sexta-feira, 20 de março de 2015

O conquistador da aldeia - Conto de Virgínia Teixeira


O conquistador da aldeia

Conto de Virgínia Teixeira


Ele tinha calças finamente cortadas na modista da aldeiazinha. A camisa, desabotoada ao nível do coração, deixava entrever um peito liso, duro e forte. O sorriso matreiro denunciava-lhe a condição, sem afastar as meninas. Tinha aquele jeito tão retratado nos livros, o jeito de homem vazio, dotado de um dom único de tornar cativa qualquer uma que o sentisse por perto. Mais do que nos livros, o seu encanto espalhava-se pelas ruas como um perfume ordinário que, apesar de tudo, todas queriam salpicar no corpo.

Era esse o pensamento que as tomava quando o viam passar. Queriam-lhe os dedos espalhados pelas suas curvas, as mãos sôfregas em todos os recantos do corpo e os lábios pousados no suor dos corpos excitados. Até a velha pensava assim. Vira o menino crescer, tornar-se homem, sabia-o de cor (só precisava adivinhar a proporção do tempo) e mesmo depois de tantos anos de cama vazia, quando o via passar ainda se lembrava do beijo atrevido que lhe dera, ainda menino, curioso com os peitos meio descobertos da viúva. Só ela sabia quanto lhe custara mandá-lo embora, ardente como nunca antes.

As moças, novas ainda, algumas quase crianças, sustinham as lágrimas ao vê-lo passar, de mala na mão. Algumas queriam-no de novo, mesmo as que tinham tido a juventude estragada por ele. Não esqueciam o seu sabor. As outras que ele, apesar do empenho em percorrer todas da terra, ainda não tinha conseguido levar para os matos, por falta de tempo ou oportunidade, amaldiçoavam a idade e continham a angústia ao vê-lo passar. Quando ele partisse os bailes e festas perderiam a cor e nenhum peito voltaria a disparar ao vê-lo entrar com o seu olhar galante e o sorriso traquina de sempre.

Ele andava, direito e altivo, despedindo-se de cada uma com sorrisos tão especiais quanto vulgares que muitas recordariam para sempre como momentos mágicos. Olhava as novitas, sedento como sempre, mas sem tempo para as acorrentar também. Outros viriam.



Ia deixar a aldeia. Ali, onde era o rosto de cada príncipe nos sonhos de moças e mulheres feitas, estava tudo acabado. Não havia motivo conhecido que explicasse porque se levantara um dia e anunciara a partida. Ia de pés firmes e nem mesmo os amigos podiam adivinhar o quanto estava aterrado, o quanto lutava para manter as forças.

Ao descer a rua principal, pela estrada rodeada de frondosas árvores, adivinhava os passos silenciosos que o seguiam e, a cada sussurro, aumentava as passadas, até descer toda a rua e passar os limites da aldeia.

A vida numa aldeia não é como noutros lugares. O mundo é mais pequeno, mas tão diverso quanto noutro lugar qualquer, provavelmente até mais.
Pedro nasceu ali e, acredite-se ou não, toda a vida do lugar mudou. Quando partiu, numa tarde de Setembro, as nuvens carregaram-se de cinzento e o Inverno mais rigoroso de há mais de vinte anos, chegou para derrubar, destruir e matar.

Eulália foi a última derrubada por ele nos matos dos arredores da aldeia. Foi das custosas, daquelas a quem tinha sido obrigado a declarar-se diante de toda a família a fim de provar o que, na verdade, não sentia.

Vestiu camisa engomada, de uma cor entre o salmão e o cor-de-rosa, que lhe assentava de forma surpreendentemente máscula, calças imaculadas denunciando-lhe as formas firmes e cuidadas, e calçou os sapatos de sempre, depois de passar parte da manhã a engraxá-los.

Para ele era ponto de honra, era sempre. Quando sorria a uma menina e ela escapava do feitiço, o seu orgulho tornava-se armadura para a Cruzada e jamais descansou enquanto não se enterrou em cada uma das presas. Eulália não foi diferente, era das mais difíceis, das que se achavam espertas demais para serem simples raparigas com vontades.

