terça-feira, 28 de abril de 2015

Verão - Conto de Daniel Teixeira


Verão

Conto de Daniel Teixeira

Havia uma chaminé, uma chaminé pequena, branca e também tisnada de um negro não muito escuro. Quase nem se notava, o negro. A chaminé parecia assentar nas telhas, e era mesmo assim como eu digo, assentava, simplesmente, como se tivesse sido ali plantada. Era como se fosse uma árvore de tronco claro num chão de terra castanha.

Por aquilo que eu via era uma casa baixa, ou talvez eu estivesse num ponto mais alto que o seu solo, não vi isso desde logo. Há casas baixas, eu sei que há, mas assim tão baixas mostrando-me o telhado e o enfiamento das telhas logo ali à minha altura, isso não. Teria de ser uma casa muito baixa, demasiado baixa para ter gente.

E tinha gente, tinha que ter. Havia um fumo ligeiro, esbranquiçado que saía do rendilhado da chaminé, assim - e fiz um gesto com as duas mãos - fazendo uma espiral que se diluía logo um metro ou dois depois em direcção ao azulado escuro do céu.

Talvez houvesse ali uma velhota, uma viúva, aquecendo-se à lareira - pensei. Mas nem estava assim tanto frio. Era capaz de não ser uma velhota aquecendo-se à lareira. Talvez estivesse cozinhando, fazendo uma sopa de couve com bocados de abóbora. E batata, uma sopa leva sempre batata.

Para ela chegava, um sopa chegava, se fosse mesmo uma velhota que lá estava cozinhando, mas não devia ser, pensei depois ao olhar melhor as paredes da casa. Estavam muito branquinhas, caiadas. E caiar as paredes de uma casa não é trabalho que possa ser feito por velhotas.

Talvez tivesse alguém que lhe caiasse a casa, um filho, um genro, alguém, também pensei. E podia não ser uma velhota cozinhando, talvez fosse uma pessoa de meia idade, era mais certo. Por ali não havia gente mesmo nova, isso eu sabia.

Os novos, os mesmo novos, tinham todos partido, abalado, tinham ido viver para outros lados, no estrangeiro ou na cidade, tanto fazia, tinham-se ido embora, para um lado ou outro. Os novos vão-se sempre embora, é muito raro ficarem, quase nunca acontece encontrar pessoas novas nas serras, naquelas serras.

Só no verão, lá pelo mês de Agosto ou mesmo no Natal. E é quando os velhotes, como aquela velhota que eu imaginava viver naquela casa vêem gente nova. Os netos, os filhos e filhas. E é bonito ver o corropio pelos caminhos, as correrias, os gritos.

E é quando os velhotes deixam de ser velhotes durante aquele tempo. São velhos, na mesma, mas deixam de ser velhos. É assim como que um acordar de uma vida onde jazem. Acho que não vivem, mesmo, durante esse tempo todo, durante quase todo o ano, os velhotes naquela serra. Respiram e esperam.

Ah, mas aquela casa, aquela casa, parecia bem tratada, estava mesmo bem tratada. Até o telhado que eu via, longo, talvez cobrindo três ou quatro quartos e uma sala, tinha as telhas bem direitas, bem alinhadas.

Não eram novas, as telhas, tinham aquele castanho esbatido, amarelado quase e viam-se algumas manchinhas de verde do musgo, talvez. Devia ser musgo.

A porta, pintada de castanho vinho cerrava a casa do outro lado por onde passei. E havia ainda duas janelas, também cerradas. E afinal a casa não era assim tão baixa. Não era muito alta mas também não era baixa. À volta da porta havia um amarelo ocre, uma tira um pouco larga, talvez com quinze centímetros e em dois canteiros, um de cada lado da porta, haviam umas hastes mortiças que esperavam a floração.

Talvez em Agosto, e se eu por ali passasse nessa altura, devia ver flores, certamente que as haveria. A velhota, se fosse mesmo uma velhota ou uma senhora de meia idade, tinha combinado com a natureza fazer florir aquelas hastes, agora quase secas, no Verão.

Dariam um ar mais bonito à casa - devia ela pensar. O que teria ela plantado ali (?) - perguntei-me. Deviam florir muito, no Verão, aquelas plantas. Ainda bem. Seriam como ela, floririam no mesmo tempo.

As risadas dos netos, o corropio, os choros das quedas no chão pedregoso, as asneiras que as crianças fazem, o ralhar, as pequenas irritações, os miúdos que não chegam a horas para comer, as repreensões dos pais e das mães, a filha ou a nora que diz que a sopa se faz assim e não da maneira que sempre se soube, tudo isso faz parte, velhota, tudo isso faz parte.

Já quando me afastava fui olhando para trás e lá estava ainda o fumo branco correndo da chaminé, as telhas alinhadas, a porta fechada. Tudo estava na mesma e tudo ficaria na mesma.

Eu sabia...isso eu sabia. Só mudava no Verão.

«Deus te guarde, velhota!» - tive vontade de lhe gritar já eu ia bem longe.
Afinal não falta muito para chegar mais um Verão - murmurei.



Sem comentários:

Enviar um comentário