulher com uma quase fúria de quase desespero, completamente exasperado consigo mesmo, e jogou-a na cama.

Adormeceu com a boca a saber-lhe a um fel estranho, uma sensação tão estranha para ele quanto fora a ternura que sentira a olhar para a noiva no piquenique, rosto de menina matreira, com uma flor na orelha… Voltou costas a Laura, a amiga que pensava ter encontrado e por quem já tinha tanta estima, e fez por dormir. Não queria falar, perceber, tentar achar sentido para aquela madrugada.

Ao fim da tarde saiu. Foi até ao bar, onde há muito não ia, e bebeu o que pode para achar coragem para jantar com a família da noiva. Quando acordara Laura tinha saído há muito, sem deixar marcas da passagem por ali, e ele passou o dia a tentar esquecer.

No bar as conversas eram as mesmas de sempre, os jogos dos velhos continuavam em campeonatos intermináveis e o cheiro a álcool e suor mantinha-se intenso. Ele sentou-se num canto, o rosto fechado e o olhar longínquo, longe de si mesmo, e bebeu sem saborear os copos de aguardente que o dono lhe ia pondo à frente. Quando anoiteceu seguiu até à casa da noiva, tentando encontrar o equilíbrio do corpo numa atenção redobrada a cada passo que dava.

Laura abriu-lhe a porta reluzente, com uma energia contagiante, mas sem intimidade. Ao invés de aproveitar estar a sós com ele, levou-o imediatamente para a sala onde o esperava Eulália com uma disposição tão singular que se levantou para o receber com um beijo quase amoroso.
Pedro sentiu-se desconcertado, os remorsos a aumentar com o pensamento de que a noiva que não sabia que ele era um traidor, e que aquela prima era manhosa demais, mas estava-lhe na natureza aproveitar as benesses da vida enquanto as havia e naquele momento aquela mulher ainda era dele. Talvez amanhã a noiva o deixasse, mas naquele beijo havia uma ternura maior que se recusava a desperdiçar.

Para seu espanto foi das noites mais agradáveis entre eles e, assim que lhe passou o efeito da bebida, sentiu-se calmo no meio daquela família que já o recebia como parte deles, apesar das iniciais reticências.

Laura mantinha-se à distância, apenas o suficiente para não o coibir, sem nunca se afastar demais, mas cuidando que a prima estivesse com o noivo em todo o momento. Gostava de ver Eulália assim, estava feliz, finalmente satisfeita com o rumo da vida, com a ideia de casar com Pedro e fazia planos de futuro com um júbilo gradualmente mais intenso.

Laura conhecia melhor a prima que qualquer um e sabia-lhe os meandros de pensamento. Sabia em cada instante o que pensava e o que queria, e conhecia de cor todos os desejos e anseios da moça. Pedro era um bom homem e agora que estava apaixonado seria um marido fiel e trabalhador. Viveriam felizes o bastante e ela, Laura, seria uma peça desse casamento.

Quando a família se começou a recolher os três sentaram-se no alpendre a jogar cartas. Com a proximidade de Laura Pedro começou a sentir-se encurralado, mas Eulália recusou-se a deixar que ele se fosse embora, dispensando-lhe tanta ternura que o homem não soube negar-se.

Laura manteve o comportamento de sempre, uma sedução discreta que a ele agora parecia gritante demais. Quando ela lhe tocava no braço, como era seu costume, quase tremia e olhava a noiva com a culpa estampada no rosto. Esta olhava as brincadeiras da prima com carinho e nunca se incomodava, nem mesmo quando a prima abraçava o homem sem pudor em esconder a estreiteza do abraço. Ele sentia-se cada vez mais criança, prisioneiro de sentimentos nobres que detestava sentir e nunca antes conhecera.

Sentia-se como um peixe que estava a aprender a viver fora de água, e não estava a ter muito sucesso. Os pensamentos estavam num turbilhão, os desejos e sentimentos gritavam uns com os outros, e ele sentia-se simplesmente despedaçado.

Eulália era uma menina que já se sentia mulher, e era essa mistura que o deixava atormentado, incapaz de deixar de a fitar e sentir aquela dor estranha no peito. Laura era mulher, sem meninice nem ingenuidade nenhuma, uma mulher que conhecia o próprio corpo, e sabia os meandros do prazer de um homem.

A madrugada com ela fora diferente, e depois de muitos momentos passados com mulheres e meninas, ele nunca tinha sentido o que sentira com Laura, o prazer e a repulsa mais intensos que alguma vez sentira, acomodados num momento apenas.

Eulália estava feliz nessa noite, ele notou. Tocava-o frequentemente, e até se dignava a um beijo ou dois dados por vontade, quando normalmente era ele que os pedia ou roubava. E ele não pode senão calar a culpa, e deixou-se seduzir novamente por ela, a menina que o deixava enlouquecido o suficiente para se esquecer de si.

Na semana antes do casamento Pedro aceitou que não iria conseguir derrubar Eulália sem casar realmente, mas estranhamente não se importou. Uma parte dele sentiu-se mesmo excitada com a ideia de ver Eulália, com um vestido branco novo e um véu discreto, entrar na Igreja para se tornar sua esposa. Que sensação estranha essa, a de querer deixar-se acorrentar.

Bem, na verdade, uma parte dele ainda lhe garantia que o casamento não impedia que ele continuasse a ser aquele que mostrava às meninas o prazer dos corpos deitados na relva. Quando muito seriam apenas guerras mais difíceis, e ele sempre apreciara um desafio.

Laura aparecia de quando em quando, sempre de madrugada, e não o deixava negar-se. Tornava impossível a rejeição com os peitos arfantes, a perna longa suave, ou simplesmente a vontade com que se entregava a ele. E nas noites seguintes Eulália tratava-o com tanto carinho que com o tempo ele começou a desconfiar que não era apenas uma coincidência, mas não conseguia compreender o que motivava a mudança de comportamento.

Talvez Laura, também tomada pela culpa, fosse particularmente prestativa ou animasse a prima com a sua conversa entusiasmada. Pedro não conseguia evitar sentir-se fascinado por Eulália, tanto quanto não conseguia rejeitar Laura quando lhe aparecia, já meio desnuda, à porta do quarto.

Deixar a aldeia pareceu-lhe a única solução depois daquela tarde. Quando a noticia chegasse (e chegaria, chegava sempre) à aldeia, ele seria um desgraçado, nada mais do que um tonto apaixonado que se tinha deixado trair da forma mais reles possível.

A ideia de partir assustava-o, mas ficar seria ainda mais difícil. Tentaria a sorte na cidade grande, e se não desse certo, escolheria uma aldeia ao calhas para começar de novo. Agora que se encontrara novamente, só queria voltar a ser o homem que sempre fora. O homem que desde menino soubera encantar as mulheres e meninas, e que se deitara com elas sem remorsos nem emoções, apenas sensações, apenas dois corpos a saciar uma vontade grande demais para calar.

Esqueceria aquele último ano, esqueceria o caminho da aldeia, a viúva que o olhava lascivamente desde menino, as meninas que tornara mulheres e as que lhe faltavam, esqueceria o caminho à saída da aldeia onde havia um recanto escondido perfeito para se perder. Esqueceria a conversa animada dos homens na taberna, e as apostas que fizeram sobre ele e as suas conquistas. Esqueceria o gozo e a vergonha, e as emoções que Eulália o fizera sentir. Esqueceria Eulália assim que passasse o limite da aldeia. Esqueceria Laura uns metros antes. Esqueceria aquele ano de vergonha.

