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domingo, 16 de agosto de 2015

Coluna: Antônio Carlos Affonso dos Santos. ACAS, o Caipira Urbano. - O Saci Pererê

 
Coluna: Antônio Carlos Affonso dos Santos. ACAS, o Caipira Urbano.
 
O Saci Pererê
 
Prólogo atual: este texto, feito em abril de 1998; faz parte de meu penúltimo livro, uma antologia de contos, crônicas e poesias, cujo título é «Fragmentos»; na verdade um livro quase inédito, posto que não tenho tempo de procurar livreiros e eles não me enxergam, quando os encontro.... .
 
Devido à tragédia que ocorreu com a cidade de São Luiz de Paraitinga, SP, durante o mês de janeiro de 2010 e sendo esta cidade a sede da Sociedade dos Criadores de Sacis (SOSACI), resolvei torná-lo público. Gostaria que os leitores pudessem ajudar as famílias de lá, da maneira que puderem!
 
Para os leitores lusófonos terem uma idéia, o desastre ambiental em São Luis de Paraitinga parece ser muito maior do que aquele que ocorreu na Ilha da Madeira, na última sexta feira, 19 de fevereiro de 2010; ainda com a diferença de que São Luis Paraitinga é uma cidade importante sob muitos aspectos, porém pobre... .
 
Quem quiser conhecer como a cidade era, entrar no site:
 o www.paraitinga.com.br
 
 
Toda vez que chegava uma nova família na fazenda de café, onde eu vivia, todos se alegravam. Os adultos, por terem mais um amigo por perto, já para a molecada da fazenda, nem se fala! E, ao ver-mos que na família nova tinha um menino da nossa idade então, ficávamos curiosíssimos: será que o novo amiguinho teria um dote especial? Será que ele sabe jogar bola melhor, brigar melhor, nadar melhor? Será que ele sabe tocar viola ou cavaquinho, fazer gaiola de passarinho e arapuca; será que é bom de estilingue ou bodoque e etc.?
 
Cada um de nós ficava imaginando qual seria a sua experiência de vida; se ele tinha irmãos e outras coisas.
Como era praxe, colono novo almoçava na casa do administrador no dia da chegada: era as «boas vindas». O Administrador, meu pai, pagava a despesa do próprio bolso, pois o fazendeiro sovina jamais o reembolsou; talvez Deus tenha feito isso por ele! Papai tinha muita pena de gente que viajava com filhos pequenos durante muitas horas, às vezes passavam o dia todo sem comer.
 
- Naquele sábado não foi diferente, quando vi o «panelão» que borbulhava no fogão à lenha, logo imaginei: como não vai haver festa, é colono novo chegando, e de longe.
- Percorri toda a colônia avisando meus amiguinhos que teríamos gente nova na fazenda e que meu pai afirmou que tinha um menino da minha idade. Nesse dia não saímos para pegar frutas, nem caçar, nem jogar bola: passamos o dia todo debaixo da mangueira do quintal da minha casa, brincando com vaquinhas e cavalinhos de bucha, caminhõezinhos de lata de marmelada, aos quais atávamos um «cordoné» para poder puxá-los.
 
Desse modo transportávamos uma boiada do curral de um até o piquete de outro, e vice-versa. Fazíamos transações comerciais, as quais eram pagas com tampinhas de refrigerantes (o guaraná Paulista valia um conto; guaraná Caçula, destões (um mil réis); Mãe-Preta ou Níger, quinhentos réis).
 
A tarde já se anunciava mostrando a barra do dia avermelhada e o céu azul, que só a região de Cravinhos tem, quando percebemos um certo alvoroço com o pessoal da casa: a carroça com a mudança do novo colono chegou. Eu e meus amiguinhos corremos até o portão da frente da casa e deparamos com uma família diferente: o pai, que estava conversando com o meu, era um crioulo alto, forte, com dentes brancos e perfeitos, com as carapinhas já embranquecendo; a mãe parecia bastante jovem, com um bebê no colo, ao mesmo tempo que dava ordens ao menino e sua irmã, um tanto atarantados com minha presença e de meus amiguinhos, e remexia em sacolas, sacos e embornais à procura de não sei o quê.
 
