sábado, 25 de abril de 2015

GRANDES FEITOS-UMA ODISSEIA


GRANDES FEITOS - UMA ODISSEIA


Impelidos pelo espírito aventureiro que os caracteriza, os pescadores olhanenses lançam-se no comércio marítimo pelos portos do Norte África e do Mediterrâneo, a comerciar os produtos da sua safra, com relevância para o peixe e seus derivados. 

Esse comércio trouxe a fortuna a várias famílias que fizeram engrandecer física e historicamente a sua querida Olhão. Poucas memórias encontramos desse período de aventura, em que o caíque de vela latina foi figura principal, juntamente com o pescador pertinaz da Terra, protagonistas de feitos, que, se passados a obra escrita, configuraria uma GRANDE ODISSEIA ou uma GRANDE EPOPEIA MARÍTIMA. 


A colonização olhanense no Sul de Angola abrangendo o séc. XIX e princípios do séc. XX foi outra glória histórica deste povo audaz. Infelizmente desconhecemos qualquerdiário de viagem que comprove sequer uma dessas aventuras cheias de peripécias e perigos. Quais os mares mais rebeldes que poderiam pôr à prova a intrepidez, a audácia desses intérpretes de aventuras, intemeratos e audaciosos? Quantos sonhos e vidas soçobraram nos mares da Serra Leoa onde as águas e os ventos estão em constante revolta? Como puderam contornar as rochas que quase despontam à superfície do mar no arquipélago de Bijagós, Guiné? Como contornaram essa armadilha sob as águas que só uma sonda poderia avaliar? Quantos medos no alto das vagas gigantescas de tempestades medonhas ou nos abismos côncavos dessas vagas? Quanta fome, quanta sede suportaram nossos avós nessas viagens intermináveis? Esse desconhecimento remete-nos irremediavelmente para a história incompleta e esquecida na sua vertente essencial: a Humana.


Cento e quinze anos após o início desses feitos épicos, a história quis devolver à Mãe Pátria Portuguesa os descendentes daqueles valentes pescadores de XIX e XX e todos aqueles que apostaram o seu futuro na emigração e naquele destino no Sul de Angola tomando, alguns, após chegada, outros destinos no território. A guerra civil chegou no decurso do ano de 1975. 

Nada mais havia a fazer senão a saída intempestiva ou organizada quanto possível de uma terra onde a ação do homem europeu e africano, lado a lado, tornou próspera e progressiva. As traineiras procuraram sair, no maior segredo, dos portos de pesca para a viagem da salvação de pessoas e bens. 

Uma nova Odisseia ía-se iniciar, a "ODISSEIA do REGRESSO", não em caíques do séc XIX à vela, que fora passado, mas em prósperas traineiras do séc. XX, na conquista do futuro, odisseia documentada "vaga a vaga", à escala de um diário, por quem a viveu. 

Baldomiro Soares natural da Ilha da Culatra, frente a Olhão, e emigrado em Luanda, depois de ter vivido alguns anos no Bairro da Torre do Tombo em Moçâmedes, hoje Namibe, era bancário e viveu-a, com o seu pai, mestre Sabino, homem de muito saber acumulado ao longo de 50 anos na pesca e com muita navegação costeira, mas sem o conhecimento de navegação de longo curso, seu irmão Sabino, delegado de propaganda médica e sua cunhada Rosa Maria, bancária. O Bala e o Teco os cães da família os acompanhavam. 

Pareciam sentir as angústias dos seus donos nos momentos em que o perigo de soçobrar superava a esperança de sobreviver. Um deles era da raça "Baía dos Tigres" adaptado à convivência humana e por isso manso. (A raça "Baía dos Tigres" é uma raça de cães existente naquele local do sul de Angola em estado selvagem e que se julga terem ido ali parar em consequência de um naufrágio).

Para quem acredita em milagres, foi um milagre de sobrevivência esta aventura iniciada em Luanda até Olhão. Rodeada de vagas gigantescas e a navegar só, sem qualquer apoio à vista, a pequena traineira Sabino I de 14,40 metros, construída em Luanda em 1971, ía resistindo àquele mar sempre furioso, qual Adamastor a assoprar ventos e agitar vagas, apostado em sepultar para sempre aquele minúsculo barco e seus quatro tripulantes nas entranhas do seu mar. Instrumento de bordo para localizar no mapa o "ponto" do mar em que se encontravam não existia. 