No dia do casamento parecia haver mais lágrimas do que sorrisos. As meninas e mulheres da aldeia sustiveram o fôlego em uníssono quando o padre perguntou a Pedro se ele aceitava Eulália. Algumas não conseguiram evitar fungos e murmúrios quando ele finalmente respondeu. Os homens dividiam-se em lamentos e alegria, dependendo da aposta que tinham feito.

Eulália estava particularmente feliz nesse dia, e parecia apenas uma moça como as outras que, depois de muito custo a dominar, parecia ter encontrado o carinho que ele tanto ansiara. Talvez não a paixão, essa ele tinha pelos dois, mas isso seria fácil de lhe ensinar. Era apenas uma menina, afinal.

Saíram da igreja de braços dados, ele com um sorriso tão largo que parecia transformar-lhe o rosto, ela com um sorriso de contentamento adequado. Laura nunca parecia estar muito longe, sempre a ajeitar o vestido ou o véu da prima, e só os deixou quando entraram no carro para ir para a festa.

Pedro estava inquieto, ansioso, incapaz de esperar muito mais e, ao invés de seguir para a fronteira da aldeia onde a festa os esperava, voltou para um caminho que conhecia bem e onde sabia que não seriam encontrados. Eulália pareceu compreender desde logo a sua intenção, mas não se negou, apenas sorriu. E foi assim que Pedro conseguiu finalmente levantar a pesada saia de Eulália, sem sequer se importar com as manchas da relva que lhe marcaram o vestido.

Pedro viu-as na noite do casamento. Enquanto esperava pela noiva para se deitar com ela na cama de matrimónio, ainda não satisfeito o seu desejo por ela, pensava apenas no sabor da pele dela, no calor inesperado dos beijos daquela mulher que sempre lhe parecera tão glacial, na energia dos movimentos que o deixaram atordoado, pronto que estava para uma menina assustada que não sabia o que fazer.

Pensava no cuidado com que ela o instigara a tocar-lhe, na sabedoria pouco escondida sobre o seu prazer. E tentou afastar os receios, os momentos em que uma voz lhe dissera baixinho para fugir, para perguntar… Mas não quisera, claro que não. Era a sua esposa. Palavra estranha essa. Sabia-lhe a fel nos lábios.

Quando ela finalmente veio para o quarto, Laura vinha com ela, ambas de roupa de dormir, bonitas camisolas bordadas a renda branca. Pareciam duas noivas inocentes e virginais. Mas Pedro, quando finalmente compreendeu o que a vida lhe estava a presentear, sentiu-se destroçado.
 
Se não amasse Eulália como tinha aprendido a amar, seria sem dúvida o homem mais abonado da aldeia, mas não conseguia afastar a dor da traição. No momento em que viu Eulália e a prima de mãos entrelaçadas, o coração partiu-se e deixou escorrer o rio de emoções que o vinham a dominar há meses.

O amor por Eulália, a culpa, a vontade de ser um homem como os outros, o carinho, a ternura, a esperança… Sentiu todas as emoções a esvaírem-se e sentiu-se mais leve a cada instante. Naquele momento reencontrou o Pedro de antes, o Pedro que não se deixava dominar, mas dominava, o que não se deixava encantar, mas encantava, o que seduzia e se deixava seduzir por vontade.

Na manhã seguinte fez a mala e partiu. Deixou as duas mulheres a dormir entrelaçadas na cama, saciadas, e deixou-se parar apenas um instante para recordar o rosto da mulher que o tinha conseguido vencer. Decorou cada feição, cada milímetro do seu corpo, para se lembrar da visão do perigo. Para nunca mais se deixar vencer.

Via as meninas escondidas nas janelas, e a viúva com uma lágrima ao canto do olho, via as mulheres casadas que tinham sido dele, e aquelas que ainda sonhavam com ele, e sorriu-lhes a todas com o sorriso traquina que lhe era característico.

Encontrou forças para um sorriso especial a cada uma, um breve instante de memórias guardadas, uma despedida única.

Desceu a rua principal da aldeia, mala na mão, o peito ainda dorido e o passo apressado, e ao passar o limite da aldeia, esqueceu-as a todas. 




HAJA PACIÊNCIA - Texto de Liliana Josué


HAJA PACIÊNCIA

Texto de Liliana Josué

I

Cá estou eu, mais uma vez, para denunciar outra peculiar vivência. Não vou tratar deste assunto com poesia, em forma de conto e muito menos com punhos de renda, vai ser relatado tal como aconteceu.

No verão, mais precisamente em Junho, fui chamada a comparecer a uma consulta médica no Hospital dos Capuchos por indicação e pedido da minha médica de família, por sinal uma ótima profissional, com a finalidade de ser operada à vesícula.

Nessa mesma consulta correu tudo muito bem, o médico ouviu-me atentamente, registou o essencial e mandou-me fazer os exames da praxe: RX tórax, análises e consulta de anestesia, informando-me que depois de tudo concluído deveria ser chamada para a intervenção entre trinta a quarenta e cinco dias, ou seja, cerca de mês e meio.

Como esse espaço de tempo ia cair sobre as minhas férias pedi ao médico que tivesse a gentileza de adiar a dita por um mês, ao que ele acedeu prontamente registando a altura exata em que iria ser operada, em Outubro de 2014. Até aqui estava tudo certo, mas o tempo foi passando e o mês de também. De início não me preocupei muito pois sabia que poderia haver algum atraso nos processos de internamento.

A certa altura, adoeci e fui novamente à minha médica para ser observada e medicada convenientemente. Ela, já minha conhecida de há muitos anos, e na qual deposito a minha confiança, foi verificar a fixa onde tem assente todo o meu historial.

Entretanto interrompeu a procura e perguntou-me se já tinha sido operada (pois estávamos em Fevereiro). Eu respondi na inocência dos ignorantes que ainda não tinha sido chamada. A médica voltou à minha ficha (pois como sabem agora há cruzamento de informação entre hospitais e centros de saúde) e pôs-se em campo na busca da data marcada para esse efeito.
De início não encontrou nada, mas eu insisti no sebastiânico mês de Outubro que por fim lá apareceu já muito envergonhado e amarelecido. Parou um instante, pensou uns segundos e por fim disse-me: “Isto está esquecido no hospital, lamento mas tem de contatar com eles”. Suspirei contrariada mas fiz o que ela me mandou.

Como não tenho todo o tempo necessário para andar a correr hospitais em busca do meu processo esquecido, tomei as minhas providências no sentido de resolver a questão telefonicamente.

Abreviando a narração, acrescento apenas que passei mais de 15 dias a telefonar para variadíssimos números sem obter qualquer resultado. Pois é, diziam-me sistematicamente não existir qualquer processo. Aqui a situação tornou-se ainda mais feia e confusa, pondo-me a cabeça e a ansiedade às voltas.

Estava completamente perdida, decidindo finalmente ir mesmo ao dito hospital, que também podia ser outro, (pois e médico dava consultas e operava num e fazia urgências noutro).

Mas, felicidade suprema, numa derradeira tentativa de contatar com ele o milagre deu-se, o senhor doutor falou comigo e ficou um tanto pasmado por eu ter tido tanta dificuldade em contatá-lo visto não ser comum tal situação.

Sim, claro, lembrava-se perfeitamente de mim, que não estava nada esquecida mas que havia muitos doentes…, concluindo, marcou-me a intervenção para uma semana depois, logo assim, sem mais rodeios. No dia indicado apresentei-me no Hospital dos Capuchos às nove horas da manhã.
Finalmente iria ser resolvido o meu problema vesicular.