Viu-a numa festa da aldeia, com o seu vestido carmesim. Dançava como se não reparasse nos que lhe olhavam as pernas descobertas nos rodopios e o peito arfante a fugir-lhe pelo decote mal amanhado. O vestido era bonito nela. Nem deixava entrever as costuras cerzidas vezes sem conta, os remendos e folhos gastos. Não fosse por ali todos saberem que todos os anos desde que se fizera quase mulher, levava aquele trapo carmesim às festas e bailes, e Eulália poderia passar por moça do centro da aldeia ou mesmo da cidade próxima.

Mas não, ela vinha das quintas ali perto, de sítios próximos mas que ainda assim no Inverno eram impossíveis de deixar. Passava meses longe dali, da calma agitação do pequeno lugar, mas sempre que voltava, com o seu vestido carmesim ou outro trapo qualquer confeccionado nas noites frias, das sobras de outros vestidos ainda mais velhos, fazia-se notar.
 


Ele viu-a meio tonta pelo vinho bebido por detrás da Igreja, dançando, sorrindo, volteando tão rápido que as pernas se descobriam até às coxas.
Olhou-a matreiro, percorreu-lhe o corpo com a ardência do desejo e ela nada fez. Continuou a dançar, alegre e embriagada. O espinho de sempre rasgou-lhe a alma e, daí em diante, não desistiu e não fez mais do que segui-la e enleá-la na teia de sempre. De fios mais entrançados talvez, mas uma teia como outra qualquer.

Ela sorria-lhe com tanta desfaçatez quanto a que usava para lhe voltar costas e continuar a sua marcha; e não fugia dele. Ao invés de entender nisto um indício de aceitação, ele via-lhe no olhar o gozo e o espinho enterrava-se ainda mais. As outras mulheres olhavam-no mais uma vez em caça e, como sempre, ele não olhava em redor. Na sua frustração e orgulho ferido procurava às vezes as de sempre, as que nunca o mandavam embora nem lhe pediam demais, mas jamais planeava conquistar mais do que um coração no mesmo momento. Concentrava-se tanto que o que fingia sentir lhe parecia real e, por alguns instantes, deixava-se mergulhar na sinceridade da emoção. Depois via-lhes o peito e as pernas e perdia o coração.

Eulália tinha o rosto marcado pelo sol, mas a cor assentava-lhe bem. Os cabelos, de um negro baço de quem anda ao sol durante todo o Verão, andavam ao sabor do vento, selvagens. O corpo era pequenino, peito chato, só dois montinhos despontando altivos pelo vestido; as pernas meio acetinadas, cobertas por uma subtil penugem que as dourava de encontro à luz. As mãos acanhadas, dedos finos e quebrados do trabalho, unhas curtinhas rente à carne. Não era bonita, nem era fascinante, era menina ainda, com um jeito diferente apenas.

Já não era só menina, tinha olhar de mulher incendiada por dentro. Despertava com as curvas vulgares do corpo, desejo, e Pedro viu nela a magia que as outras viam nele. Ela era mulher, não era perigosa, apenas uma menina de olhar sequioso para se deitar nas ervas e tê-lo sobre si. Teimosa, apenas isso, mas ansiosa por ser domada. Mas, depois de tantas, ela foi a mais difícil de levar pelos carreiros escusos e a sua saia foi a mais pesada de levantar.

Levou meses, aproveitando que Eulália estava na aldeia, em casa dos tios, provavelmente para escapar ao calor intenso e ao trabalho árduo da quinta. Meses de palavras rebuscadas, perseguição incansável, dia e noite; idas decididas à casa, conversas sérias com a família, e sempre o mesmo fim… Os homens viam-lhe a luta e já riam do seu rosto acanhado e do sorriso cada vez menos altivo.

Viam-no parar diante da porta, benzer-se discretamente e bater, decidido a mais uma investida. Na taberna ficavam à espera que ele saísse, fazendo apostas e rindo. Deixavam as cartas e o dominó e olhavam a porta e as janelas. Cada movimento era motivo de exaltação, cada vulto passado pelas cortinas valia mais apostas.

Tempos depois ele voltava a sair, sempre com aquele sorriso acabrunhado, vencido. E eles viam-na, a Eulália, espreitando pela janela, com um sorriso estranho. Esta era das que sabia lutar e as garras afiadas estavam prontos para uma batalha dura. Nem ele estava preparado.