Um mapa, uma sonda e uma bússola eram os instrumentos disponíveis mais o saber do velho lobo do mar, mestre Sabino. Este livro é um compacto de 269 páginas, esmiuçado dia a dia no fervor da contenda com o Mar. Cabe-me aqui alertar para esta obra que transcende qualquer ficção por ser real, verdadeira e talvez única naquele cenário atlântico. "ODISSEIA MARÍTIMA-Luanda-Olhão-35 Dias no Regresso em Traineira".


Em Luanda e nos preparativos para a viagem, Baldomiro Soares e seus companheiros jamais pensaram que precisariam de todas as suas forças, toda a fé num Deus todo poderoso e omnisciente para superarem uma natureza hostil e superior. Segundo os cálculos, com o combustível reunido, poderiam atingir as Canárias contando com a solidariedade dos navios que encontrassem ou no acolhimento de um porto de mar amigo. 

Escreve Baldomiro: «Eram duas e meia da manhã do dia 24 de Agosto de 1975, com luar aberto, nada propício a uma fuga, junto ao anúncio da Cuca, na Ilha de Luanda, com o motor a meia força que iniciámos a viagem. A embarcação levava as redes de pesca à vista e a chata a reboque para dar a entender que íamos para a pesca, caso fôssemos detetados por autoridades dos partidos políticos, já que andavam em cima dos pescadores, proibindo a saída de barcos para Portugal». 

«Os dois primeiros dias de navegação foram calmos e pacíficos, o que nos deu a oportunidade de nos organizarmos. Começámos por determinar o tempo de leme que era distribuído entre mim e meu irmão, fazíamos leme de quatro em quatro horas, ficando o nosso pai, com o cuidado de verificar o motor de hora a hora e fazer leme e cozinhar sempre que possível. 

Nas primeiras horas de leme deu para recordar os últimos dias em Luanda, cidade que se encontrava sob o recolher obrigatório devido ao desentendimento entre os partidos políticos que, fortemente armados, se guerreavam constantemente, provocando o caos e a desordem, jamais vistos em território ainda dito nacional». 

A situação em Luanda era caótica com prisões arbitrárias sob a indiferença dos militares portugueses que deveriam reagir e repor a ordem. O fim trágico de uns e o desaparecimento de outros (portugueses e angolanos) determinou a decisão de fuga não só em Luanda mas em todo o território de Angola, de norte a sul. 


Aquelas horas ao leme com mar manso muitos pensamentos fluíram. Aquela traineira fora conseguida com a venda de bens em Portugal. Tudo fariam para chegarem a Olhão e reatarem uma nova vida. Estavam imbuídos da coragem necessária, da vontade indómita dos homens do mar que tanto labutaram no Mar Mediterrâneo, no Mar de Larache em Marrocos, na costa de África (Angola, Gabão, S. Tomé, Congo Francês). 

Mestre Sabino conhecera algumas dessas viagens. Fizera ao Mar de Larache antes de ir para África e ao Gabão quando estava em Luanda. Foi nessas viagens ao Gabão que fizera o cálculo do combustível para chegar a Olhão, mas não foi possível reunir tal quantidade, ficando em falta 3000 litros, para além da insuficiência de óleo e de alimentos na quantidade desejável, que em Luanda já eram escassos. 

Pensavam na sorte que acompanha os audazes e na fé dos navegadores. Baldomiro fizera uma promessa à Senhora dos Navegantes: quando chegasse a Olhão compraria uma imagem para colocar na capela da Ilha da Culatra, promessa que foi cumprida integralmente depois de vender a chata. Levavam 300 litros de água potável para beber e cozinhar.

 TERCEIRO DIA-O INÍCIO DAS TEMPESTADES


Escreve Baldomiro: «No terceiro dia fomos surpreendidos por forte tempestade que nos desviou da rota arrastando a embarcação para dentro do Golfo da Guiné, o Golfão da Guiné, como era conhecido pelos antigos navegadores. Segundo os nossos cálculos, atravessámos a linha do Equador que passa a norte do Gabão. 