II

Dividi este assunto em três partes para não se tornar cansativo, no entanto umas sem as outras também não fazem sentido.

Fui levada pela minha filha, que sempre simpática e solícita me acompanhou passo a passo. Aproximei-me do guichet , informei já ter chegado e a simpática senhora que estava no atendimento pediu-me para me sentar nas cadeirinhas em frente para que, logo que fosse oportuno poder fazer a minha inscrição.

Note-se que aquele sítio não era uma sala de espera mas um corredor onde as correntes da ar pareciam cobras de gelo envolvendo-nos as pernas e o resto do corpo. Aos poucos a tensão nervosa foi aumentando, tentando ingloriamente a minha filha apaziguar-me. Sem pingo de paciência vi chegar as treze horas.

Ainda mais descontrolada dirigi-me novamente ao guichet pedindo para falar com o meu médico. A funcionária, já muito atrapalhada, informou-me que ele estava perto e que ia chamá-lo para falar comigo. Voltei a sentar-me com a cara em brasa e uma garrafa de água fria que ia rolando por todo o rosto pois o jejum já se fazia sentir e bem, mas o médico não aparecia.

Desorbitada voltei a pedir à infeliz funcionária que queria mesmo falar com o meu médico, ao que ela respondeu já lhe ter dado o recado e só ele sabia porque ainda não tinha vindo. Aqui eu já me encontrava transformada num “monstro” quase indomável.

Inesperadamente eis que o médico apareceu junto de mim com um ar de quem já passou por aquilo um incontável número de vezes. Muito afogueada perguntei-lhe porque é que ainda estava naquele corredor miserável e sem saber de nada (isto andava pelas catorze horas).

Ele, com um ar tolerante, resignado e calmo disse-me que dado o adiantado da hora podia beber um golinho da água para enganar a fome e a sede.

Eu, no meu desespero, perguntei-lhe se realmente iria ser operada, ou não, visto ser tão tarde e ainda ter pessoas à minha frente para o mesmo fim, não falando do desconforto total daquele corredor onde não se podia descansar minimamente, ao que ele me respondeu: “Operada vai ser, mas só lá para o fim do dia, ainda está aqui porque não há camas disponíveis na enfermaria, estamos à espera que surjam altas”.

Fiquei de boca aberta a olhar para ele, acabando o mesmo por acrescentar: “Mas se quiser pode não ser operada hoje, pode adiar para daqui a uma semana quinze dias…” ainda mais atónita fiquei mas pus essa hipótese, a minha filha num ato reflexo quase gritou:” Nem penses nisso, tu não vais desistir!”.

Eu tremi e questionei novamente o médico: “Senhor doutor, se eu marcar nova data pode acontecer o mesmo que hoje?”, ao que ele respondeu resignadamente que sim. Claro que não desisti. Ele apertou-me a mão complacente informando que a qualquer momento vagaria uma cama e retirou-se .

Por volta das dezassete horas chamaram-me para a inscrição e pouco tempo depois fui finalmente chamada para o internamento. Quando dei por mim encontrava-me no pavilhão dos homens, mas no recobro, que segundo agora sei é misto mas na altura não sabia. Só aí havia camas.

Eu não queria acreditar que estava a viver tudo aquilo, a situação desde o início era Kafkiana e eu nada podia fazer nem sabia como encarar. Ali fiquei deitadinha e sossegadinha mas, ao menos, já de soro enfiado na mão, assim a fraqueza suportava-se melhor. Entretanto uns gemiam, outros diziam que morriam e outros dormiam apenas. Claro, eu estava num recobro, era de se esperar.

Estava-me a esquecer de aqui deixar registado de já lá se encontrar a senhora que chegou antes de mim, sem ser operada, exatamente nas mesmas circunstâncias, e mais tarde entrou outra já operada. A partir daquele momento deixei de me afligir, senti que o abismo tinha acabado ali, tudo o que viesse a seguir era uma história que eu iria contar.

Fui operada por volta das dezanove horas e quarenta minutos. Toda a sala e o local onde me deitaram eram gelo, nem sei como as pessoas não se constipam, mas antes de adormecer, a tiritar de frio, e já com o efeito da anestesia alguém me disse que assim tinha de ser para evitar o desenvolvimento de vírus e bactérias, entendi e aceitei a explicação, era perfeitamente compreensível tal desconforto e já não dei por mais nada.

A operação correu lindamente e voltei para o recobro misto. Aí já pouco liguei a isso. Passei lá a noite e toda e parte da manhã. Finalmente fui para a enfermaria perto da hora do almoço. Almocei e como já podia andar e não tinha feito intolerância aos alimentos deram-me alta. Vá lá, ainda passei umas horas na enorme enfermaria de lindos azulejos creio que do seculo XXIII, cheia de senhoras aconchegadinhas. Parecia um gineceu em decadência. Essa noite já fui dormir casa da minha filha.

III

Do fundo do meu coração agradeço ao médico que me acompanhou , a toda a equipe que me operou, aos enfermeiros que me assistiram e a todo o pessoal auxiliar do Hospital dos Capuchos. Trataram-me dignamente e muito profissionalmente. Da minha parte têm total admiração e respeito pois trabalham em situações caóticas mas dão conta do recado. Coisa que noutro hospital não aconteceu, na parte das urgências, mas agora talvez consiga dar um certo desconto.

O meu dedo é apontado, isso sim, ao nosso Sistema Nacional de Saúde. Os utentes são tratados como seres inferiores (Filhos de um Deus Menor), encalhados à porta do hospital e depois atirados para um buraco onde se possa colocar uma cama (e ainda termos direito a cama já não é mau).
Senhor Ministro da Saúde, experimente ou mande experimentar algum amigo ou familiar seu este tipo de situação, só assim, talvez entenda, o mal que está a fazer aos portugueses. Sabe o que é sentir que vale “nada”? Que é uma “coisa” que anda no hospital aos baldões? Que representa num “transtorno” e “peso” público?...

Senhor Ministro da Saúde e restante Governo, não tratem tão mal quem trabalha nos hospitais. Médicos a operar com cargas horárias enormes disfarçando o cansaço e ainda dando um sorriso e apertos de mão, enfermeiros atenciosos mas que já pouco conseguem ouvir, auxiliares de corpo moído… enfim tanto ainda havia mais para lhes dizer mas fico-me por aqui.

Acrescento apenas que se não lutamos todos (utentes e profissionais de saúde), pelos nossos direitos, qualquer dia não haverá mais dia.

18/02/2014

Liliana Josué




TENHO SAUDADES DO MEU PAI... - Por Joaquim Nogueira


TENHO SAUDADES DO MEU PAI...

Por Joaquim Nogueira

carta ao meu pai

"...breve, vais fazer 29 anos que já não estás cá, que já não estás a meu lado mas também não podes, não é ?... Estás noutro local, um local para onde foste já há algum tempo, um local de sossego, de paz, não é ?...

Tenho saudades tuas, pai !... Lembras-te do dia em que partiste, do dia em que nos disseste até breve ?... Lembras-te dos dias em que sempre estiveste a nosso lado, lembras-te de tudo de bom que se passou antes de ires, lembras-te de tudo de mau que se passou antes de ires ?...
Recordas o dia em que eu nasci, recordas o dia em que passaste ao estatuto de pai ?... Sei perfeitamente que te recordas e que só por isso te valeu a pena viveres; sei que viveste em função dos teus, daqueles que faziam parte da tua própria vida, daqueles que eram a razão da tua existência!...