Meu pai muito gentil, pediu que apeassem e se preparassem para aquele almoço fora de hora. Minha mãe foi chispando reacender o fogo e botar o panelão e a assadeira para aquecer.
 
- Eu e meus amiguinhos não desgrudávamos os olhos do menino, que agora sabíamos chamar-se Ditinho, que por sua vez parecia muito incomodado com a nossa presença. Toda a família do Ditinho foi até a «vasca» do fundo do quintal, se refrescaram, banharam os braços e o rosto, molharam delicadamente a cabeça e a mãe penteou-os todos, até o marido.
 
Nesse ínterim minha mãe chamou-os para comer e já estava com a mesa posta: no panelão, risota caipira: uma espécie de sopa de pouco caldo com arroz, batata, frango, cenoura, vagem, cozidos com açafrão recém colhido, coberto de salsinha picada e queijo curado ralado; havia também mandioca frita, feijão, uma farinheira cheia de farinha de mandioca, que eu ajudei a fazer, e uma assadeira com um pernil de tatu «rabo mole» tostadinho, duas jarras de água da bica e uma tigela de arroz-doce com folhas de laranjeiras.
 
Eu e meus amiguinhos não ficamos ao lado da nova família de colonos, mas ficamos apinhados do lado de fora das duas janelas da sala com a grande mesa, onde freqüentemente comíamos em, no mínimo, nove pessoas.
 
Enquanto o pai do Ditinho almoçava, os camaradas da fazenda descarregaram a mudança na casa recém caiada da colônia, com chão de terra - batida, dois quartos, sala e cozinha. Na fazenda, os banheiros são feitos do lado de fora, diretamente sobre uma fossa, que a cada ano era coberta de «cal viva» e aterrada, sendo então feita uma outra.
 
Na verdade era cercada por folhas de zinco, e de zinco era também a cobertura. Eu e meus amiguinhos assistimos a despedida da família do Ditinho, agradecendo a hospitalidade e rumando para sua nova casa. Quando passou por nós, o Ditinho disse amanhã eu quero falar com vocês!
 
Ficamos bastante ansiosos, e mal podíamos esperar para falarmos com o novo amigo no dia seguinte. De manhã, como de costume, apanhei a caneca de louça, coloquei dois ou três dedos de café, acrescentei quatro colheres de açúcar cristal e fui até o curral, para tomar meu café com leite «direto da fonte».
 
A «fonte» era uma vaca rústica, toda «chitadinha» de branco e preto, chamada Bela Vista, que era a nossa preferida. O tirador de leite, que começava a ordenha por volta das quatro da manhã, precisava tirar o leite todo antes das sete horas, quando então enviava para minha casa duas latas de vinte litros: uma para os colonos e outra para fazer os queijos dos patrões; pelo menos dois por dia.
 
Portanto, o tirador de leite sempre deixava a Bela Vista para o final, pois a qualquer momento eu e meus irmãos podíamos querer leite fresco. Ele esperava até sete horas, aí então terminava seu serviço.
 
Pois bem, após meu desjejum, passei em casa e comi um belo pedaço de pão caseiro com queijo e me dirigi à colônia: pretendia reunir os meus amiguinhos e, juntos, irmos a casa do Ditinho. Mas, ao chegar à colônia, já os vi todos, inclusive o Ditinho, num bate-papo animado, que só parou quando me aproximei e disse: - o que você quer falar com a gente? Antes mesmo de o Ditinho abrir a boca, o Ném, meu amigo disse: ele vê e ouve saci - pererê!!.
 
Ele vê o que?, disse eu sem entender direito: saci - pererê, disseram todos em coro.
 
