quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Coluna de Manuel Fragata de Morais - O FANTASTICO NA PROSA ANGOLANA - José Mena Abrantes - O Pião



Coluna de Manuel Fragata de Morais - O FANTASTICO NA PROSA ANGOLANA - José Mena Abrantes - O Pião

O Pião

Na ínfima fracção de tempo que decorreu entre o clarão imenso do raio que lhe rachou o crânio e o estrondo que ainda hoje perdura nos ouvidos de muitas testemunhas, M.L. lembrou-se finalmente onde escondera o pião novo de madeira, comprado com o dinheiro que durante semanas fora roubado discretamente da gaveta da cómoda da irmã de sua mãe.

Apesar de já terem passado mais de quarenta anos, M.L surpreendeu-se menos com a recordação do que o facto de se ter podido esquecer durante tanto tempo.
Que memória a minha, comentou para si próprio, dirigindo-se calmamente para a direcção certa.

No dia em que o vi com um pião novo, depois de me ter andado a pedir dias e dias seguidos para lhe comprar um – disse a mãe em pranto, sem saber por que carga de água isso lhe vinha à cabeça precisamente naquele momento – tive um pressentimento que lhe ia acontecer algo de muito mau na via. Meu pobre filho!... E fungava, inconsolável.

O pião ainda estava efectivamente no mesmo local. Sem o brilho e a lisura de antigamente, prometia, no entanto, girar bojudo e leve na palma da mão aberta. O bico de ferro enferrujara, naturalmente, mas isso não tinha assim muita importância.

Altas horas da noite, enquanto cochichavam risos em surdina à volta do caixão tapado, de onde volta e meia saía um ligeiro odor a carne queimada, todos os amigos foram unânimes em recordar a sua tremenda habilidade para atirar o pião nos tempos de escola primária.

Lembraram-se mesmo do dia em que ganhara uma aposta, sozinho contra a escola quase inteira, pondo o pião a girar durante um tempo inacreditável em cima de uma moeda de cinco tostões.


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