Sei muito bem o quanto sofreste por mim e por todos os teus; sei perfeitamente o quanto lutaste para que nada me faltasse, para que tudo estivesse sempre bem... Lembras-te do dia em que te faltou algo para que eu não sentisse essa falta ?... Lembras-te do dia em que não comeste para que eu tivesse comida ?... Lembras-te do dia em que poupaste nos cigarritos para que tivesse dinheiro para o meu tabaco ?... Lembras-te do dia em que tiveste de pedir a um amigo para teres dinheiro para mim ?...

Lembras-te do dia, de todos os dias da tua vida em que passaste mal para que em todos os dias da minha vida eu passasse bem ?... Lembras-te ?...
 
Vai fazer 29 anos que partiste...
 


Hoje, dia 19 de Março é o dia do pai; o dia em que os filhos dão prendas aos pais; o dia em que os filhos beijam os pais com amor e carinho e lhe oferecem uma lembrança para lhes lembrarem que são pais e que só por essa razão vale a pena viver !...

Hoje ainda é o teu dia, pai; só que nunca na vida te dei uma lembrança, meu pai; só que na vida que contigo e a teu lado vivi, eu nunca te dei uma prenda...

E o meu remorso é a única prenda que hoje dia 19 te posso dar; o meu sentimento de desespero por nunca o ter feito, especialmente , pai , porque nunca tive a coragem de te dizer o quanto te amei !...

E neste dia em que mais uma vez deveria ser eu a dar-te uma prenda, mais uma vez és tu a dar-me algo que sempre te pedi: o teu perdão!...
Obrigado pai!..."

teu filho




quinta-feira, 19 de março de 2015

Poesia de Maria De São Pedro


Poesia de Maria De São Pedro

 
Poema II

Enquanto o áspero da tua barba
de dois dias
não roçar no meu rosto…
Enquanto a tua boca não esmagar a minha
num beijo bravio e infindo…
Enquanto o teu corpo moreno
não se enroscar no meu
e a tua voz rouca não suspirar loucuras…
Enquanto não mergulhares no meu pescoço
e me farejares em instinto de Homem-Lobo…
Eu vou acordando
nas longas madrugadas frias
só e mal amada.


OUTONO EM LISBOA

Corriam palavras outonais,
breves poesias murmuradas,
folhas laranja verde-seco
voando leves na aragem gélida.

Queria um café quente,
desesperadamente quente.
Uma sala cheia de gente e fumo,
com cheiro a lareira
e bater de copos
num balcão.

Queimar-me num sopro
dentro de uma chávena de café.
Acender um cigarro e perder-me
em memórias simples.
Um piano.
Uma voz rouca dilui-se em lembranças
de cenas
que jamais existiram.

Que tosse estúpida!
Tenho de deixar de fumar
vagamente...

Aquele fulano ali parece...
Esquecera-me
que tinha morrido dois anos atrás.
Será que resolveu mostrar-se...
assim?!
Apenas e só
um efeito de sombra-luz.
Numa tarde chuvosa em Lisboa

Quero telefonar-te.

Quero telefonar-te.
Ter a violência gratuita
do teu “olá” sussurrado
numa antecipação de cóleras, ódios
e Amor reprimido.

Quero telefonar-te.
Quero escutar a tua respiração.
Quero sentir o teu perfume.
Quero odiar-te.
Quero amar-te.
Quero esquecer-te.

 
PASSAGEM

Aragem mansa insinuada em nevoeiro
enruga a seda do teu manto pesado.

Espectros, fadas e gnomos disputam
o teu olhar lânguido,
velado por rendas milenares e diáfanas.
Aves do paraíso pousam leves, descuidadas,
em bandejas de miosótis e alecrim.

A intemporalidade reacendendo-se,
sulca portais de eternidade.
Sonhos naufragados despertam tímidos
por entre colunas cobertas de conchas
e algas vermelho-sangue.

Sussurros e suspiros esvaem-se
nas longas roupagens de Invernia.
Duendes e feiticeiras emitem sons
que arrepiam a alma.

Salpicados por cascatas de prata líquida,
os Meninos do Amanhã surgem da bruma
e num espanto essencial, cristalino,
soltam gargalhadas de Amor.

Portais divinos sulcam paredes
de pedra dura,
desabrochando em luzes vibráteis
que entontecem e encantam.

Será o meu caminhar pelas estrelas,
partilhando contigo a mesma saudade
num cálice de rubi
com sabor a maresia.
E na intemporalidade absoluta
dissolver-me na tua paixão.




A Páscoa no Algarve

A Páscoa no Algarve

Recolhido em «Marafações de uma Louletana»


Aproxima-se a Páscoa, mais uma festividade que, consoante a região do país, adquire aspectos próprios. No Algarve, algumas das mais interessantes tradições de Páscoa têm, lamentavelmente, sido perdidas. No entanto, nada nos impede de relembrar velhos tempos, reavivar as memórias e quem sabe recuperar algum desse valioso espólio etnográfico.

Comecemos pela chamada procissão de Aleluia, cuja maior expressão na actualidade, no âmbito algarvio, consiste na “Procissão das Tochas” em São Brás de Alportel.

No início do século XX, a procissão de Aleluia estava um pouco espalhada por todo o Algarve. Em alguns lugares revestia-se de grande importância e chamava-lhe “procissão das flores”.

Nesta procissão participavam as irmandades com as suas opas, velas (floridas ou não), estandartes, lanternas e palio. As crianças iam vestidas de branco e espalhando flores pelo caminho. Os jovens e adultos, à frente do palio, envergavam todos uma opa e ostentavam uma tocha. O povo seguia atrás do palio.

Durante a procissão, o grupo de cantores (clérigos ou não) cantavam antífonas e o hino pascal em cinco paragens diferentes. No regresso à Igreja era cantada, sempre em latim, a antífona mariana “Rainha dos céus, alegrai-vos, aleluia”. Após a bênção do Santíssimo Sacramento celebrava-se a “missa de festa” com sermão.

Em Loulé ainda se conserva viva a tradição da Procissão de Aleluia, no entanto, sem o esplendor de outrora. Noutros tempos, normalmente, esta procissão processava-se da seguinte forma: antes da missa, a procissão saia com o Santíssimo Sacramento e nela se incorporavam muitas crianças que levavam uma campainha ou esquila. Num ambiente de festa, com as campainhas a tocar, anunciava-se a Ressurreição do Senhor. A banda de música local, nomeadamente a Banda Filarmónica Artistas de Minerva, por vezes, participava na procissão. Durante o trajecto cantavam-se os cânticos pascais.

O folar é uma das tradições que se conserva e que está intimamente ligada à Páscoa. As famílias fazem folares (podem encontrar a receita aqui no blog) para oferecer aos familiares ou a pessoas amigas. Em diversas zonas algarvias, a tradição dita que na segunda-feira de Páscoa se vá até ao monte ou para junto de uma ribeira comer o folar. Quanto à confecção do folar, não existe conformidade. Uns fazem-nos com canela, outros com muita erva-doce ou mel. Quando se usa mel ou canela fazem-no em camadas e ao cortar-se o bolo surgem rodadas onde sobressaem esses ingredientes. Este tipo de folar é mais vulgar em Olhão e Faro. Os folares podem também ser ornamentados com ovos inteiros, o que comercialmente já não é permitido, mas ainda se encontra nos folares feitos em casa. Na aldeia de Alte, para além dos folares, os bolos folhados são outro dos doces típicos desta quadra.

Também associados à Páscoa, os ovos têm igualmente um sentido simbólico. Cristo venceu a morte saindo do túmulo. O ovo, uma espécie de túmulo, recorda a vida que ressurgiu da morte. Nos nossos dias, continuam a ser utilizados os ovos mas o povo desconhece por completo o seu sentido religioso que se foi perdendo.