Nesse ponto, o Ditinho começou a contar a sua história: disse que sua mãe verdadeira já havia morrido, e aquela que morava com seu pai, era sua madrasta, e que sua irmã, por parte de mãe sofre de vermes e desmaia quando passa vontade de comer alguma coisa, mas que o bebê é lindo; a madrasta não liga pra ele e seu pai é generoso e trabalhador e que desde que era menino, ele via saci - pererê, só que não sabia o que era: a primeira vez que viu tinha quatro anos, fazia muito tempo, pois agora já tem sete e que qualquer criança pode ver o saci - pererê e que ele não faz mal a ninguém, só faz estripulias, que quando tinha cinco anos ele não quis brincar com o Saci e que o Saci derrubou todas as panelas da madrasta no chão da cozinha, durante a madrugada e que seu pai deu dois tiros de espingarda nele e que agora tem medo do saci se vingar do seu pai.
 
Eu e meus amiguinhos, inclusive o novo, ficamos ali até que ouvi o sino da sede da fazenda: era o sinal da minha mãe, avisando os filhos e meu pai que o almoço já estava pronto. Durante o almoço com minha família comentei com meu pai do menino novo que via e ouvia saci - pererê e enquanto meus irmãos faziam caçoada de mim, meu pai falou: Pois, agora, toda vez que vocês saírem juntos, você tem que levar uma caixa de fósforos no bolso. Meus irmãos todos se calaram e meu pai não disse mais uma palavra, continuou calmamente a almoçar, com o olhar cúmplice de minha mãe: No mesmo instante eu percebi que meu pai também acreditava, ou já tinha visto um saci - pererê.
 
Durante os próximos dias e durante todo o ano, até a colheita do café, após a qual todos os contratos dos colonos venciam e discutia-se, quem vai ficar na fazenda e quem vai sair, discutíamos os casos dos sacis - pererês.
 
Certo dia o tirador do leite não encontrava os baldes para a ordenha, num outro dia os rabos dos cavalos apareciam amarrados uns aos outros, noutra ocasião esvaziaram o lavador de café, inundando todo o terreiro de secagem e atrasando o beneficiamento por mais de uma semana, enfim de vez em quando alguma traquinagem acontecia na fazenda: e eu sempre com a caixa de fósforos no bolso.
 
No final da colheita do café daquele ano, a família do Ditinho resolveu ir embora para São Paulo e eu e meus amiguinhos ficamos muito tristes, pois embora o Ditinho não pudesse jogar bola e tivesse dificuldade de nadar ou caçar de estilingue suas estórias eram muito excitantes.
 
No dia da sua partida, marcamos com ele para nos despedirmos junto à porteira da fazenda, uns dois quilômetros longe de casa, em meio a uma mata fechada. Quando a carroça com a mudança chegou, não vimos o Ditinho. Perguntamos por ele, e seu pai disse: ele vem vindo a pé pelo meio do mato - e foi embora. Estranhamos muito, mas ficamos ali esperando.
 
Após algum tempo, ouvimos um assovio longo e forte e nos voltamos para uma «picada» no mato e vimos o Ditinho com um boné vermelho na cabeça, cachimbo na boca, pulando sobre sua perna aleijada, completamente pelado e gritando:- me dá o fogo senão morre ou fica bobo!
 
Todo amedrontado, retirei a caixa de fósforos do bolso e entreguei ao Ditinho, que saiu rindo alto e assoviando, pulando atrás da carroça de mudança.
 
O Ditinho era o próprio saci-pererê!


 

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Tabuí e seus Causos - INCIDENTE NA JARDINEIRA - PALAVRA DE BÊBADO VALE?


Tabuí e seus Causos

INCIDENTE NA JARDINEIRA

O Tié, caipirim miudim e timiduzim embarcou, nos tempos de antigamente, na jardineira que transportava o povo de Belzonte pra Tabuí. Ao seu lado, bem na janela, um “armário” engravatado, pesando mais de uns cento e vinte quilos, alto demais da conta e com cara de lutador de alguma coisa, no maior ronco.

