Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio
Sobre o autor:
João Antônio (1937 – 1996), além de jornalista, foi um escritor do submundo, retratando nas suas obras os marginalizados – prostitutas, cafetões, porteiros, malandros – aos quais empresta a profundidade da filosofia e da teoria literária. Abandonadas pela vida, estas personagens periféricas surgem assim enaltecidas por uma linguagem de registo, simultaneamente contista e de reportagem, com frases curtas e estilo conciso. Malagueta, Perus e Bacanaço, o seu primeiro livro, que conta a história de três malandros paulistas, ganhou dois Prémios Jabuti e foi traduzido para oito idiomas.
Sobre o autor:
João Antônio (1937 – 1996), além de jornalista, foi um escritor do submundo, retratando nas suas obras os marginalizados – prostitutas, cafetões, porteiros, malandros – aos quais empresta a profundidade da filosofia e da teoria literária. Abandonadas pela vida, estas personagens periféricas surgem assim enaltecidas por uma linguagem de registo, simultaneamente contista e de reportagem, com frases curtas e estilo conciso. Malagueta, Perus e Bacanaço, o seu primeiro livro, que conta a história de três malandros paulistas, ganhou dois Prémios Jabuti e foi traduzido para oito idiomas.
«Há algum tempo que venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando.
Chutar tampinhas que encontro no caminho. É só ver tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual a marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a ideia de que para acertar, necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável, o entusiasmo desaparecer antes do chute. Sem graça.
Meu irmão, tipo sério, responsabilidades. Ele, a camisa; eu, o avesso. Meio burguês, metido a sensato. Noivo...
– Você é um largado. Onde se viu essa, agora!
É que eu, às vezes, interrompo conversas na calçada para os meus chutes.
Só um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar um chute digno para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa. Sobem. Não demoram muito, que ainda não sou um grande chutador. Mas capricho, porque elas merecem.
Minhas tampinhas... Umas belezas.»
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