 

O mar, verdadeiramente encrespado, com chuva e vento soprando fortemente de sudoeste, estragou parte da comida fresca que trazíamos dentro de caixotes em cima do convés, ficando, apenas alguns produtos enlatados. Verduras e frutas foram arrastadas pelas águas da chuva e das vagas que entravam pela proa do barco. 

Aproveitámos um queijo açoreano que levámos para dentro da cabine, para secar naturalmente... Por volta das dezasseis horas o vento amainou e o pai verificou que havia muita água dentro da cabine do motor, o que não era normal, e providenciou que a bomba elétrica funcionasse em pleno, voltando tudo à normalidade, admitindo que se tratava de água da chuva que tinha entrado pela porta da cabine».

Assi dizendo, os ventos, que lutavam
Como touros indómitos, bramando,
Mais e mais a tormenta acrescentavam,
Pela miúda enxárcia assoviando.
Relampados medonhos não cessavam,
Feros trovões, que vem representando
Cair o Céu dos eixos sobre a Terra,
Consigo os elementos terem guerra.

(Lusíadas, canto VI-84)

Com o mar calmo e já no quinto dia de navegação avistaram os contornos de terra e cruzaram-se com um arrastão japonês. O comandante do arrastão era um indivíduo simpático, falava inglês e deu a indicação da posição no mapa. Cedeu-lhes sessenta litros de óleo. Aceitaram um balde cheio de peixe fresco que durou dois dias. Cometeram um erro gravíssimo, habituados a não "pedinchar", não pediram gasóleo. Essa falta fez-se sentir dias depois levando a que o barco ficasse no meio do Oceano parado, sem combustível, e longe da costa. Sem rádio não tinham como pedir ajuda nessa emergência.

Foi no décimo-oitavo dia de navegação que o motor parou sem gasóleo, diz-nos Baldomiro. Era uma quarta-feira do dia 10 de Setembro daquele ano fatídico de 1975. A sorte tinha sido madrasta no antigo porto do Congo Francês, hoje Mauritânia, Port-Etienne, hoje Nouadhibou e não puderam arranjar o almejado gasóleo que os fizesse chegar a um porto amigo no Sahára Espanhol. 

Escreve Baldomiro: «Antes de saltar para terra afim de prender as cordas aos cabeços de amarração que ali se encontravam para esse efeito, fomos logo visitados por dois homens fardados, e um indivíduo que parecia ser polícia se dirigiu a nós, falando em francês. Ficámos sem pinga de sangue. Tínhamo-nos enganado. Não estávamos em território espanhol. Aquilo que mais temíamos aconteceu. 

Como não entendíamos o seu falar o polícia foi chamar um espanhol para servir de intérprete. Depois de nos identificarem fomos imediatamente presos e os documentos do barco apreendidos. Presos pelo motivo de não termos hasteado a bandeira do país e por não haver relações diplomáticas com Portugal». «Quando entramos num porto estrangeiro devemos hastear a bandeira desse país».

 
 «Prometemos comprar uma bandeira, no dia seguinte, se nos devolvessem o dinheiro, o que não veio a acontecer». «Depois de muitas explicações, alegando que estávamos desorientados naquela entrada, levaram-nos presos para a Capitania do porto. Como já passava das cinco horas da tarde, por sorte nossa, já estava fechado». 

«O funcionário de serviço devolveu-nos os documentos e mandou-nos para o barco, debaixo de prisão, com um polícia de serviço, exigindo a nossa presença no dia seguinte às 8 horas da manhã». «Acompanhados do cidadão espanhol e a nosso pedido, levou-nos a um escrítório de uma companhia italiana de assistência às pescas, que se encontrava localizada no cais, e à qual solicitámos ajuda com gasóleo e comida até chegarmos a Portugal, que depois mandaríamos o dinheiro...

Fomos bem recebidos mas a resposta foi negativa. Pediram-nos 103 contos na nossa moeda por 6000 litros de gasóleo. O pouco dinheiro que tínhamos ficou na posse do guarda marítimo. Voltámos para o barco desanimados». O espanhol era comandante de um barco espanhol de pesca com contrato para pescar na Mauritânea e não poude dispensar gasóleo porque este era fornecido pelo estado, o que seria preso caso fosse descoberto e denunciado. 