Já bem depois da metade da viagem, o Tié, de tanto ver curva, cheirar poeira com cecê misturados com fedor de gasolina, começa a ficar enjoado e a virar o zoinho. Foi fono, foi fono, até que não aguentou mais e entregou os pontos.

Despejou tudo o que tinha comido – pão de queijo, sanduíche de mortadela, pastel de queijo, linguiça frita, ovo cozido e mais umas doze coisinhas diferentes – bem no peito do colega de viagem.

E aquilo, além de encher os bolsos do paletó, ficou escorrendo entre este e a camisa do companheiro viajante. No desespero, suando frio, cheirando inhaca, limpando a boca e o bigodim com a manga da camisa, Tié queria sumir no mundo, descer da condução ou, no mínimo, mudar de lugar, mas a jardineira tava lotada e não parava pra nada.

O “armário” nem tium. Continuava puxando o sono e roncando, com a boca aberta.

Pouco antes de chegar a Tabuí, o monte de homem acorda, sente o cheiro estranho – cheiro não, fedentina braba - e passa a mão naquele peito melecado e gosmento. Quando olha, desconfiado, confuso e indignado pro Tié, este bate a mão no ombro do vizinho de banco e pergunta, carinhoso e cheio de dedos:

- Cumpanhero, cê miorô?... Tá mais mió?... Tá?

©By Eurico de Andrade, in Tabuí e seus Causos



PALAVRA DE BÊBADO VALE?

Dois negociantes da cidade grande resolvem sair pelo interior a fora a fim de passar a perna na capiauzada.

Foi aí que chegaram em Tabuí, cidadezinha alterosa. Lá num boteco de um cantinho da cidade, caladinho, sentado num tamborete, estava o velho Vito. Cavalinho piquira lá fora esperando o dono tomar umas e outras para depois carregá-lo com toda paciência para casa.

Só que o velho Vito, capiau desconfiado e esperto, sem nem um tostão no bolso, estava esperando alguém para também dar um golpe.

Quando os dois bacanas entram no boteco, tendo visto o cavalinho lá fora, olham gulosos para o velho. E este, vendo os dois, mira sedento nos olhos de cada um e faz aquele ar tristonho de capiau sofredor e ignorante.

E o Vito, mesmo olhando a importância dos dois, pensa com os seus poucos botões: "pra quem tá com fome e com sede duma branquinha, formiga é pimenta do reino. Vô enguli essas duas formigonas engravatadas..."

- Não quer vender o cavalo, meu amigo?

- Vendo uai! Vinte mil mango é o preço dele. Quem pagá leva!
Os negociantes se entreolham e resolvem executar um plano que já tinha dado certo diversas vezes. Encher de cachaça o vendedor para levar o animal praticamente de graça.

- Não quer acompanhar a gente num traguinho, meu amigo?
- Carece não, moço! vô injeitá! Responde o velho Vito já arrependido da resposta. Boca seca. Sede danada duma branquinha queimadeira.

- Eu insisto, meu amigo! Venha pra junto de nós!
O velhinho sai, morrendo de humildade, do seu cantinho, e de uma golada só entorna no bucho meio copo de cachaça e ainda lambe os beiços.

Os negociantes gostaram da reação do velho e pensam: "já está no papo". Mandam encher outro copo que o velho Vito entorna novamente de uma golada só.
- Quanto é mesmo o cavalinho, meu amigo?
- É trinta. Trinta mil mango é o preço dele. Quem pagá leva.

Os dois da cidade grande se olham meio assustados; Pedem mais uma talagada para tirar a dúvida, e o velhinho emborca tudo de uma só virada.
- O cavalinho é quanto mesmo, meu amigo?
- É corenta. Corenta mil mango. Quem pagá leva.