Depois de dois meses, faltando poucos dias para que a moça voltasse para a quinta, exasperado como nunca antes, enveredou pelo caminho mais estranho e árduo para si. Estava cansado das visitas a Eulália, em que ela lhe sorria e fitava com expressão de escárnio, mas em que afastava as pernas um pouco quando os deixavam sós, deixando-o antever o que desejava mais do que qualquer outra coisa que já tinha desejado na vida.
Conseguira roubar-lhe beijos a que ela correspondera com calma frieza e quase indiferença, e sentia-se cada vez mais extenuado pela caça. O caminho que escolheu foi o truque que nunca antes precisou usar.

Nessa noite vestiu-se com especial cuidado. Foi convidado a contragosto para jantar na casa dos tios de Eulália e levava no bolso do casaco oferecido pela velha viúva (o melhor que tinha) um anel que comprara na cidade próxima. Tinha o discurso bem decorado e até as expressões estavam treinadas.

Uma parte de si sabia que havia uma grande probabilidade da noite acabar em chacota e fracasso, mas recusava-se a aceitar a derrota sem lutar até ao fim e com todos os trunfos que podia usar, mesmo aqueles que pensara nunca ter de fazer uso.

Este era o desafio mais angustiante que já aceitara, e a carta final era o anel, um compromisso tão falso quanto os outros, mas muito mais perigoso.

Pareceu-lhe estranho o esgar de quase satisfação de Eulália quando o ouviu fazer o pedido. Reparou que a moça se controlou rapidamente e fechou a cara na indiferença de sempre, mas por um breve instante viu nela uma mulher como as outras.

A resposta veio numa voz quase gélida, ornamentada por um riso matreiro que voltou a reduzi-lo ao papel de homem humilhado. Sentiu-se encolher na cadeira enquanto ela desfiava um rosário de condições às quais, sem saber o que dizer, ele baixava a cabeça em aquiescência.

Eulália sentou-se diante dele, os tornozelos cruzados e a saia subida o suficiente para o deixar descortinar parte da coxa, e disse-lhe, sem rodeios nem gentilezas, que o sabia um vadio que não parava em cama nenhuma e jamais seria mais uma.

Com ela ele teria de esquecer as outras mulheres, deixar o jogo e encontrar a responsabilidade de um trabalho constante. Ele aceitou tudo, sem pensar mais de um momento, enlouquecido já com a visão da coxa daquela moça esquiva demais. Sabia-se demente mas não conseguia controlar o desejo e a obsessão que ela despoletara com aquela longa luta.

Nesse dia assinalaram o noivado perante a família dela com um beijo fugidio em que nem o calor dos lábios dela conseguiu sorver o suficiente para lhe aplacar a ânsia.

Eulália não chegou a voltar para casa. Ali ficou e a ela juntaram-se a mãe e uma prima, para ajudarem nos preparativos do casamento.

A prima Laura era uma mulher esguia, de pele alva e pequenas sardas que lhe tornavam o rosto vagamente comparável ao de uma menina traquinas, emoldurado perfeitamente pelo cabelo avermelhado, tão denso que parecia querer soltar o chapéu de palha rude que a protegia do sol da viagem.

Pedro estava cego de ânsia por Eulália, mas o olhar escapou-lhe quando a viu subir as escadas, com o peito farto escondido por rendas quase delicadas, se não estivessem tão gastas pelo tempo. Com a noiva a seu lado preferiu baixar o olhar e dedicar a Eulália um dos seus sorrisos mais sedutores, que ela recebeu com a gentileza glacial usual.

Mas Eulália estava feliz nesse dia. Foi receber a prima saltitando como uma criança e abraçou-a com um desvelo tal que o faminto homem se viu reduzido a sentir, pela primeira vez na vida, verdadeira inveja. A moça trouxe a prima pelo braço, conversando alegremente com ela, até encontrar Pedro no cimo das escadas. Mudou de expressão, olhou-o com um interesse novo, e apresentou-lhe a prima com uma delicadeza mais enérgica e entusiasmada do que lhe era costume na lida com ele.
 
O rapaz sentiu-se feliz com a mudança, e agarrou-se à alegria da noiva com um regozijo quase infantil. Encantado com o prodígio daquela tarde nem se demorou nos olhares a Laura, sem se deixar sequer reparar que ela lhe sorria afectuosamente, e que a todo o momento o fitava com um interesse descarado. Eulália falou com a prima pela tarde adentro, envolvendo o noivo na prosa, tornando-o motivo de conversa e falando-lhe da prima, com uma graça nunca antes vista.