Depois dos exageros cometidos durante a época carnavalesca, a Quaresma era vista como um período em que se devia manter o jejum e a abstinência de certos alimentos. A carne era um desses alimentos, sendo que estas restrições alimentares e o hábito de jejuar constituíam um autentico tabu na sociedade tradicional, nomeadamente no mundo rural. Em algumas regiões algarvias é comum a ideia de que na Páscoa não se deve comer ave de pena (não sei bem qual é a ave que não tem penas, mas enfim), porque o galo denunciou, por três vezes, a negação de Pedro. Como normalmente a Páscoa coincide com a época das favas e ervilhas frescas, é vulgar comer favas à algarvia ou ervilhas com ovos durante este período.




Uma outra tradição ligada a esta quadra festiva eram os “contratos” da Páscoa. Chamava-se a este ritual “Fazer o Contrato” e processava-se o mesmo da seguinte forma: um dos contratantes, crianças, jovens ou adultos, perguntava a um parceiro “queres fazer contrato comigo?” e se o outro aceitasse entre ambos celebrava-se o “contrato”, combinando à partida o número de amêndoas em jogo que seriam pagas no Domingo de Páscoa. O “contrato” era celebrado com o dedo mindinho de cada um dos pares entrelaçados e em movimento enquanto os mesmos diziam “Contrato/Contrato/Contrato faremos/no Sábado de Aleluia /Ofereceremos!”. Depois desta “celebração”, no Sábado de Páscoa, cada uma das partes se escondia da outra, até que um dos contratantes apanhasse o outro desprevino e lhe gritasse “Oferece”! Quando isso acontecia estavam as amêndoas ganhas. Esta tradição, praticamente em desuso, conheceu diversas versões consoante a região em que era celebrada.

E aqui ficam mais alguns apontamentos sobre tradições e costumes ligadas à celebração da Páscoa no Algarve.


Nota:

1. Este texto foi escrito com base nas seguintes fontes:

- JERÓNIMO, Rui; DUARTE, J. Cunha, “Algarve: Tradições musicais –III”, Faro ; São Brás de Alportel, Grupo Musical Santa Maria ; Casa da Cultura António Bentes, 1997.

- FERNANDES, Aurélia, “Gastronomia Tradicional do Concelho de Loulé (1.ª parte do século XX)” in “al-ulyã”, n.º 2, 1993.

- http://alcoutimlivre.blogspot.pt/ (nomeadamente post intitulado “Os ‘Contratos’ da Páscoa” da autoria de Amílcar Felício).




O CHICO ARTUR - Conto /Crónica de Daniel Teixeira


O CHICO ARTUR

Conto /Crónica de Daniel Teixeira

O Chico Artur casou com uma senhora (Inácia) residente e natural de Alcaria Alta. Ouvi falar algumas coisas do pai dela, comerciante de algum relevo proporcionado e vendedor de uma coisa que pelo que me apercebi dava estatuto : o guano, nitrato do Chile, era pago a pronto e vendido em quantidades variáveis ao longo de todo o tempo da lavoura e não havia devolução.

Havia empate de capital, risco, mesmo pequeno, mas numa terra em que não havia praticamente dinheiro «vivo» o facto de ter capital era sempre relevante. O negócio, depois do seu falecimento foi retomado pelos lavradores.

Tinha ainda um armazém pegado à casa onde em alturas próprias se realizavam bailes: com os meus 9/10 anos, tentei entrar num mas alegadamente a festa era para maiores de 18 anos: ouvi no entanto o toque do acordeão nas mãos de um exímio mestre que a minha mãe dizia só saber tocar «fon, fon» e que «quanto ele mais fanfonava mais depressa o pessoal bailava».

Da mãe da Inácia nada ou quase nada sei mas é provável que ela existisse em vida ainda durante o tempo da minha infância só que um e outro (Pai e mãe da Dª Inácia) se me varreram do campo das imagens que a mente recorda.

A Inácia, alguns anos mais nova que a minha mãe foi quem eu sempre conheci a tomar conta da mercearia e taberna do Monte. A organização do balcão era bem parca: a maior parte das coisas que se queriam comprar, e normalmente sabia-se o que havia na Ti Inácia, estavam algures estacionadas em dois quartos / armazém, um com entrada logo atrás do balcão e um outro á direita do fim do balcão em frente de quem entra. Havia uma outra porta, esta para o quarto do casal (logo à direita) e provavelmente ou seguramente havia mais divisões lá para trás.

Uma recordação que eu guardo é do tempo da caça, nos dias permitidos, em que os caçadores iam à taberna e se deparavam com cerveja quente: havia uma alternativa que era algumas garrafas que estavam dormindo num balde afundado no poço das traseiras o que pouco alterava a situação. Mais tarde vi por lá o primeiro frigorífico a gás da minha memória.

O sistema de compras no Monte estava escalonado de acordo com o hábito: açúcar, fósforos, petróleo, latas de conserva de peixe e mais algumas coisas assim. Havia uma estante atrás do balcão com tabaco e garrafas de aguardente e vinho. Não era muito variado o stock porque na sua grande parte compravam-se coisas em Giões, tanto no senhor Mateus, como num outro cujo nome me não lembra mas que foi o introdutor da máquina de café na aldeia.

O café era já moído, acalcado na forma com uma colher de sopa, a máquina era pequenina, de dois bicos e a gás e era ligada quando fazia falta e tinha mesmo de se esperar quando calhávamos a aparecer no período de repouso dela (e do gás). Normalmente pedia-se a bica, ia-se ás compras à contra loja, o que era sempre demorado, eu entretinha-me a conversar com o senhor ou ficava por ali e lá ia o pessoal comprar botões e tecidos encomendados ou peças de roupa acabadas de chegar, arroz, café, pouca coisa, afinal. O sistema de compras de mantimentos ou para arranjos caseiros era relativamente fácil porque na sua grande parte havia de quase tudo em casa: feijão, grão, batatas.

O senhor Mateus era outro tipo de negociante: era representante das máquinas de costura Singer na altura e tinha uma colecção de linhas e botões para todos os gostos. Quem vendia era a esposa, ele encarregava-se da parte da taberna quando não estava ausente em vendas fora de portas, levado pelo carro de rodas largas e pela sua bem ajaezada junta de mulas.

Pois bem e entrando agora no Chico Artur, objecto principal desta crónica, este era natural do Pereiro, negociante de gado (ovelhas e porcos) e foi o introdutor do porco branco no Monte de Alcaria Alta e durante muito tempo o único criador. Tinha uma carrinha (talvez Ford Transit) de caixa aberta que por vezes chegava altas horas da noite e quase sempre partia de madrugada.

A geração de porco preto era não só de tradição como vivia em parte de tremoços, de restos de comidas misturadas não cozinhadas (talos de legumes, figos de pita, etc.) com farinha de centeio ou de cevada. Por vezes «ganhava» um tomate esborrachado.

O porco branco, por excelência era animal de ração e comprar ração não estava ainda nem nos meios de uso de dinheiro no Monte nem na mente das pessoas. A circulação de dinheiro era quase nula e o sistema de trocas processava-se em quase tudo: mesmo os vendedores ambulantes que eram poucos levavam ovos em troca ou uma ou duas panelas de barro (que eram as medidas usadas) com figos secos, feijão seco ou grão.