Depois de mais uns três copos da branquinha, com o velho Vito já bêbado, de quatro e trocando as palavras, o cavalinho já estava custando setenta mil paus.

Os dois negociantes cada vez mais assustados e ficando sem graça com a história. Entornam mais bebida no velho.
- E o cavalinho, velho, diga quanto você quer por ele?

- Ieu? Hic... Quero nada não, moço! Hic... Num é pra vendê mais não! Hic... Ia vendê ele pra tomá uns golo. Já tomei dimais da conta, agora vendo mais meu amiguinho não, uai! Hic!...

©By Eurico de Andrade, in Tabuí e seus Causos

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terça-feira, 28 de abril de 2015

O Saci Pererê - Conto / causo de Antônio Carlos Affonso dos Santos. ACAS, o Caipira Urbano.


O Saci Pererê

Conto / causo de Antônio Carlos Affonso dos Santos. ACAS, o Caipira Urbano.


Prólogo atual: este texto, feito em abril de 1998; faz parte de meu penúltimo livro, uma antologia de contos, crônicas e poesias, cujo título é «Fragmentos»; na verdade um livro quase inédito, posto que não tenho tempo de procurar livreiros e eles não me enxergam, quando os encontro.... .

Devido à tragédia que ocorreu com a cidade de São Luiz de Paraitinga, SP, durante o mês de janeiro de 2010 e sendo esta cidade a sede da Sociedade dos Criadores de Sacis (SOSACI), resolvei torná-lo público. Gostaria que os leitores pudessem ajudar as famílias de lá, da maneira que puderem!

Para os leitores lusófonos terem uma idéia, o desastre ambiental em São Luis de Paraitinga parece ser muito maior do que aquele que ocorreu na Ilha da Madeira, na última sexta feira, 19 de fevereiro de 2010; ainda com a diferença de que São Luis Paraitinga é uma cidade importante sob muitos aspectos, porém pobre... .
Quem quiser conhecer como a cidade era, entrar no site: www.paraitinga.com.br

Toda vez que chegava uma nova família na fazenda de café, onde eu vivia, todos se alegravam. Os adultos, por terem mais um amigo por perto, já para a molecada da fazenda, nem se fala! E, ao ver-mos que na família nova tinha um menino da nossa idade então, ficávamos curiosíssimos: será que o novo amiguinho teria um dote especial? Será que ele sabe jogar bola melhor, brigar melhor, nadar melhor? Será que ele sabe tocar viola ou cavaquinho, fazer gaiola de passarinho e arapuca; será que é bom de estilingue ou bodoque e etc.?

Cada um de nós ficava imaginando qual seria a sua experiência de vida; se ele tinha irmãos e outras coisas. Como era praxe, colono novo almoçava na casa do administrador no dia da chegada: era as «boas vindas». O Administrador, meu pai, pagava a despesa do próprio bolso, pois o fazendeiro sovina jamais o reembolsou; talvez Deus tenha feito isso por ele! Papai tinha muita pena de gente que viajava com filhos pequenos durante muitas horas, às vezes passavam o dia todo sem comer.

- Naquele sábado não foi diferente, quando vi o «panelão» que borbulhava no fogão à lenha, logo imaginei: como não vai haver festa, é colono novo chegando, e de longe.

- Percorri toda a colônia avisando meus amiguinhos que teríamos gente nova na fazenda e que meu pai afirmou que tinha um menino da minha idade. Nesse dia não saímos para pegar frutas, nem caçar, nem jogar bola: passamos o dia todo debaixo da mangueira do quintal da minha casa, brincando com vaquinhas e cavalinhos de bucha, caminhõezinhos de lata de marmelada, aos quais atávamos um «cordoné» para poder puxá-los.

Desse modo transportávamos uma boiada do curral de um até o piquete de outro, e vice-versa. Fazíamos transações comerciais, as quais eram pagas com tampinhas de refrigerantes (o guaraná Paulista valia um conto; guaraná Caçula, destões (um mil réis); Mãe-Preta ou Níger, quinhentos réis).

