A senhora Joaquina - Conto de Daniel Teixeira
Tinha este nome, Joaquina...enfim, eu acho que era assim o seu nome, mesmo que agora isso não seja assim tão importante. Faleceu há bastantes anos, tinha eu talvez uns catorze ou quinze anos. Mas conheci-a a ela praticamente desde que me conheci a mim.
Sempre a vi e ainda hoje a vejo com duas malas que sempre pensei serem muito pesadas. Calcorreava a cidade de Faro vinda de uma aldeia próxima. Estivemos lá uma vez, a visitá-la. Fomos, eu, a minha mãe e o meu irmão que na altura era o mais novo, de camioneta. O outro, o que nasceu alguns anos depois não deve ter conhecido a senhora Joaquina como eu a conheci. Acho mesmo que nenhum deles conheceu da vida dela aquilo que eu conheci.
Vivia numa casa térrea, rodeada por uma cerca e no terreno havia árvores de fruto. Lembro-me bem das ameixas mas havia também laranjeiras, amendoeiras e duas ou três alfarrobeiras e ainda amoras... sempre reparei nestas coisas, nas árvores plantadas.
Nesse tempo não sabia, penso que não sabia como sei hoje porque gostava tanto das árvores mas agora penso que talvez seja porque dão uma ideia de continuidade nas vidas. A senhora Joaquina faleceu e as árvores lá ficaram e ainda lá florescem e dão frutos todos os anos, penso eu. De qualquer forma é assim que eu vejo hoje aquela sua casa e as suas árvores. Já lá estavam quando ela nasceu, isso eu sei porque ela me disse e ficarão para sempre na imagem que tenho da sua casa.
Vendia roupas, a senhora Joaquina. Enviuvara, talvez nos tempos da pneumónica, isso nunca perguntei, não tinha filhos nem propriedade que lhe bastasse e vendia roupas.
Naquele tempo não havia muita coisa que se pudesse vender assim de porta em porta. Era sobretudo roupa interior que ela vendia, meias de lã e algum tecido para costurar, botões, agulhas: do tecido trazia as amostras e na volta seguinte entregava.
Era uma senhora muito alegre, sempre bem disposta e vendia também umas rifas que davam cem escudos da roupa que ela vendia a quem saísse o número premiado. Era muito amiga da minha mãe, talvez porque fossem as duas camponesas, ainda que nascidas e criadas a muitos quilómetros de distância, mas acho que o pessoal do campo é igual em todo o lado e isso sabe-se logo: a amizade e a cumplicidade já lá estão antes das pessoas se conhecerem bem. É assim mesmo.
Talvez por isso a minha mãe foi provavelmente a única a saber que ela nem ligava aos números da lotaria para dar os prémios de cem escudos em roupa. Umas vezes dava a uma senhora, outras vezes dava a outra, outras vezes dava à minha mãe...e outras ficava para ela: quando lhe perguntavam a quem tinha saído respondia que tinha sido a uma senhora do Alto Rodes, outras vezes uma senhora do Pé da Cruz, enfim...para os outros era sempre indeterminada a ganhadora. Ela mesma, muitas vezes.
Como disse era uma pessoa muito alegre, as gargalhadas soavam desde que chegava até que partia de nossa casa carregando as duas malas. Às vezes comia mesmo ali na nossa casa: trazia uma marmita com comida do campo que a minha mãe aquecia e era mesmo uma pena vê-la partir depois...era mesmo uma alegria de pessoa.
Depois, bem, depois teve um azar, só se pode dizer disso ter sido um azar... Segundo ela estava um fim de semana a fazer a limpeza da casa e tinha lá uma arca com roupas do falecido que foi escolhendo e metendo numa fogueira que fez no quintal da cerca. Aquilo que achava que já não serviria para nada e estava ali a ocupar espaço, a apodrecer e já não lhe trazia recordação nenhuma.
Esqueceu-se, disse depois ela passado mais de um mês sem nos visitar, que tinha guardado todo o seu dinheiro, todas as notas amealhadas no meio dessas roupas. Quando se lembrou já era tarde. Todo o dinheiro acarinhado ao longo de anos, carregando as duas pesadas malas pela cidade de Faro, percorrendo quilómetros e mais quilómetros tinha ardido.
Envenenou-se, teve uma quebra e a alegre senhora Joaquina envenenou-se. Os vizinhos ainda acorreram a tempo depois de terem ouvido os gritos dela e levaram-na ao hospital. Esteve lá cerca de um mês e recomeçou a sua vida e foi só quando ela nos foi visitar que soubemos do sucedido.
Mas já não era a senhora Joaquina que eu tinha conhecido: encolhida numa cadeira na nossa cozinha, pequenina e triste, beberricava uma gemada com cerveja preta que a minha mãe lhe tinha feito: Precisa de ganhar forças, senhora Joaquina, precisa de ganhar forças, dizia-lhe a minha mãe. E por ali ficaram conversando um bom bocado.
Quando se foi embora tive a certeza que nunca mais veria a senhora Joaquina tal como a tinha visto até aquela altura. Há pessoas que morrem antes de morrer e a senhora Joaquina morreu quando perdeu o resultado de todo o seu esforço de tantos anos de trabalho e eu disse-lhe um adeus sem querer mostrar o desgosto que me ia na alma.
Pobre senhora Joaquina: o sobrinho roubou-lhe todas as economias e foi para o Canadá. Ela não quis fazer queixa nem disse a mais ninguém porque ele era do seu sangue e este envenenou-lhe o sangue dela para sempre.
