quinta-feira, 16 de abril de 2015

João Vaz já tem casaco - Conto / Crónica de João Furtado


João Vaz já tem casaco

Conto / Crónica de João Furtado


Os últimos anos não foram dos piores, mas também não poder-se-iam afirmar que eram cor de rosas. Dava para comer e tinha alguma palha que servia para dar aos animais. Já tinham havido muitos outros anos piores. Os melhores anos serviam para que se pudessem casar, baptizar e crismar os filhos. Quem os pudessem fazer. Os outros contentavam com a esperança de que o próximo ano seria melhor e poderiam realizar os seus mais íntimos sonhos.

Até para morrer o felizardo era aquele que morresse pelo menos num ano igual ao que era aquele. Tinha a esperança de saber que a sua morte seria chorada e que as inesperadas visitas teriam o mínimo para comer durante as cerimónias fúnebres. Se bem que uma certeza levava. Todos iriam chorar as suas mortes. As mulheres os seus maridos. As filhas as suas mães. As irmãs os seus irmãos. As mães os seus filhos. As comadres os seus compadres. As amantes e rivais iriam aproveitar para se exporem as suas desavenças acumuladas.

Os parentes e familiares também iria aproveitar para se posicionarem e se darem a conhecer todas as pequenas mágoas do dia a dia. Mas o funeral seria digno dos anais da história, embora ele, a figura principal, pouco se destacaria.

A casa era a peça fundamental. Ninguém poderia sair das barras da saia da mãe, sem ter o seu funquinho (1) . Ainda que o mesmo funquinho servisse para cobrir a cabeça e deixar a chuva e vento o corpo. Bem, a chuva… era um bem quase esquecido. Embora os últimos anos não se pudesse afirmar a total ausência dela, mas também não se podia dizer que a bonança tinha enfim visitado as Ilhas. Todos tinham seu funquinho sim, «quem casa quer casa» não era apenas um adágio popular na Ilha, era uma realidade.

Não poder-se-ia afirmar era que as casas eram efectivamente casas. A maior parte delas de casas só tinham nome, mas enfim eram casa. Algumas pedras sobrepostas e cobertas de palhas. A maioria, por dentro, se tanto a sala era calcetada.

Mas para casar. Casar, mesmo casar, com padre e tudo de direito, eram muito poucos. Casar como o João Vaz pretendia oferecer a Isabel Lopes, era preciso o casaco. O casaco não estava ao alcance de qualquer um. Por isso muito casamentos eternos não passavam de arrumação dos trapinhos na esperança de que o próximo anos seria melhor e haveria a cerimónia com tudo de que era o direito da família. A esperança que transitava de ano para ano.

O João Vaz estava a namorar com Isabel Lopes anos e anos. A Isabel Lopes consciente da realidade estava disposta a «fugir» numa noite qualquer e no funquinho feito a pressa formar seu casamento. Sem roupa de princesa a varrer o chão, sem padre, sem padrinhos, sem nada. A Isabel Lopes não esperava ter o pedido de casamento. Ela sabia da realidade da terra.

A Isabel Lopes era namorada do João Vaz, embora ninguém oficialmente podia dizer com certeza. Todos sabiam que eles, ela a Isabel Lopes e ele o João Vaz tinham «suas aguas sujas» (2) mas como ninguém os viu próximos um de outro a mais de dois metros, como mandava a digna tradição dos mais velhos, podia afirmar que namoravam. As «conversas» com os olhos eram os únicos indícios visíveis. E, também eram as únicas recriminações da mãe da Isabel Lopes. No tempo dela havia mais respeito. Muito mais respeito.

A Isabel Lopes sentia-se mulher, não queria continuar nas barras da saia da mãe. Varias vezes fez o João Vaz saber disto por meio da prima, a pombo-correio dos dois. O João Vaz respondia sempre da mesma maneira:
 -Diga a Isabel Lopes que ela é a minha rainha, quero entrar com ela na igreja. Só me falta o casaco. Já tenho algum dinheiro, vou completar e comprar o casaco.

A Isabel Lopes esperava o casaco do João Vaz, esperava e desesperava. Os tempos não permitiam ao João Vaz a compra do casaco, por mais que se esforçasse.

O João Vaz trabalhava desesperadamente para comprar o casaco. A Isabel Lopes desesperava para deixar a casa da mãe e ter seu próprio funquinho. A Isabel Lopes mandou outro recado:
 - Diga ao João Vaz que não estou a aguentar mais, para ele arranjar o casaco o mais rápido que puder!

O João pouco podia fazer. O dinheiro não havia maneira de crescer, ia sempre para um remédio aqui, um grogue ali, dava emprestado ali e nunca mais recebia. Estavam nisto. Todos juntavam seus trapinhos. O João Vaz queria entrar na igreja com a sua rainha.