A tarde já se anunciava mostrando a barra do dia avermelhada e o céu azul, que só a região de Cravinhos tem, quando percebemos um certo alvoroço com o pessoal da casa: a carroça com a mudança do novo colono chegou.

Eu e meus amiguinhos corremos até o portão da frente da casa e deparamos com uma família diferente: o pai, que estava conversando com o meu, era um crioulo alto, forte, com dentes brancos e perfeitos, com as carapinhas já embranquecendo; a mãe parecia bastante jovem, com um bebê no colo, ao mesmo tempo que dava ordens ao menino e sua irmã, um tanto atarantados com minha presença e de meus amiguinhos, e remexia em sacolas, sacos e embornais à procura de não sei o quê.

Meu pai muito gentil, pediu que apeassem e se preparassem para aquele almoço fora de hora. Minha mãe foi chispando reacender o fogo e botar o panelão e a assadeira para aquecer.

- Eu e meus amiguinhos não desgrudávamos os olhos do menino, que agora sabíamos chamar-se Ditinho, que por sua vez parecia muito incomodado com a nossa presença. Toda a família do Ditinho foi até a «vasca» do fundo do quintal, se refrescaram, banharam os braços e o rosto, molharam delicadamente a cabeça e a mãe penteou-os todos, até o marido.

Nesse ínterim minha mãe chamou-os para comer e já estava com a mesa posta: no panelão, risota caipira: uma espécie de sopa de pouco caldo com arroz, batata, frango, cenoura, vagem, cozidos com açafrão recém colhido, coberto de salsinha picada e queijo curado ralado; havia também mandioca frita, feijão, uma farinheira cheia de farinha de mandioca, que eu ajudei a fazer, e uma assadeira com um pernil de tatu «rabo mole» tostadinho, duas jarras de água da bica e uma tigela de arroz-doce com folhas de laranjeiras.

Eu e meus amiguinhos não ficamos ao lado da nova família de colonos, mas ficamos apinhados do lado de fora das duas janelas da sala com a grande mesa, onde freqüentemente comíamos em, no mínimo, nove pessoas.

Enquanto o pai do Ditinho almoçava, os camaradas da fazenda descarregaram a mudança na casa recém caiada da colônia, com chão de terra - batida, dois quartos, sala e cozinha. Na fazenda, os banheiros são feitos do lado de fora, diretamente sobre uma fossa, que a cada ano era coberta de «cal viva» e aterrada, sendo então feita uma outra.

Na verdade era cercada por folhas de zinco, e de zinco era também a cobertura. Eu e meus amiguinhos assistimos a despedida da família do Ditinho, agradecendo a hospitalidade e rumando para sua nova casa. Quando passou por nós, o Ditinho disse amanhã eu quero falar com vocês!

Ficamos bastante ansiosos, e mal podíamos esperar para falarmos com o novo amigo no dia seguinte. De manhã, como de costume, apanhei a caneca de louça, coloquei dois ou três dedos de café, acrescentei quatro colheres de açúcar cristal e fui até o curral, para tomar meu café com leite «direto da fonte».

A «fonte» era uma vaca rústica, toda «chitadinha» de branco e preto, chamada Bela Vista, que era a nossa preferida. O tirador de leite, que começava a ordenha por volta das quatro da manhã, precisava tirar o leite todo antes das sete horas, quando então enviava para minha casa duas latas de vinte litros: uma para os colonos e outra para fazer os queijos dos patrões; pelo menos dois por dia.

Portanto, o tirador de leite sempre deixava a Bela Vista para o final, pois a qualquer momento eu e meus irmãos podíamos querer leite fresco. Ele esperava até sete horas, aí então terminava seu serviço.