Os porcos brancos cresciam mais depressa, engordavam mais depressa, à base da ração é claro e eram sobretudo porcos para matança fora de períodos anuais, eram carne para revenda. Na minha vida só assisti à matança, não à morte, de dois porcos. Um era ainda criança e fez-me uma verdadeira impressão ver o pobre do animal a estrebuchar (por reflexos condicionados aprendi depois) quando da tostagem do corpo na fogueira de lenha para queimar os pelos e uma outra muito mais tarde em que por convite e simpatia resolvi não fazer a desfeita de recusar.

Foi uma manhã complicada essa, o matador amador/profissional estava mal das costas na véspera e apresentou baixa nessa mesma manhã. Entre os presentes ninguém sabia nem queria matar o porco. «E se sai mal e o animal fica aqui a sofrer uma série de tempo?» dizia-se...

Lá acabou por aparecer o Manelito Vilão que nunca tinha matado nenhum porco mas que dizia que era só acertar na veia e etc. e acabou por fazer o serviço praticamente sozinho porque o resto do pessoal debandou quase todo só regressando quando tudo estava silenciosamente certo. A minha prima, dona do porco, ficou de cara virada apanhando com uma tigela o sangue que jorrou. O Manelito suou por todos os poros e acabou sentado e derreado num poial jurando que nunca mais...Enfim.

O Chico Artur tinha grande orgulho também numa criação sua, aliás o maior orgulho, por aquilo que me apercebi que era o cruzamento entre porcos e javalis. Francamente nunca acreditei muito nessa treta e durante muito tempo pensei tratar-se de uma forma dele gozar a minha situação de citadino ignorante.

Quando ele falava das vantagens do porco - javali vinha-me à ideia uma história que se contava para desfazer da esperteza dos habitantes de uma povoação vizinha: um deles tinha encontrado uma porca fugida, tomara-a por um javali e vá de ir buscar a espingarda a casa e tiro. Fizera um repasto de javali com convidados e tudo, e todos, entre os presentes, comeram javali nesse dia...até o dono da porca tresmalhada.

No caso do Chico Artur a história era assim: um individuo de um monte das redondezas tinha encontrado um javali arrastando numa pata uma ratoeira de coelhos e lebres. Por artes e ajuda conseguiu laçar o animal, praticamente enrolá-lo em cordas e levá-lo para um pocilgo. O animal ficou coxo mas era uma fêmea e em pouco tempo e com a visita de um marrão acabou por emprenhar. Isto é a história, não garanto nada disto...

Dessa javali saíram depois cerca de uma meia dúzia de animais misturados e o Chico tinha comprado um: tinha-se ficado por um macho porque pensava inverter o processo de procriação e como partia cedo e chegava tarde não dava para espreitar o pocilgo. Ele bem me falava e eu bem dizia que sim...

Mas um dia em que o carro avariou e ele teve de ficar no monte mostrou - me o animal. Bem...os javalis que eu conhecia dos livros tinham sempre grandes presas e aquele tinha uma dentadura normal de porco, caninos grandes que arreganhava, sim, mas isso para mim era normal.

O que o distinguia era sobretudo o pelo: esse era sem dúvida mais abundante que num porco normal. Fiquei indeciso, de facto, nunca tinha visto um animal porcino com tanto pelo e nem sequer para desempate uma dentadura de javali ao vivo.

Nos anos seguintes não tive oportunidade de desenvolver a questão: quase nunca o encontrava e ele estava mais tempo no Pereiro do que em Alcaria Alta. Mais tarde também a mulher abandonou o local indo igualmente viver para o Pereiro.

Mas ainda me fui perguntando sempre se «aquilo» que tinha visto era um javali - porco, um porco javali ou simplesmente um porco cabeludo.




quarta-feira, 18 de março de 2015

Prosa Poética de Ilona Bastos - O Presente e o Futuro


Prosa Poética de Ilona Bastos

 O Presente e o Futuro

 

 Era jovem. Entrou em passo rápido, semblante sisudo, olhar no chão.
Do seu aspecto, tudo diziam as faces cavadas e pálidas, o cabelo à escovinha, a argola na orelha, a camisola larga de capuz caído.

 Sentou-se e pareceu-me então que tremia. O seu discurso era hesitante. Tinha dificuldade em explicar o que o trazia, misturando assuntos, tecendo frases e ideias entrecortadas de pequenos soluços inaudíveis mas perceptíveis.

 Pegámos na ponta da meada, separámos águas, as ideias tornaram-se mais claras, conversámos muito e às tantas confessava: eu falo pouco, não consigo falar.

 E disse-lhe: mas agora está a falar, estamos a falar tão bem. E é bom termos quem nos oiça, e sentirmos que alguém está a seguir, connosco, o nosso percurso. Assim, quando temos menos ânimo – porque todos temos dias de menos ânimo –, há alguém que nos chama e nos volta a colocar no caminho certo.

 Lemos, em conjunto, algumas frases difíceis de um documento sério. Recordei-lhe que no ler e no escrever, como no futebol ou em qualquer outra coisa, o que era importante era a prática, e ele concordou.

 Preenchemos depois um impresso e falámos de como teria de instruí-lo e onde entregá-lo. Até dava jeito, o local, que já lá tinha uma visita programada para o dia 10.

 Quando levantei a cabeça vi que levava os dedos à cara para limpar as lágrimas, pequenas, límpidas, lineares, que lhe desciam dos olhos de um espantoso e transparente azul.

Não se sentiu incomodado com o meu olhar, como não senti incómodo com as suas lágrimas.

Falou-me da vida que levara, dos erros que cometera. Tudo passado.

O que importava agora era encontrar um emprego e o amor dos filhos.

 Concordei, sorrindo: o importante, em cada momento, é o presente e o futuro!



Ilona Bastos




A porta fechada - Texto de Ivone Boechat


A porta fechada

Texto de Ivone Boechat 


 Conta-se que Dr. Fritz Kaufmann, um dos mais notáveis médicos alemães, reconhecido em toda a Europa, foi convidado pela Sociedade Médica Americana para tomar parte de um Seminário, em Nova York. Quando a imprensa anunciou a sua presença nos Estados Unidos houve grande repercussão. Logo, a Associação Médica de Chicago o convidou para realizar algumas cirurgias de alto risco em doentes desenganados.

 Em Chicago, morava Dona Charlot que sofria de uma enfermidade, cujos recursos já se haviam esgotado. Sua única esperança seria o Dr. Kaufmann. Ela encheu-se de alegria e planejou um meio de encontrar-se com ele. Só pensava nisso, noite e dia.

 Dr. Kaufmann chegou, finalmente, a Chicago e, apesar de seu intenso programa na agenda, após o almoço, deixava o Hotel para fazer uma caminhada. Numa dessas saídas, enquanto andava, foi surpreendido por uma forte chuva. Todo molhado, procurou abrigo sob a marquise de uma casa, cuja dona, percebendo a presença de alguém batendo na sua porta não deu a mínima atenção e ainda foi mal educada.

 No dia seguinte os jornais de Chicago deram a seguinte nota:

«Esteve em Chicago o famoso médico alemão, Dr. Kaufmann que, ontem, enquanto fazia seu cooper, após o almoço, foi surpreendido por uma forte chuva. Todo molhado abrigou-se na marquise de uma casa, cuja dona não lhe deu atenção e ainda bateu-lhe a porta. O famoso cientista acaba de voltar para Alemanha».

Quando Dona Charlot leu a notícia, quase teve um colapso, em pranto confessou: «O famoso médico esteve na minha porta e eu não o reconheci, deixando-o do lado de fora. Agora tudo está perdido».

Para refletir:

 O Brasil tem a maior taxa de «abandono» escolar do ensino médio dentre Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Venezuela: 10%. Ou seja, 1 em cada 10 jovens abandonam a escola nesta etapa, segundo a Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

 O Brasil bate um recorde mundial de «evasão» escolar e a gente sabe que o nome disto é porta fechada.