O José de Almeida tinha uma vida mais abastada. Não era muito melhor que os outros. Era menos pobre. Tinha pelo menos dois casacos. O João Vaz sabia disto, foi procurar o José de Almeida e propôs a comprar de um dos casacos. O José de Almeida mostrou os casacos. Dois ao todo. Eram apenas dois casacos. O João Vaz escolheu o castanho. O José de Almeida perguntou-lhe a cor das calças e dos sapatos. O João Vaz disse que as calças eram pretas e os sapatos… bem, não haviam sapatos! Era normal, os sapatos não eram importantes. O casaco sim. O José de Almeida disse que o preto era melhor. Descalço, com calças pretas e casaco castanho não deveria ser grande ideia. Depois chegou a hora de falarem de pagamento.

O José de Almeida queria dinheiro. O João Vaz só podia pagar com trabalho. O José de Almeida disse: -Esta bem, pode ser com trabalho, mas só levas o casaco depois de estar tudo pago. Não havia problemas, até porque o João Vaz não tinha onde guardar o casaco. Trabalhou, trabalhou e trabalhou. Fez de tudo. Não havia como acabar de pagar o casaco. Ia de manha e só regressava a noite morto de cansado a casa, mas não havia forma de acabar com a divida e levar para a casa o casaco.

Propôs trabalhar também de guarda. Passou a dormir lá. Trabalhava de dia, guardava de noite. Só assim poderia um dia levar o casaco para a casa.

A Isabel Lopes deixou de ver o João Vaz. Os olhos deixaram de se conversarem. Os sorrisos disfarçados e comprometedores deixaram de ser feitos. Os sonhos começaram a esfumarem-se. A pombo-correio da prima bem se esforçou, mas nada de João Vaz.

O assédio do Manuel Ferreira que nunca foi tomado em conta começou a ter resultado. As mesmas acções começaram a aparecer de novo. A pombo-correio da prima retomou as idas e vindas por algum tempo, mas o destino passou a ser outro.

Numa manha normal, como outra qualquer, ouve-se choros e gritos na casa da mãe da Isabel Lopes. Todos pensaram no pior e correram para ajudarem e aproveitarem para chorarem os seus mortos. Graças a Deus não era o pior. Foi um alívio e uma decepção. Mais alívio que decepção. Os mortos podem esperar mais alguns dias para serem chorados. A Isabel Lopes havia «fugido».

Todos pensaram que ela estava na casa do João Vaz, mas não estava. Passados os prazos da praxe que a situação exigia ela apareceu, toda envergonhada acompanhada da família do Manuel Ferreira.

Esta, a família do Manuel Ferreira, toda contrita com a situação delicada, colocada pelo doidivanas do filho que não havia pensado nas consequências do acto:
 -Agora somos uma família – dizia a mãe do Manuel Ferreira e sogra da Isabel Lopes – eles já fizeram o que não deviam. Agora temos que os deixar organizarem. Dou a minha palavra de honra que irão casar na próxima «as aguas» (3)!

Houve choro. Era o fim do nojo inesperado e curto. Depois veio a festa. Houve matança de porcos. A mandioca e o cuscus (4) não faltaram. Estavam preparados. Ninguém sabia. Mas o recado recebido uma semana antes «no próximo sábado iremos ai!» era esclarecedor, Já estavam a espera. A festa durou toda a noite.

Enfim o João Vaz conseguiu pagar o casaco. Tomou a casaco. Fez questão de vestir e ir passar mesmo a frente da casa da mãe da Isabel Lopes. Queria que a Isabel ou a prima o visse vestido de casaco. Iria arranjar uma delegação de pedido da noiva.

Quando aproximou-se ouvi o barulho das batucadeiras (5) . Havia festa na casa da mãe da Isabel Lopes. Perguntou o que estava a passar. Todos sabiam do namoro de João Vaz com a Isabel Lopes. Não tiveram pena dele, deram a noticia o mais cruel possível:
 -Isabel Lopes saiu de casa com Manuel Ferreira e foi apresentada a casa dos pais ontem.
 O João Vaz caiu estatelado no chão. Desmaiou. Mas ainda pode dizer:
 - Eu já tenho o casaco!

O João Vaz nunca mais tirou o casaco. Nem de dia, nem de noite. Dizem que passou a dormir com casaco. A frase dita no momento de desespero tornou-se popular.

Ainda hoje diz-se sempre que alguém tenha algo que muito desejou e não havia conseguido antes – DJON BAZ DJA TEN KASAKU – o que quer dizer, João Vaz já tem casaco.

Sim João Vaz conseguiu casaco, mesmo que lhe tenha custado a perda da sua rainha, Isabel Lopes.



(1)- Funquinho – cubata de pedras, normalmente em forma circular, coberto de palha.
 (2) - aguas sujas – segredos, gostavam um do outro
(3) - As Aguas - Época das chuvas. Época produtiva
 (4) - Cuscus – Pão de farinha de milho cozido a vapor.
 (5) - Batucadeiras- Mulheres que tocam batuco. Colocam pano dobrado sobre a perna, onde com as mãos, no ritmo cadenciado do batuco, batem sobre o pano.

João Furtado



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