O cidadão espanhol aconselhou sairem de madrugada do porto porque ali não havia maneira de obterem ajuda e porque poderiam ficar retidos meses, e isso se o assunto se resolvesse, pois os mauritanos costumavam ficar com os barcos apreendidos. «O susto foi tão grande que começámos a planear a fuga». 

«O espanhol José, assim como alguns tripulantes espanhóis daquele barco, oferecem-nos, às escondidas dos nativos/tripulantes do seu barco, alguma comida para aquela noite». «Mais tarde, já de madrugada, aparece-nos na nossa traineira com um saco cheio de pão e comida que bem nos valeu para as surpresas que ainda iríamos encontrar, dando preciosas indicações para sair de noite daquele porto de pesca. 

Os espanhóis diziam que tínhamos tido muita sorte em chegar àquele porto, devido aos baixios perigosos no meio da baía o que dificultava muito quem por ali passasse e esta era somente para pessoas muito experientes naquela área marítima». «Seja o que Deus quiser». «Encontrar um bom samaritano no meio do mar que nos desse algum gasóleo para chegar pelo menos a Vila Cisneiros!»

«Por volta das duas horas da manhã, o polícia de vigia ao nosso barco encostou-se a alguns caixotes e deixou-se dormir...Como estávamos alerta para este momento, libertámos a amarração e a embarcação foi arrastada pela correnteza e a leve briza de vento, afastou-nos do cais, durante longos e ansiosos minutos. Quando nos encontrávamos já bem afastados, verificámos que bem perto de nós um arrastão tinha saído do porto e dirigia-se ao alto mar para a faina de pesca. Não perdemos tempo em segui-lo. 

O pai pôs o motor a trabalhar e, imediatamente à força toda, fomos atrás daquele barco, até avistarmos ao longe boias de sinalização. Por razões que desconhecemos o arrastão voltou atrás, regressando ao cais, mas nós seguimos em frente até passarmos bem pertinho das primeiras boias de sinalização... Ainda vimos o polícia acordar de sobressalto e começar a correr até o perdermos de vista...».

«São sete horas da manhã, os primeiros raios de sol surgem no horizonte e as nuvens teimosamente não se querem desvanecer e, já bem afastados de terra, encontrámo-nos no mar alto, direcionando a bússola com rumo ao norte». «Navegámos mais um dia quando encontrámos um enorme barco de pesca chinês "Five Oceans 125". Aproximámo-nos e, por gestos pedimos gasóleo. Tínhamos combustível apenas para mais algumas horas! 

Aquele que nos pareceu ser o comandante veio ao convés com gestos pouco amigáveis para nos afastarmos. Ainda conseguimos navegar ao lado do barco cerca de uma hora, pedindo insistentemente ajuda. Um dos marinheiros ou comandante, ameaçando-nos, pareceu-nos exibir uma arma, pelo que desistimos e acabámos por seguir a nossa viagem, tristes e desanimados».

«Aproximámo-nos mais de terra, que nos pareceu ser um lugar deserto, pois não vimos sinal de vida, quando por volta das oito horas o barco parou por falta de gasóleo.»...«Fundeámos a cerca de dez braças de profundidade e calculámos estar distanciados três ou quatro milhas de terra, esperando que algum bom samaritano nos veja»...«Verificámos que estávamos fundeados em cima de rochedos e que os cabos de amarração não iriam aguentar muito tempo». 

A sonda tinha deixado de funcionar e não existia maneira de saber a altura de mar que poderia pôr em causa a segurança do barco na maré vazia. A solução foi encontrada por mestre Sabino e pelo processo antigo: com uma corda e uma chumbada. O resultado foi tranquilizador: estavam a cinco braças das rochas. Escreve Baldomiro: «Ao longe um navio passa por nós e lançamos um pedido de socorro com sinal luminoso (o único que tínhamos a bordo) mas não deu resultado. 

Nas noites seguintes, mal o sol se punha, começávamos por acender archotes, com roupa embebida em gasóleo que se encontrava no cavername da casa do motor, para chamar a atenção dos barcos que navegavam ao largo da nossa posição. Todo esse esforço foi em vão e acabámos por queimar toda a roupa que tínhamos, ficando apenas com a roupa do corpo. Mais uma noite à nossa frente com o frio incomodativo do deserto do Sahara, esperando por nós. A alimentação estava já muito reduzida e quase no fim, e a água racionada». 