 A missão do educador é também ajudar a abrir portas. Muito cuidado! Analise sempre as batidas e os sinais daquele que suplica para alguém lhe abrir a porta da oportunidade, mas foi empurrado para fora.

Trabalhe para trazer de volta os que «desistiram» de implorar respeito.
Abra a porta, educador!

 Ivone Boechat





MARCIANITA - Crónica de Arlete Brasil Deretti Fernandes


MARCIANITA



Crónica de Arlete Brasil Deretti Fernandes



Há muitos anos, residi com minha família numa cidade interiorana onde havia um grande porto marítimo e pesqueiro. O povo cultivava tradições açorianas, por terem os seus antepassados vindo da Ilha dos Açores.

Como toda boa cidade portuária, não faltava ali a ZBM, ou zona do baixo meretrício, que uns chamavam de «casa das primas», para outros «zona» ou mesmo outros nomes que prefiro não citar. Dizem que a atividade principal ali realizada é o exercício da profissão mais antiga do mundo.

Também fui informada de que uma zona não é muito diferente da outra. São aglomerados de casas, algumas só vendendo bebidas e cigarros e outras só com quartos para rotatividade. Tinha algumas que eram completas, com lanchonete, cômodos, bar e salão de baile.

O fato que a mim foi relatado aconteceu no mês de agosto, época de safra de enchovas e daquele vento nordeste que geme, grita e assobia como um louco, sem parar, varrendo tudo o que tem pela frente.

Foi numa noite sem estrelas. Tripulantes de pesqueiros chegavam para passar horas de prazer e de orgia nos braços das «flores da noite», deixando ali suas frustrações e seus temores de tempestades quando tinham que invocar a Santa Bárbara e o São Jerônimo.

O ponto de partida para uma noite de orgia e de prazer foi iniciado no salão de danças. E é ali que recomeçava tudo a cada noite. Os sacerdotes e sacerdotisas de Baco bebiam, dançavam, comiam e esqueciam os perigos do mar.

Naquela noite o salão estava lotado. O conjunto musical não dava descanso aos dançadores. O acordeonista ou sanfoneiro, como é mais conhecido, após tomar umas doses pagas pelos apreciadores e dançarinos, se empolgava, e o som que partia do fole era alegre e convidativo.

Todos levantam-se das mesas e escolhem um par para a dança, chamada por alguns de «bate-coxas», «esfrega-saco» ou «roça-peito»!.

Marcianita era a música que estava no auge das paradas de sucesso nas rádios e nos bailes. Ali também se encontrava um apreciador de Marcianita, com o pé que era um leque e de «pé cagado», isto é, com as «guampas» cheias de cuba libre.

Ele tinha perdido sua quenga, aquela ingrata, de vestido vermelho, cabelos pretos e soltos, e os seios empinadinhos que queriam saltar do decote. Outro gajo a carregou e com ela dançava sem parar: nheco-nheco-nheco-nheco.

Num momento o gaiteiro fez uma pausa para dar um descanso, ir ao banheiro e fumar um cigarro. Quando voltou e pegou novamente a sanfona de fole, ouviu de alguém:
 - Gaiteiro, sapeca aí a Marcianita!
 E ele começou: -Marcianita, branca ou negra, gorduchinha, magrinha, gigante serás meu amor...
 O salão estava repleto, a animação era total.

De repente, o descornado passou pelo que dançava com sua dama, e como não tinha nada a perder, arrastou o outro pelo colarinho e a porrada pegou. E a gaita parou.

Foi um corre-corre, e a turma do «deixa pra lá» botou água fria na fogueira e arrastou pelas pernas o brigão, trancando-o num quarto. Tudo normalizado, o gaiteiro sapeca de novo a Marcianita. Quando a dança começou a esquentar, o pau começou a quebrar de novo.

E neste para e toca e toca e pára, não deu outra. Já era a quinta vez que tocava a Marcianita e não tinha jeito de chegar ao final, porque a briga sempre começava.

Foi aí que apareceu um cabra-macho, soltando fogo pelas ventas, portando uma bicuda ou peixeira, faca usada pelos pescadores para limpar o peixe e cortar corda ou rede.

Foi só soarem as primeiras notas da Marcianita, quando o gaiteiro abriu o fole da gaita e saiu um som diferente, rasgante e xoxo: - Froing. O fole foi cortado e a porrada pegou de todo o lado, com cadeirada e garrafada, até chegar a polícia e a calma retornar.

Um policial indagou o valentão que respondeu:

-Cortei e corto de novo se a Marcianita começar e não terminar.




Apesar de você - Por Cristina Ubaldo


Apesar de você



Por Cristina Ubaldo



 Quando falou em partida, achei que não viveria sem você, nada ficaria no lugar, nada seria como antes.

Joguei-me aos seus pés numa desvairada e ridícula tentativa de impedir sua saída. Rasguei minhas roupas, jurei que morreria.

Joguei pedras em seu caminho para que tropeçasse e voltasse para mim. Prometi deixar a porta aberta, mas tranquei as janelas da minha alma.

Chorei na escuridão maldizendo meu destino. Sem você não saberia caminhar me perderia no tempo das lembranças.

Hoje acordei achando tudo tão igual! Um dia atrás do outros e tantos dias se passaram sem que eu percebesse.

Hoje acordei e não te procurei ao meu lado e nem chorei ao tomar café sozinho, não senti tua ausência.

Abri as janelas e deixei o sol banhar meu rosto. Não te vi no brilho da manhã e nem ouvi sua voz ao vento.

Hoje acordei mais tarde e vi então que apesar de você já outro tempo e a vida continuou sem você, não morri!

Estranhamente sinto-me como se tivesse dormindo por um longo inverno e hoje despertei para o novo verão.

Estava tudo no mesmo lugar, mas a vida andou e levou você dos meus pensamentos. Não sinto aquele nó apertar minha garganta...até cantei uma nova canção!

Hoje acordei e não senti falta de você, não pedi a porta aberta, não olhei para trás.

Hoje descobri que vivi sem você e apesar de você...

Sorri. Porque não? é possível sem você!

Hoje me libertei das amarras que me prendiam a você, saí da escuridão, já posso andar sem você sem me precipitar e nem perder a hora.

Hoje estou pronta para ser feliz, apesar de você.

Cris (Krica)




A ESCOLA - Por José Francisco Colaço Guerreiro


A ESCOLA

Por José Francisco Colaço Guerreiro

Recolhido em Património



 A escola era a primeira grande contrariedade da nossa vida. Se calhar, foi assim desde sempre e até há bem pouco tempo, quando a moçada inverteu as regras e passou a dominar, exigindo com gritos e prantos, tiranizando com rebeldia e desassossego.

Mas dantes, a escola era o verdadeiro desmame, o largar as saias, o caminhar sozinho, balsa às costas, para aprender a ser homem, numa caminhada que se completava mais tarde, depois das sortes, a marchar em pelotão, espingarda às costas.

 Os primeiros gatafunhos eram feitos numa pedra de ardósia encaixilhada a madeira de cor natural que depois ia escurecendo e ganhando lustro com passar do tempo e dos dedos, às vezes besuntados de agarrarem o pão com banha salpicada de açúcar. Os lápis eram da mesma pedra , muito redondinhos e afilados, do tamanho de um palmo, forrados a papel numa das pontas, num axadrezado verde, vermelho ou azul, de tons desbotados, talvez pela cola.

