quarta-feira, 18 de março de 2015

A ESCOLA - Por José Francisco Colaço Guerreiro


A ESCOLA

Por José Francisco Colaço Guerreiro

Recolhido em Património



 A escola era a primeira grande contrariedade da nossa vida. Se calhar, foi assim desde sempre e até há bem pouco tempo, quando a moçada inverteu as regras e passou a dominar, exigindo com gritos e prantos, tiranizando com rebeldia e desassossego.

Mas dantes, a escola era o verdadeiro desmame, o largar as saias, o caminhar sozinho, balsa às costas, para aprender a ser homem, numa caminhada que se completava mais tarde, depois das sortes, a marchar em pelotão, espingarda às costas.

 Os primeiros gatafunhos eram feitos numa pedra de ardósia encaixilhada a madeira de cor natural que depois ia escurecendo e ganhando lustro com passar do tempo e dos dedos, às vezes besuntados de agarrarem o pão com banha salpicada de açúcar. Os lápis eram da mesma pedra , muito redondinhos e afilados, do tamanho de um palmo, forrados a papel numa das pontas, num axadrezado verde, vermelho ou azul, de tons desbotados, talvez pela cola.

 Quando se acabavam os compradiços, faziam-se de talisca, raspados à faca e rolados no chão para os adelgaçar e lhes arredondar a forma. Usava – se como acessório um frasquinho de remédio vazio, para encher com água e depois molhar num farrapo com que se limpava a escrita. Era esse o bom proceder, mas muitas vezes acontecia usar-se o cuspinho e a manga da blusa para o mesmo efeito.

 Com as brincadeiras, empurrão de um moço, chulipa de outro, rasteira ou escorregadela do cardado das botas nas calçadas polidas, vinha a balsa ao chão e a pedra partia-se. Um pranto até casa, baba e ranho com fartura, queixas e mais queixas para comover, depois, tareia, perdão ou castigo e com muita sorte, lá se arranjavam dez tostões para comprar outra, novazinha, para no outro dia mostrar: ao professor os trabalhos; aos colegas a brancura da moldura, ainda sem dedadas nem borrões de tinta.

 Pior do que tudo, ainda pior do que disciplina do erguer bem cedo, do estar comportado horas a fio sentado numa carteira, dos trabalhos de casa, da falta de tempo para a brinca, eram os maus tratos que os professores davam.
Empinar a tabuada numa cantarolada colectiva, saber conjugar os verbos num recitar decorado, desfiar os nomes dos rios, das serras e das estações dos caminhos-de-ferro, daqui e dalém mar em Africa, era empresa pequena face à afronta da sujeição de se estar uma manhã inteirinha à janela da escola com as orelhas de burro enfiadas na cabeça. Mas mais custoso ainda, eram as ponteiradas fazedoras de galos que nos arrepiavam mesmo quando estoiravam nas cabeças dos outros.

 E as meninas de cinco olhinhos, palmatórias concebidas para extrair uma dor máxima de quem as experimentava, com o esforço mínimo de quem as manobrava, eram verdadeiros objectos de tortura que o próprio sistema acabou por proibir.

 Mas sucederam-lhes as réguas, de pau-santo ou madeira rosa, bem grossas e pesadas que era para fazer arder. Os professores tiravam as malditas, de um castanho avermelhado, da gaveta da secretária no princípio do dia e estendiam-nas ao seu lado, em cima do tampo, bem à vista de todos.

 Eram os problemas mal resolvidos, os erros dos ditados, as falhas de memória, o azar de se ser criança em tempo cinzento que davam azo a tanta reguada. Havia tabela. Tantas por cada erro e tantas por cada conta mal feita. Tantas por isto e outras tantas ou ainda mais por aquilo. O bater fazia parte das regras, como agora faz parte não contrariar os miúdos e deixá-los ter o protagonismo todo.

 Mesmo os pais, numa atitude de alguma inferioridade, subserviência ou temor reverencial face ao professor, não raro diziam ou mandavam o recado: chegue-lhe! As que caem no chão são as que se perdem! Desde que não lhe parta braço nem perna…chegue-lhe!...

 A escola só era suportável uma ou duas vezes no ano quando o professor Abílio cá vinha dar, trazendo de Beja uma maquineta para passar filmes com desenhos animados de coelhos a comer cenouras e mosquitos que picavam e depois davam febrões.

 Nesse dia havia tréguas. As réguas malditas de um acastanho avermelhado não saíam da gaveta. Corriam-se os estores e penduravam-se panos de flanela preta nas janelas para fazer escuro. Era um alívio.

 Mas logo voltava o fadário dos ditados, das contas, das idas ao quadro e depois…das reguadas. Cinco numa mão. Cinco na outra. Quando anteviam a zurzidela, os miúdos iam à cerca do Virgílio Lagartinho à busca de cebola albarrã e untavam as mãos muito bem untadas. Havia a crença de que com tal fricção a carne não doía e se a mezinha fosse bem feita, até podiam fazer estalar a régua. Que se saiba não passou de crença.

 Mas quando eram apanhados desprevenidos, sem preparação prévia, as pernas tremiam, os braços esticavam-se devagarinho, alternadamente, a muito custo e apetecia tirar a mão na hora certa, para sair em falso a palmatoada e verem o professor atingir-se. Mas ninguém o fazia, porque eles iravam-se e ainda se entornava o caldo. Aguentava-se como se podia, menos as lágrimas porque essas escorriam imparáveis.

Passo largo para o lugar. As mãos inchavam de dor. Sem saber o que lhes fazer, metiam-se entre os braços num gesto instintivo como que para esconder. Logo a seguir cuspiam nelas e agarravam os ferros da estrutura das carteiras. Ouviam-se chiar. Se havia força para pedir para vir cá fora ou se a zirga acontecia pouco antes do intervalo, a custo tiravam a gaita e lavavam-nas na urina nem sempre contida. Também era mezinha. Aos outros, mais tarde, dizia-se que era remédio santo.

 Nas memórias de um tempo cinzento talvez existam escolas coloridas, com rodas e risos de meninos, mas a nossa só ganhava alguma cor quando os panos de flanela preta tapavam a luz das janelas e por uns momentos, víamos os bonecos que o professor Abílio trazia de Beja.




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