À DERIVA ATÉ AO SALVAMENTO

A manhã do vigésimo terceiro dia (15 de Setembro-2ª. feira) o dia amanheceu límpido, mas o vento soprava fortemente. Baldomiro pressentia que algo de transcendente ia acontecer. Mestre Sabino deu mais folga à amarração para evitar o roçar nos rochedos. Se os cabos rebentassem andariam à deriva e seriam arrastados sem possibilidade de comandar o barco. 

Naquele momento estavam somente fundeados com uma âncora pois as outras os cabos tinham rebentado por roçarem nas rochas. «Tomámos a decisão de apetrechar a chata com o motor de popa, um pequeno mastro com uma vela e dois remos. A intenção era   ir ao encontro dos barcos que diariamente avistava e pedir auxílio. Vamos aguardar pelas três horas da tarde e ver se os barcos de pesca aparecem, como habitualmente». ... «Não sei se terei forças para remar na chata em caso de necessidade». 

 

Uma extrema fraqueza tinha-se apoderado daqueles corpos que mal se alimentavam, e de água só tinham meio galão. «Quinze horas e lá estão eles, os dois barcos navegando para terra. Na mesma direção que diariamente temos registado. Não perdemos mais tempo. Estão a mais de cinco milhas de distância. Embarcámos na chata sob ondulação muito forte e com o motor de borda a funcionar, soltámos a amarra que prendia ao barco. 

O motor apenas funcionou alguns minutos, acabando por se avariar. Estamos a alguns metros do barco e tentamos apanhá-lo novamente, mas não conseguimos lá chegar. A corrente é muito forte e a chata afasta-se rapidamente da embarcação». Um dos remos partiu-se tal o esforço despendido. 

Mestre Sabino que tinha ficado na traineira com Rosa Maria, tentou lançar uma corda, em vão. Fez um gesto para se atirar ao mar o que foi impedido por Rosa Maria. Teria sido um suicídio dado as condições do mar e a extrema fraqueza de todos. Com a chata à deriva viram desaparecer rapidamente a Sabino I de vista. 

«Devido à grande ondulação, tão pouco víamos os barcos de pesca que tanto ansiosamente procurámos descortinar no horizonte e que possivelmente estariam mais a sul. O meu irmão perdeu as forças e não mais conseguiu levantar-se. Eu ia manobrando a chata à vela procurando não atravessar nas ondas, evitando que se voltasse. Quando caíamos na cova da onda, víamos ao lado, acima da chata, na crista da onda, vários tubarões, que gulosamente nos rodeavam». 

«A chata começou a meter água e num esforço inacreditável consegui esgotar a água e manobrar a vela ao mesmo tempo. Não sei como Deus me deu tanta força e coragem». «Tristes e desanimados e com o sol prestes a nos deixar qual monstro sagrado, repentinamente, vimos à nossa frente, o primeiro barco de pesca que já tínhamos identificado enquanto estávamos a bordo do nosso barco. 

Passou bem perto de nós. A alegria que sentimos depressa se desvaneceu. Navegando lentamente cortando a forte ondulação que se fazia sentir, foi passando por nós sem parar. Ficámos desesperados, acenando e gritando para que nos vissem ou ouvissem, mas não vimos marinheiros em cima do convés. 

O contra-mestre ao leme, não deu pela nossa presença. O mar encrespado e o vento forte não permitia uma visualização clara para o homem que vai ao leme. Quase que fomos abalroados....O arrastão passou e com ele a esperança do salvamento foi-se desvanecendo...».

«...Minutos depois, à nossa frente, o segundo barco de pesca quase nos afundou. O meu irmão gritava loucamente. Ninguém ouvia os nossos gritos. Os marinheiros iam todos recolhidos nos camarotes e o homem do leme não prestou atenção à chata. Certamente, como nos disse mais tarde, nunca iria imaginar encontrar aquela "casca de noz" no meio do mar tão revolto. 