Faltavam poucos meses para o casamento quando a mãe de Eulália e Laura chegaram, e, daí em diante, nunca mais ela foi com ele a moça fria e impávida que o vinha a torturar há tanto tempo. Tornou-se quase meiga e encetou, com ele e Laura, hábitos de longos passeios e noites passadas a jogar e a bebericar chá na cozinha da casa.

Algum tempo passado as humilhações e desdém pareciam coisas do passado e os momentos passados com a noiva adquiriram uma nova cor, uma esperança nova de a conseguir derrubar antes de ter de se comprometer realmente.
Mas Eulália ainda se escapava de abraços mais estreitos e recusava os beijos mais fervorosos, sem deixar no entanto de o provocar. Sabia-lhe bem aquele jogo, via-se no rosto dela quando se afastava dele com sorrisos traquinas depois de o deixar a arfar de desejo. Ele limitava-se a controlar o corpo e a dizer a si mesmo que podia esperar. Na verdade aquela luta começava a presenteá-lo com ferroadas agridoces que o magoavam tanto quanto aliciavam.

Uma tarde, deitados na erva de um campo, junto à toalha de piquenique, Eulália e Laura conversavam baixinho, enquanto Pedro fingia dormitar.
 
Olhava a noiva com uma atenção desmedida e, de súbito, o peito pareceu contorcer-se e o ar faltou-lhe. O medo fê-lo tremer e os ramos da árvore pareciam agitar-se com a agitação do homem. Ele viu-a, com uma flor presa numa orelha, um sorriso de menina e o ombro descuidadamente desnudo, e apercebeu-se. Se ela se entregasse a ele naquela noite não sabia se era capaz de a deixar, como fizera com todas antes dela.

Havia nela algo diferente, uma energia estranha que já o tinha enfeitiçado mais do que tinha pensado possível. Achava-se de pedra, capaz de seduzir e abandonar qualquer menina ou mulher que tivesse a temeridade de o deixar tomá-la.

Naquele instante descobriu que no peito tinha agora uma emoção diferente, maior, sufocante.

Quis dizer-lhe, mas não foi capaz. Já lhe tinha mentido tanto que receava que ela visse no olhar dele o mentiroso que fora. Preferiu esquecer o conhecimento novo que tinha dos próprios sentimentos e manteve o carinho e cuidado com a moça, imperceptivelmente mais genuíno.

Laura parecia entendê-lo. Atacava-o sem dó e, sem a prima por perto, dizia-lhe o que pensava dele. Sabia-o falso, mas não o acusava com malícia, parecia ter simpatia por essa característica dele e dizia-lhe sem pudores o quanto ele lhe despertava interesse, a afeição que vinha a desenvolver por ele e a graça que lhe achava quando o via com Eulália, desesperado e endoidecido.

De principio ele fugia dessas conversas, temeroso da influência que Laura poderia ter na prima, mas rapidamente compreendeu que podia descobrir nela uma amiga. Admitiu-lhe que tudo começara porque Eulália era uma moça difícil de derrubar nos campos, mas já não sentia o mesmo.
 
Custava-lhe mais admitir o quanto a queria agora do que admitir o quanto lhe tinha mentido. E Laura via-lhe no olhar a vergonha por amar, e sorria com candura, acariciando levemente os cabelos do homem, sem o deixar sentir-se acabrunhado por estas demonstrações de carinho. Todas as tardes conversavam mais e mais, e cedo os três tornaram-se amigos inseparáveis, cada um com laços singulares e ocultos que os ligavam uns aos outros.

Ouviu um toque leve na portada e despertou. Era manhã cedo ainda, o Sol parecia rasteiro e o frio da madrugada não dissipara por completo. Apressou-se a levantar, gritou para a porta que estava a caminho e foi-se vestindo descuidadamente pelo corredor. Na vidraça fosca da porta viu a silhueta feminina e apressou-se a abrir.

Espantou-se com o sorriso de Laura, esperando a expressão plácida de Eulália, mas convidou-a a entrar, preocupado com o motivo de uma visita tão cedo no dia.

Ela entrou vagarosamente, explicou rapidamente que não havia motivo de preocupações e recusou sentar-se, preferindo deambular pela sala, a observar cada canto com uma expressão pouco atenta. Na verdade, pensou Pedro, tinha a expressão de quem tem algo a dizer mas não sabe como.
 