Pois bem, após meu desjejum, passei em casa e comi um belo pedaço de pão caseiro com queijo e me dirigi à colônia: pretendia reunir os meus amiguinhos e, juntos, irmos a casa do Ditinho. Mas, ao chegar à colônia, já os vi todos, inclusive o Ditinho, num bate-papo animado, que só parou quando me aproximei e disse: - o que você quer falar com a gente? Antes mesmo de o Ditinho abrir a boca, o Ném, meu amigo disse: ele vê e ouve saci - pererê!!.

Ele vê o que?, disse eu sem entender direito: saci - pererê, disseram todos em coro.

Nesse ponto, o Ditinho começou a contar a sua história: disse que sua mãe verdadeira já havia morrido, e aquela que morava com seu pai, era sua madrasta, e que sua irmã, por parte de mãe sofre de vermes e desmaia quando passa vontade de comer alguma coisa, mas que o bebê é lindo; a madrasta não liga pra ele e seu pai é generoso e trabalhador e que desde que era menino, ele via saci - pererê, só que não sabia o que era: a primeira vez que viu tinha quatro anos, fazia muito tempo, pois agora já tem sete e que qualquer criança pode ver o saci - pererê e que ele não faz mal a ninguém, só faz estripulias, que quando tinha cinco anos ele não quis brincar com o Saci e que o Saci derrubou todas as panelas da madrasta no chão da cozinha, durante a madrugada e que seu pai deu dois tiros de espingarda nele e que agora tem medo do saci se vingar do seu pai.

Eu e meus amiguinhos, inclusive o novo, ficamos ali até que ouvi o sino da sede da fazenda: era o sinal da minha mãe, avisando os filhos e meu pai que o almoço já estava pronto. Durante o almoço com minha família comentei com meu pai do menino novo que via e ouvia saci - pererê e enquanto meus irmãos faziam caçoada de mim, meu pai falou: Pois, agora, toda vez que vocês saírem juntos, você tem que levar uma caixa de fósforos no bolso.

Meus irmãos todos se calaram e meu pai não disse mais uma palavra, continuou calmamente a almoçar, com o olhar cúmplice de minha mãe: No mesmo instante eu percebi que meu pai também acreditava, ou já tinha visto um saci - pererê.

Durante os próximos dias e durante todo o ano, até a colheita do café, após a qual todos os contratos dos colonos venciam e discutia-se, quem vai ficar na fazenda e quem vai sair, discutíamos os casos dos sacis - pererês.

Certo dia o tirador do leite não encontrava os baldes para a ordenha, num outro dia os rabos dos cavalos apareciam amarrados uns aos outros, noutra ocasião esvaziaram o lavador de café, inundando todo o terreiro de secagem e atrasando o beneficiamento por mais de uma semana, enfim de vez em quando alguma traquinagem acontecia na fazenda: e eu sempre com a caixa de fósforos no bolso.

No final da colheita do café daquele ano, a família do Ditinho resolveu ir embora para São Paulo e eu e meus amiguinhos ficamos muito tristes, pois embora o Ditinho não pudesse jogar bola e tivesse dificuldade de nadar ou caçar de estilingue suas estórias eram muito excitantes.

No dia da sua partida, marcamos com ele para nos despedirmos junto à porteira da fazenda, uns dois quilômetros longe de casa, em meio a uma mata fechada. Quando a carroça com a mudança chegou, não vimos o Ditinho. Perguntamos por ele, e seu pai disse: ele vem vindo a pé pelo meio do mato - e foi embora. Estranhamos muito, mas ficamos ali esperando.

Após algum tempo, ouvimos um assovio longo e forte e nos voltamos para uma «picada» no mato e vimos o Ditinho com um boné vermelho na cabeça, cachimbo na boca, pulando sobre sua perna aleijada, completamente pelado e gritando:- me dá o fogo senão morre ou fica bobo!

Todo amedrontado, retirei a caixa de fósforos do bolso e entreguei ao Ditinho, que saiu rindo alto e assoviando, pulando atrás da carroça de mudança.

O Ditinho era o próprio saci-pererê!