Mulher: Verônica
Por Abílio Pacheco
Para homenagear as mulheres por ocasião do dia oito de março que se aproxima, resolvi retirar das gavetas esta prosa poética que faz parte de um projetinho de livro nascido após a leitura de As cidade invisíveis, de Ítalo Calvino. A ideia: cada texto teria um nome de mulher com letra inicial diferente. Eis a letra “v”.
Verônica
Conheci Verônica numa noite de sábado já passada a meia-noite, portanto domingo eu deveria dizer. Não digo. A magia do sabath para mim só encerra pela manhã, aos raios do sol. E a magia dos encontros com essa mulher nada tem a ver com o dominus diem. Seus cabelos pagãos, seus olhos em brilho de Blimunda, seu rosto serenado em sisudez, seu corpo em talho de telha e em textura de camurça, seus seios suculentos e em formato de minhas mãos enconcheadas, sua língua com gosto de prazer procrastinado… toda ela tinha promessa de me deixar proscrito. Definitivamente Verônica era mulher de outras vias diversas da via sacra. O amor nela, por ela, com ela não combinavam com o domingo.
Não pense que de Verônica tive o retrato dado, compreendido, logo de primeira. Sabia que ela estava no 11º piso da torre, cujos andares tinham pé direito sobrelevado em metade. Só não sabia da rusticidade do prédio. Não bastava o esforço de argumento para convencê-la de me ceder endereço de sua morada. Nem o quanto ainda iria papear para poder conhecê-la mulher. Era preciso demonstrar fôlego. Pé ante pé. Degrau a degrau. Patamar por patamar. A torre tinha os elevadores defeituosos e, naquele dia, quebrados. Suspeito dela me ter chamado justo neste dia propositadamente. Era preciso vencer algumas provas. O controle da ansiedade era já por si a primeira e aqueles 363 degraus eram a segunda. No alto, é certo, estaria a terceira.
Como disse, não espere que dela tenha conhecido mulher já nesta subida. O esforço de subir degraus e três lances de escada por andar resultaram-me em gostosas dores em abdomên e panturrilhas. A porta, dissera-me, estaria apenas encostada. Foi o que lembrei já passando o sexto andar, quando os movimentos do corpo tornam-se de repetição irreflexiva. Subi o último lance de onze degraus no esforço de controlar respiração e caminhei até a porta de olhos fixos num post-it. Entre e esteja à vontade. Era um conjugado, ao primeiro passo era já possível dar conta do apartamento todo. Estava vazio.
* * *
Eu chegaria a ela naquela primeira noite apenas por acordes e melodias. Ainda semi-esbaforido sentei à borda da cama. Apoiei cotovelos em joelhos e depois derreei-me para trás sobre os lençóis aplainados. De olhos fechados, veio-me Verônica por uma voz em melodia a sair de mim mesmo quase como num canto em capela:
Verônica, me sinto tão só…
Quero sua boca beijar… (*)
(*) são versos da canção intitulada “Verônica”, de Maurício Reis
Por Abílio Pacheco
Para homenagear as mulheres por ocasião do dia oito de março que se aproxima, resolvi retirar das gavetas esta prosa poética que faz parte de um projetinho de livro nascido após a leitura de As cidade invisíveis, de Ítalo Calvino. A ideia: cada texto teria um nome de mulher com letra inicial diferente. Eis a letra “v”.
Verônica
Conheci Verônica numa noite de sábado já passada a meia-noite, portanto domingo eu deveria dizer. Não digo. A magia do sabath para mim só encerra pela manhã, aos raios do sol. E a magia dos encontros com essa mulher nada tem a ver com o dominus diem. Seus cabelos pagãos, seus olhos em brilho de Blimunda, seu rosto serenado em sisudez, seu corpo em talho de telha e em textura de camurça, seus seios suculentos e em formato de minhas mãos enconcheadas, sua língua com gosto de prazer procrastinado… toda ela tinha promessa de me deixar proscrito. Definitivamente Verônica era mulher de outras vias diversas da via sacra. O amor nela, por ela, com ela não combinavam com o domingo.
Não pense que de Verônica tive o retrato dado, compreendido, logo de primeira. Sabia que ela estava no 11º piso da torre, cujos andares tinham pé direito sobrelevado em metade. Só não sabia da rusticidade do prédio. Não bastava o esforço de argumento para convencê-la de me ceder endereço de sua morada. Nem o quanto ainda iria papear para poder conhecê-la mulher. Era preciso demonstrar fôlego. Pé ante pé. Degrau a degrau. Patamar por patamar. A torre tinha os elevadores defeituosos e, naquele dia, quebrados. Suspeito dela me ter chamado justo neste dia propositadamente. Era preciso vencer algumas provas. O controle da ansiedade era já por si a primeira e aqueles 363 degraus eram a segunda. No alto, é certo, estaria a terceira.
Como disse, não espere que dela tenha conhecido mulher já nesta subida. O esforço de subir degraus e três lances de escada por andar resultaram-me em gostosas dores em abdomên e panturrilhas. A porta, dissera-me, estaria apenas encostada. Foi o que lembrei já passando o sexto andar, quando os movimentos do corpo tornam-se de repetição irreflexiva. Subi o último lance de onze degraus no esforço de controlar respiração e caminhei até a porta de olhos fixos num post-it. Entre e esteja à vontade. Era um conjugado, ao primeiro passo era já possível dar conta do apartamento todo. Estava vazio.
* * *
Eu chegaria a ela naquela primeira noite apenas por acordes e melodias. Ainda semi-esbaforido sentei à borda da cama. Apoiei cotovelos em joelhos e depois derreei-me para trás sobre os lençóis aplainados. De olhos fechados, veio-me Verônica por uma voz em melodia a sair de mim mesmo quase como num canto em capela:
Verônica, me sinto tão só…
Quero sua boca beijar… (*)
(*) são versos da canção intitulada “Verônica”, de Maurício Reis
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