O meu irmão caiu de joelhos até encostar a cabeça à amurada da chata, com o rosto sulcado de lágrimas que não procurou ocultar, sem forças de tanto gritar»...«Navegando lentamente o navio vai-se afastando cada vez mais, quando a cerca de 10 metros de distância, de repente, em cima do convés, na popa do barco, estava um marinheiro africano com os olhos esbugalhados pela surpresa, olhando para o nosso desespero. 

O homem perdeu a fala. Não compreendia o que se estava a passar. Em pleno mar alto, uma pequena chata com dois homens a bordo prestes a afundar-se!». «O marinheiro atónito reagiu aos nossos gritos angustiantes, quando, repentinamente, apercebendo-se do perigo que corríamos, correu apressadamente até à cabine do comando, dando o alarme do seu achado em cima da água...Estamos salvos...»

 


«...Em 26 de Setembro chegámos ao farol de Santa Maria».

Escreve Baldomiro: «Por incrível que pareça a nossa odisseia foi recheada de tempestades, desde o terceiro dia até poucas horas antes da chegada a Olhão, parece-nos que Deus dos Oceanos, Neptuno, mais uma vez se sentiu profanado, pelo atrevimento e coragem das gentes olhanenses».

Agora sob as nuvens os subiam
As ondas de Neptuno furibundo;
Agora a ver parece que deciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro,Bóreas, Áquilo queriam
Arruinar a máquina do Mundo;
A noite negra e feia se alumia
Cos os raios em que Pólo todo ardia.                                                                                                     

(Lusíadas, canto VI-76)

                                                             
«Hoje com os pés em terra, olhando para trás e para todas as adversidades por que passámos, humildemente só temos uma palavra. Deus. Obrigado meu Deus».

 

Entre trombas de água andamos navegando
Com o irado céu a água já sugando,
E o mar, apavorando, todo enfurecido
A engolir-nos parecia decidido

E o Bala e o Teco porfiados,
Na proa cortadora vigiando,
Eram pilotos a isso elevados
No oceano perigoso navegando.

Por isso foi que Sabino, o Capitão,
Os promoveu a marinheiros,
Por ver tão clara aptidão
Animando os próprios companheiros.

(Autor: Baldomiro Soares)

Em Olhão esperava-o a sua muito dedicada esposa Cristina Estrela, filha de mestre Estrela, e seus filhos. Cristina e Baldomiro conheceram-se em S. Martinho da Baía dos Tigres onde mestre Estrela fixou residência e permaneceu durante vinte anos. Era natural de Santiago de Tavira mas foi para Olhão com oito meses. Considerava-se, por isso, um olhanense de gema.

AGRADECIMENTO E HOMENAGEM

Baldomiro Soares quis com esta obra homenagear e agradecer os seus salvadores. São bem sentidas as suas palavras:

«Esta obra é uma homenagem de eterna gratidão ao nosso salvador, o jovem marinheiro do barco de pesca espanhol "Tela I", bem como ao seu comandante e marinheiros, num dos momentos mais dramáticos da nossa viagem.

Um profundo agradecimento à Marinha de Guerra Espanhola, instalada em Vila Cisneiros, Sahara Espanhol (1975), aos seus Oficiais, Sargento mecânico e Marinheiros da corveta "Centinela W-33"

Um profundo agradecimento ao Patrão de Costa D. Tomaz Suarez Santana e sua ilustríssima esposa, pela recepção que nos dispensaram.

Ao povo de Vila Cisneiros pela calorosa recepção como jamais tive em minha vida.

Os Homens de grandeza Moral é que fazem as grandes nações.

Muito ... e muito Obrigado...»

«Dedico este livro à minha esposa, filhos e netos por todo o apoio e carinho que sempre me dedicaram e ainda ..................ao meu saudoso Pai, meu querido Herói...............»

O produto da venda desta obra é canalizado para instituições de caráter humanitário. Baldomiro Soares divide-se, hoje, pelo País que o acolheu, os Estados Unidos da América e a sua querida e eterna Olhão, Ilha da Culatra, onde nasceu, e Santa Luzia, onde moravam os seus avós.

Os olhanenses da diáspora teem uma forte ligação à sua Terra. Por mais que andem por este mundo jamais se esquecem do lugar onde nasceram, onde formaram o seu caráter aguerrido, patriota e profundamente humano. 



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