 Quando se acabavam os compradiços, faziam-se de talisca, raspados à faca e rolados no chão para os adelgaçar e lhes arredondar a forma. Usava – se como acessório um frasquinho de remédio vazio, para encher com água e depois molhar num farrapo com que se limpava a escrita. Era esse o bom proceder, mas muitas vezes acontecia usar-se o cuspinho e a manga da blusa para o mesmo efeito.

 Com as brincadeiras, empurrão de um moço, chulipa de outro, rasteira ou escorregadela do cardado das botas nas calçadas polidas, vinha a balsa ao chão e a pedra partia-se. Um pranto até casa, baba e ranho com fartura, queixas e mais queixas para comover, depois, tareia, perdão ou castigo e com muita sorte, lá se arranjavam dez tostões para comprar outra, novazinha, para no outro dia mostrar: ao professor os trabalhos; aos colegas a brancura da moldura, ainda sem dedadas nem borrões de tinta.

 Pior do que tudo, ainda pior do que disciplina do erguer bem cedo, do estar comportado horas a fio sentado numa carteira, dos trabalhos de casa, da falta de tempo para a brinca, eram os maus tratos que os professores davam.
Empinar a tabuada numa cantarolada colectiva, saber conjugar os verbos num recitar decorado, desfiar os nomes dos rios, das serras e das estações dos caminhos-de-ferro, daqui e dalém mar em Africa, era empresa pequena face à afronta da sujeição de se estar uma manhã inteirinha à janela da escola com as orelhas de burro enfiadas na cabeça. Mas mais custoso ainda, eram as ponteiradas fazedoras de galos que nos arrepiavam mesmo quando estoiravam nas cabeças dos outros.

 E as meninas de cinco olhinhos, palmatórias concebidas para extrair uma dor máxima de quem as experimentava, com o esforço mínimo de quem as manobrava, eram verdadeiros objectos de tortura que o próprio sistema acabou por proibir.

 Mas sucederam-lhes as réguas, de pau-santo ou madeira rosa, bem grossas e pesadas que era para fazer arder. Os professores tiravam as malditas, de um castanho avermelhado, da gaveta da secretária no princípio do dia e estendiam-nas ao seu lado, em cima do tampo, bem à vista de todos.

 Eram os problemas mal resolvidos, os erros dos ditados, as falhas de memória, o azar de se ser criança em tempo cinzento que davam azo a tanta reguada. Havia tabela. Tantas por cada erro e tantas por cada conta mal feita. Tantas por isto e outras tantas ou ainda mais por aquilo. O bater fazia parte das regras, como agora faz parte não contrariar os miúdos e deixá-los ter o protagonismo todo.

 Mesmo os pais, numa atitude de alguma inferioridade, subserviência ou temor reverencial face ao professor, não raro diziam ou mandavam o recado: chegue-lhe! As que caem no chão são as que se perdem! Desde que não lhe parta braço nem perna…chegue-lhe!...

 A escola só era suportável uma ou duas vezes no ano quando o professor Abílio cá vinha dar, trazendo de Beja uma maquineta para passar filmes com desenhos animados de coelhos a comer cenouras e mosquitos que picavam e depois davam febrões.

 Nesse dia havia tréguas. As réguas malditas de um acastanho avermelhado não saíam da gaveta. Corriam-se os estores e penduravam-se panos de flanela preta nas janelas para fazer escuro. Era um alívio.

 Mas logo voltava o fadário dos ditados, das contas, das idas ao quadro e depois…das reguadas. Cinco numa mão. Cinco na outra. Quando anteviam a zurzidela, os miúdos iam à cerca do Virgílio Lagartinho à busca de cebola albarrã e untavam as mãos muito bem untadas. Havia a crença de que com tal fricção a carne não doía e se a mezinha fosse bem feita, até podiam fazer estalar a régua. Que se saiba não passou de crença.

 Mas quando eram apanhados desprevenidos, sem preparação prévia, as pernas tremiam, os braços esticavam-se devagarinho, alternadamente, a muito custo e apetecia tirar a mão na hora certa, para sair em falso a palmatoada e verem o professor atingir-se. Mas ninguém o fazia, porque eles iravam-se e ainda se entornava o caldo. Aguentava-se como se podia, menos as lágrimas porque essas escorriam imparáveis.

Passo largo para o lugar. As mãos inchavam de dor. Sem saber o que lhes fazer, metiam-se entre os braços num gesto instintivo como que para esconder. Logo a seguir cuspiam nelas e agarravam os ferros da estrutura das carteiras. Ouviam-se chiar. Se havia força para pedir para vir cá fora ou se a zirga acontecia pouco antes do intervalo, a custo tiravam a gaita e lavavam-nas na urina nem sempre contida. Também era mezinha. Aos outros, mais tarde, dizia-se que era remédio santo.

 Nas memórias de um tempo cinzento talvez existam escolas coloridas, com rodas e risos de meninos, mas a nossa só ganhava alguma cor quando os panos de flanela preta tapavam a luz das janelas e por uns momentos, víamos os bonecos que o professor Abílio trazia de Beja.




Poesia de Liliana Josué


Poesia de Liliana Josué

PEDRO

No meu gemido Universal nasceste
menino robusto e lindo
crucial momento na minha existência

criança adorável em choro de vida

despontou o lírio branco que eu embalei
e amei na solidão do meu mundo

não deixei que te transformassem em nada
não, não deixei
eras meu, estavas em mim
e sendo assim
mais nada contava

querida vozinha em soluço de agradecimento

choravas por causa da música
e brincavas com o reflexo dos espelhos

doce canto, doce pranto
plena certeza de te querer aqui.

22/02/2015
Liliana Josué

GATOS VERDES

 Quatro gatos verdes
 observavam o seu desventrado quarto.
 Gavetas voadoras com línguas de fora;
 armários navegando assustados
 por ondas de papeis;
 leito num furacão
 envolto em negras nuvens de pó.

 Os gatos... eram gatos?
 Sim! Eram gatos! Na certeza da dúvida...
 mas tinham cor de papagaios!
 Verdes, brilhantes...
 talvez fossem... gatos - papagaios!?
 Mas não falavam!

 Constrangidos
 observavam o mundo ressequido
 daquele quarto esquizofrénico.
 Que ambição dali poderem sair
 mas uma despudorada Força contrária
 puxava-os e impedia a desejada saída.
 A liberdade é só para alguns
 ou mesmos nenhuns.

 Um dos quatro gatos - papagaios
 fixou uma porta abstracta
 passou por ela, quis tentar a liberdade.
 Os outros três por lá ficaram
 no caos das suas vidas
 dentro do quarto
 sem se atreverem a olhar mais longe.
 O gato - papagaio que se soltou
 tornou-se azul, brilhante como o céu
 e conseguiu cheirar o ar sem mofo.

 Seria gato? Seria ave?
 Quem o saberia?
 Só se comprovaria ser ele lindo.

 Do seu futuro
 mais ninguém soube.
 Será que encontrou a liberdade?
 Ou terá morrido na saudade
 dos outros três gatos verdes
 fechados nas bolorentas paredes?

 Liliana Josué

 Primavera Branca

 Há sol azul
 nos olhos do ancião,
 metamorfoses de vidas
 esvoaçando como tule
 adormecem esse olhar
 de solidão.

 Cabeça pendendo sonhos
 recordações
 do distante
 memórias de luares antigos
 polvilhados de emoções
 de cor imaculada
 e cheiro a ontem.

 Tudo é Primavera branca
 cabelo, barba, ilusão...
 a face nívea desgostos tranca
 só os olhos é que não.

 Liliana Josué