Daniel Teixeira
Tinha este nome, Joaquina...enfim, eu acho que era assim o seu nome, mesmo que agora isso não seja assim tão importante. Faleceu há bastantes anos, tinha eu talvez uns catorze ou quinze anos. Mas conheci-a a ela praticamente desde que me conheci a mim.
Sempre a vi e ainda hoje a vejo com duas malas que sempre pensei serem muito pesadas. Calcorreava a cidade de Faro vinda de uma aldeia próxima. Estivemos lá uma vez, a visitá-la. Fomos, eu, a minha mãe e o meu irmão que na altura era o mais novo, de camioneta. O outro, o que nasceu alguns anos depois não deve ter conhecido a senhora Joaquina como eu a conheci. Acho mesmo que nenhum deles conheceu da vida dela aquilo que eu conheci.
Vivia numa casa térrea, rodeada por uma cerca e no terreno havia árvores de fruto. Lembro-me bem das ameixas mas havia também laranjeiras, amendoeiras e duas ou três alfarrobeiras e ainda amoras... sempre reparei nestas coisas, nas árvores plantadas.
Nesse tempo não sabia, penso que não sabia como sei hoje porque gostava tanto das árvores mas agora penso que talvez seja porque dão uma ideia de continuidade nas vidas. A senhora Joaquina faleceu e as árvores lá ficaram e ainda lá florescem e dão frutos todos os anos, penso eu. De qualquer forma é assim que eu vejo hoje aquela sua casa e as suas árvores. Já lá estavam quando ela nasceu, isso eu sei porque ela me disse e ficarão para sempre na imagem que tenho da sua casa.
Vendia roupas, a senhora Joaquina. Enviuvara, talvez nos tempos da pneumónica, isso nunca perguntei, não tinha filhos nem propriedade que lhe bastasse e vendia roupas.
Naquele tempo não havia muita coisa que se pudesse vender assim de porta em porta. Era sobretudo roupa interior que ela vendia, meias de lã e algum tecido para costurar, botões, agulhas: do tecido trazia as amostras e na volta seguinte entregava.
Era uma senhora muito alegre, sempre bem disposta e vendia também umas rifas que davam cem escudos da roupa que ela vendia a quem saísse o número premiado. Era muito amiga da minha mãe, talvez porque fossem as duas camponesas, ainda que nascidas e criadas a muitos quilómetros de distância, mas acho que o pessoal do campo é igual em todo o lado e isso sabe-se logo: a amizade e a cumplicidade já lá estão antes das pessoas se conhecerem bem. É assim mesmo.
Talvez por isso a minha mãe foi provavelmente a única a saber que ela nem ligava aos números da lotaria para dar os prémios de cem escudos em roupa. Umas vezes dava a uma senhora, outras vezes dava a outra, outras vezes dava à minha mãe...e outras ficava para ela: quando lhe perguntavam a quem tinha saído respondia que tinha sido a uma senhora do Alto Rodes, outras vezes uma senhora do Pé da Cruz, enfim...para os outros era sempre indeterminada a ganhadora. Ela mesma, muitas vezes.
Como disse era uma pessoa muito alegre, as gargalhadas soavam desde que chegava até que partia de nossa casa carregando as duas malas. Às vezes comia mesmo ali na nossa casa: trazia uma marmita com comida do campo que a minha mãe aquecia e era mesmo uma pena vê-la partir depois...era mesmo uma alegria de pessoa.
Depois, bem, depois teve um azar, só se pode dizer disso ter sido um azar... Segundo ela estava um fim de semana a fazer a limpeza da casa e tinha lá uma arca com roupas do falecido que foi escolhendo e metendo numa fogueira que fez no quintal da cerca. Aquilo que achava que já não serviria para nada e estava ali a ocupar espaço, a apodrecer e já não lhe trazia recordação nenhuma.
Esqueceu-se, disse depois ela passado mais de um mês sem nos visitar, que tinha guardado todo o seu dinheiro, todas as notas amealhadas no meio dessas roupas. Quando se lembrou já era tarde. Todo o dinheiro acarinhado ao longo de anos, carregando as duas pesadas malas pela cidade de Faro, percorrendo quilómetros e mais quilómetros tinha ardido.
Envenenou-se, teve uma quebra e a alegre senhora Joaquina envenenou-se. Os vizinhos ainda acorreram a tempo depois de terem ouvido os gritos dela e levaram-na ao hospital. Esteve lá cerca de um mês e recomeçou a sua vida e foi só quando ela nos foi visitar que soubemos do sucedido.
Mas já não era a senhora Joaquina que eu tinha conhecido: encolhida numa cadeira na nossa cozinha, pequenina e triste, beberricava uma gemada com cerveja preta que a minha mãe lhe tinha feito: Precisa de ganhar forças, senhora Joaquina, precisa de ganhar forças, dizia-lhe a minha mãe. E por ali ficaram conversando um bom bocado.
Quando se foi embora tive a certeza que nunca mais veria a senhora Joaquina tal como a tinha visto até aquela altura. Há pessoas que morrem antes de morrer e a senhora Joaquina morreu quando perdeu o resultado de todo o seu esforço de tantos anos de trabalho e eu disse-lhe um adeus sem querer mostrar o desgosto que me ia na alma.
Pobre senhora Joaquina: o sobrinho roubou-lhe todas as economias e foi para o Canadá. Ela não quis fazer queixa nem disse a mais ninguém porque ele era do seu sangue e este envenenou-lhe o sangue dela para sempre.
Daniel Teixeira
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