Quis dar-lhe tempo para se recompor, para achar as palavras que lhe aprouvessem e seguiu até ao quarto para se vestir de forma mais decente.
Laura ficou na sala um pouco ainda. Pouco depois atravessou o corredor, entreabriu devagar a porta e viu o homem, de costas, com o peito ainda desnudo, os braços rijos e as costas largas e masculinas.

Abriu um pouco mais a porta e aproximou-se pé ante pé, sem o alertar da sua presença. Sentia-lhe o cheiro cada vez mais perto e sentia-se realmente inebriada. Tocou-lhe de leve nas costas e ele assustou-se, mas não soube afastá-la. Não era da sua natureza resistir, por mais que, no peito, não quisesse ceder.

Laura encostou os lábios devagar num dos ombros masculinos e deslizou-os em carícias, seguiu o pescoço e descobriu os lábios secos de desassossego do homem. Quando conseguiu sentir o calor da boca dele, aproximou apenas um pouco mais o corpo do dele, o suficiente para que ele lhe sentisse os peitos túrgidos contra a pele, e Pedro libertou-se.
A cabeça deixou de funcionar e o coração calou-se um pouco. Abraçou a mulher com uma quase fúria de quase desespero, completamente exasperado consigo mesmo, e jogou-a na cama.

Adormeceu com a boca a saber-lhe a um fel estranho, uma sensação tão estranha para ele quanto fora a ternura que sentira a olhar para a noiva no piquenique, rosto de menina matreira, com uma flor na orelha… Voltou costas a Laura, a amiga que pensava ter encontrado e por quem já tinha tanta estima, e fez por dormir. Não queria falar, perceber, tentar achar sentido para aquela madrugada.

Ao fim da tarde saiu. Foi até ao bar, onde há muito não ia, e bebeu o que pode para achar coragem para jantar com a família da noiva. Quando acordara Laura tinha saído há muito, sem deixar marcas da passagem por ali, e ele passou o dia a tentar esquecer.

No bar as conversas eram as mesmas de sempre, os jogos dos velhos continuavam em campeonatos intermináveis e o cheiro a álcool e suor mantinha-se intenso. Ele sentou-se num canto, o rosto fechado e o olhar longínquo, longe de si mesmo, e bebeu sem saborear os copos de aguardente que o dono lhe ia pondo à frente. Quando anoiteceu seguiu até à casa da noiva, tentando encontrar o equilíbrio do corpo numa atenção redobrada a cada passo que dava.

Laura abriu-lhe a porta reluzente, com uma energia contagiante, mas sem intimidade. Ao invés de aproveitar estar a sós com ele, levou-o imediatamente para a sala onde o esperava Eulália com uma disposição tão singular que se levantou para o receber com um beijo quase amoroso.
Pedro sentiu-se desconcertado, os remorsos a aumentar com o pensamento de que a noiva que não sabia que ele era um traidor, e que aquela prima era manhosa demais, mas estava-lhe na natureza aproveitar as benesses da vida enquanto as havia e naquele momento aquela mulher ainda era dele. Talvez amanhã a noiva o deixasse, mas naquele beijo havia uma ternura maior que se recusava a desperdiçar.

Para seu espanto foi das noites mais agradáveis entre eles e, assim que lhe passou o efeito da bebida, sentiu-se calmo no meio daquela família que já o recebia como parte deles, apesar das iniciais reticências.

Laura mantinha-se à distância, apenas o suficiente para não o coibir, sem nunca se afastar demais, mas cuidando que a prima estivesse com o noivo em todo o momento. Gostava de ver Eulália assim, estava feliz, finalmente satisfeita com o rumo da vida, com a ideia de casar com Pedro e fazia planos de futuro com um júbilo gradualmente mais intenso.

Laura conhecia melhor a prima que qualquer um e sabia-lhe os meandros de pensamento. Sabia em cada instante o que pensava e o que queria, e conhecia de cor todos os desejos e anseios da moça. Pedro era um bom homem e agora que estava apaixonado seria um marido fiel e trabalhador. Viveriam felizes o bastante e ela, Laura, seria uma peça desse casamento.

Quando a família se começou a recolher os três sentaram-se no alpendre a jogar cartas. Com a proximidade de Laura Pedro começou a sentir-se encurralado, mas Eulália recusou-se a deixar que ele se fosse embora, dispensando-lhe tanta ternura que o homem não soube negar-se.

