quarta-feira, 18 de março de 2015

MARCIANITA - Crónica de Arlete Brasil Deretti Fernandes


MARCIANITA



Crónica de Arlete Brasil Deretti Fernandes



Há muitos anos, residi com minha família numa cidade interiorana onde havia um grande porto marítimo e pesqueiro. O povo cultivava tradições açorianas, por terem os seus antepassados vindo da Ilha dos Açores.

Como toda boa cidade portuária, não faltava ali a ZBM, ou zona do baixo meretrício, que uns chamavam de «casa das primas», para outros «zona» ou mesmo outros nomes que prefiro não citar. Dizem que a atividade principal ali realizada é o exercício da profissão mais antiga do mundo.

Também fui informada de que uma zona não é muito diferente da outra. São aglomerados de casas, algumas só vendendo bebidas e cigarros e outras só com quartos para rotatividade. Tinha algumas que eram completas, com lanchonete, cômodos, bar e salão de baile.

O fato que a mim foi relatado aconteceu no mês de agosto, época de safra de enchovas e daquele vento nordeste que geme, grita e assobia como um louco, sem parar, varrendo tudo o que tem pela frente.

Foi numa noite sem estrelas. Tripulantes de pesqueiros chegavam para passar horas de prazer e de orgia nos braços das «flores da noite», deixando ali suas frustrações e seus temores de tempestades quando tinham que invocar a Santa Bárbara e o São Jerônimo.

O ponto de partida para uma noite de orgia e de prazer foi iniciado no salão de danças. E é ali que recomeçava tudo a cada noite. Os sacerdotes e sacerdotisas de Baco bebiam, dançavam, comiam e esqueciam os perigos do mar.

Naquela noite o salão estava lotado. O conjunto musical não dava descanso aos dançadores. O acordeonista ou sanfoneiro, como é mais conhecido, após tomar umas doses pagas pelos apreciadores e dançarinos, se empolgava, e o som que partia do fole era alegre e convidativo.

Todos levantam-se das mesas e escolhem um par para a dança, chamada por alguns de «bate-coxas», «esfrega-saco» ou «roça-peito»!.

Marcianita era a música que estava no auge das paradas de sucesso nas rádios e nos bailes. Ali também se encontrava um apreciador de Marcianita, com o pé que era um leque e de «pé cagado», isto é, com as «guampas» cheias de cuba libre.

Ele tinha perdido sua quenga, aquela ingrata, de vestido vermelho, cabelos pretos e soltos, e os seios empinadinhos que queriam saltar do decote. Outro gajo a carregou e com ela dançava sem parar: nheco-nheco-nheco-nheco.

Num momento o gaiteiro fez uma pausa para dar um descanso, ir ao banheiro e fumar um cigarro. Quando voltou e pegou novamente a sanfona de fole, ouviu de alguém:
 - Gaiteiro, sapeca aí a Marcianita!
 E ele começou: -Marcianita, branca ou negra, gorduchinha, magrinha, gigante serás meu amor...
 O salão estava repleto, a animação era total.

De repente, o descornado passou pelo que dançava com sua dama, e como não tinha nada a perder, arrastou o outro pelo colarinho e a porrada pegou. E a gaita parou.

Foi um corre-corre, e a turma do «deixa pra lá» botou água fria na fogueira e arrastou pelas pernas o brigão, trancando-o num quarto. Tudo normalizado, o gaiteiro sapeca de novo a Marcianita. Quando a dança começou a esquentar, o pau começou a quebrar de novo.

E neste para e toca e toca e pára, não deu outra. Já era a quinta vez que tocava a Marcianita e não tinha jeito de chegar ao final, porque a briga sempre começava.

Foi aí que apareceu um cabra-macho, soltando fogo pelas ventas, portando uma bicuda ou peixeira, faca usada pelos pescadores para limpar o peixe e cortar corda ou rede.

Foi só soarem as primeiras notas da Marcianita, quando o gaiteiro abriu o fole da gaita e saiu um som diferente, rasgante e xoxo: - Froing. O fole foi cortado e a porrada pegou de todo o lado, com cadeirada e garrafada, até chegar a polícia e a calma retornar.

Um policial indagou o valentão que respondeu:

-Cortei e corto de novo se a Marcianita começar e não terminar.




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