Laura manteve o comportamento de sempre, uma sedução discreta que a ele agora parecia gritante demais. Quando ela lhe tocava no braço, como era seu costume, quase tremia e olhava a noiva com a culpa estampada no rosto. Esta olhava as brincadeiras da prima com carinho e nunca se incomodava, nem mesmo quando a prima abraçava o homem sem pudor em esconder a estreiteza do abraço. Ele sentia-se cada vez mais criança, prisioneiro de sentimentos nobres que detestava sentir e nunca antes conhecera.

Sentia-se como um peixe que estava a aprender a viver fora de água, e não estava a ter muito sucesso. Os pensamentos estavam num turbilhão, os desejos e sentimentos gritavam uns com os outros, e ele sentia-se simplesmente despedaçado.

Eulália era uma menina que já se sentia mulher, e era essa mistura que o deixava atormentado, incapaz de deixar de a fitar e sentir aquela dor estranha no peito. Laura era mulher, sem meninice nem ingenuidade nenhuma, uma mulher que conhecia o próprio corpo, e sabia os meandros do prazer de um homem.

A madrugada com ela fora diferente, e depois de muitos momentos passados com mulheres e meninas, ele nunca tinha sentido o que sentira com Laura, o prazer e a repulsa mais intensos que alguma vez sentira, acomodados num momento apenas.

Eulália estava feliz nessa noite, ele notou. Tocava-o frequentemente, e até se dignava a um beijo ou dois dados por vontade, quando normalmente era ele que os pedia ou roubava. E ele não pode senão calar a culpa, e deixou-se seduzir novamente por ela, a menina que o deixava enlouquecido o suficiente para se esquecer de si.

Na semana antes do casamento Pedro aceitou que não iria conseguir derrubar Eulália sem casar realmente, mas estranhamente não se importou. Uma parte dele sentiu-se mesmo excitada com a ideia de ver Eulália, com um vestido branco novo e um véu discreto, entrar na Igreja para se tornar sua esposa. Que sensação estranha essa, a de querer deixar-se acorrentar.

Bem, na verdade, uma parte dele ainda lhe garantia que o casamento não impedia que ele continuasse a ser aquele que mostrava às meninas o prazer dos corpos deitados na relva. Quando muito seriam apenas guerras mais difíceis, e ele sempre apreciara um desafio.

Laura aparecia de quando em quando, sempre de madrugada, e não o deixava negar-se. Tornava impossível a rejeição com os peitos arfantes, a perna longa suave, ou simplesmente a vontade com que se entregava a ele. E nas noites seguintes Eulália tratava-o com tanto carinho que com o tempo ele começou a desconfiar que não era apenas uma coincidência, mas não conseguia compreender o que motivava a mudança de comportamento.

Talvez Laura, também tomada pela culpa, fosse particularmente prestativa ou animasse a prima com a sua conversa entusiasmada. Pedro não conseguia evitar sentir-se fascinado por Eulália, tanto quanto não conseguia rejeitar Laura quando lhe aparecia, já meio desnuda, à porta do quarto.

Deixar a aldeia pareceu-lhe a única solução depois daquela tarde. Quando a noticia chegasse (e chegaria, chegava sempre) à aldeia, ele seria um desgraçado, nada mais do que um tonto apaixonado que se tinha deixado trair da forma mais reles possível.

A ideia de partir assustava-o, mas ficar seria ainda mais difícil. Tentaria a sorte na cidade grande, e se não desse certo, escolheria uma aldeia ao calhas para começar de novo. Agora que se encontrara novamente, só queria voltar a ser o homem que sempre fora. O homem que desde menino soubera encantar as mulheres e meninas, e que se deitara com elas sem remorsos nem emoções, apenas sensações, apenas dois corpos a saciar uma vontade grande demais para calar.

Esqueceria aquele último ano, esqueceria o caminho da aldeia, a viúva que o olhava lascivamente desde menino, as meninas que tornara mulheres e as que lhe faltavam, esqueceria o caminho à saída da aldeia onde havia um recanto escondido perfeito para se perder. Esqueceria a conversa animada dos homens na taberna, e as apostas que fizeram sobre ele e as suas conquistas. Esqueceria o gozo e a vergonha, e as emoções que Eulália o fizera sentir. Esqueceria Eulália assim que passasse o limite da aldeia. Esqueceria Laura uns metros antes. Esqueceria aquele ano de vergonha.

No dia do casamento parecia haver mais lágrimas do que sorrisos. As meninas e mulheres da aldeia sustiveram o fôlego em uníssono quando o padre perguntou a Pedro se ele aceitava Eulália. Algumas não conseguiram evitar fungos e murmúrios quando ele finalmente respondeu. Os homens dividiam-se em lamentos e alegria, dependendo da aposta que tinham feito.

Eulália estava particularmente feliz nesse dia, e parecia apenas uma moça como as outras que, depois de muito custo a dominar, parecia ter encontrado o carinho que ele tanto ansiara. Talvez não a paixão, essa ele tinha pelos dois, mas isso seria fácil de lhe ensinar. Era apenas uma menina, afinal.

Saíram da igreja de braços dados, ele com um sorriso tão largo que parecia transformar-lhe o rosto, ela com um sorriso de contentamento adequado. Laura nunca parecia estar muito longe, sempre a ajeitar o vestido ou o véu da prima, e só os deixou quando entraram no carro para ir para a festa.

Pedro estava inquieto, ansioso, incapaz de esperar muito mais e, ao invés de seguir para a fronteira da aldeia onde a festa os esperava, voltou para um caminho que conhecia bem e onde sabia que não seriam encontrados. Eulália pareceu compreender desde logo a sua intenção, mas não se negou, apenas sorriu. E foi assim que Pedro conseguiu finalmente levantar a pesada saia de Eulália, sem sequer se importar com as manchas da relva que lhe marcaram o vestido.

Pedro viu-as na noite do casamento. Enquanto esperava pela noiva para se deitar com ela na cama de matrimónio, ainda não satisfeito o seu desejo por ela, pensava apenas no sabor da pele dela, no calor inesperado dos beijos daquela mulher que sempre lhe parecera tão glacial, na energia dos movimentos que o deixaram atordoado, pronto que estava para uma menina assustada que não sabia o que fazer.

Pensava no cuidado com que ela o instigara a tocar-lhe, na sabedoria pouco escondida sobre o seu prazer. E tentou afastar os receios, os momentos em que uma voz lhe dissera baixinho para fugir, para perguntar… Mas não quisera, claro que não. Era a sua esposa. Palavra estranha essa. Sabia-lhe a fel nos lábios.

Quando ela finalmente veio para o quarto, Laura vinha com ela, ambas de roupa de dormir, bonitas camisolas bordadas a renda branca. Pareciam duas noivas inocentes e virginais. Mas Pedro, quando finalmente compreendeu o que a vida lhe estava a presentear, sentiu-se destroçado.
 
Se não amasse Eulália como tinha aprendido a amar, seria sem dúvida o homem mais abonado da aldeia, mas não conseguia afastar a dor da traição. No momento em que viu Eulália e a prima de mãos entrelaçadas, o coração partiu-se e deixou escorrer o rio de emoções que o vinham a dominar há meses.

O amor por Eulália, a culpa, a vontade de ser um homem como os outros, o carinho, a ternura, a esperança… Sentiu todas as emoções a esvaírem-se e sentiu-se mais leve a cada instante. Naquele momento reencontrou o Pedro de antes, o Pedro que não se deixava dominar, mas dominava, o que não se deixava encantar, mas encantava, o que seduzia e se deixava seduzir por vontade.

Na manhã seguinte fez a mala e partiu. Deixou as duas mulheres a dormir entrelaçadas na cama, saciadas, e deixou-se parar apenas um instante para recordar o rosto da mulher que o tinha conseguido vencer. Decorou cada feição, cada milímetro do seu corpo, para se lembrar da visão do perigo. Para nunca mais se deixar vencer.

Via as meninas escondidas nas janelas, e a viúva com uma lágrima ao canto do olho, via as mulheres casadas que tinham sido dele, e aquelas que ainda sonhavam com ele, e sorriu-lhes a todas com o sorriso traquina que lhe era característico.

Encontrou forças para um sorriso especial a cada uma, um breve instante de memórias guardadas, uma despedida única.

Desceu a rua principal da aldeia, mala na mão, o peito ainda dorido e o passo apressado, e ao passar o limite da aldeia, esqueceu-as a todas. 




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