SUBTILEZAS
Conto / Crónica de Liliana Josué
O dia era ainda uma criança, com poucas horas de vida. Excepcionalmente eu tinha chegado depois de todos. Não porque me atrasasse mas, aquela gente, tinha por hábito adiantar-se à hora prevista da partida. Quando tal sucedia e vislumbrava, ao fundo da rua, a camioneta de esgar piscante, sem ninguém à porta: cerrava os dentes e atirava-me em correria desenfreada até penetrar, de rompante, na sua boca de hálito zombeteiro. Aplaudiam-me da proeza e tranquilizavam a minha alma informando-me,( como se eu não soubesse) não me encontrar atrasada. Um pouco nervosa comentava mentalmente: «Esta gente deve ter palhas na cama!» .
Eram todos mais velhos que eu, talvez por isso mesmo a pressa fosse maior, pois o tempo era menor. Ainda arquejante semeava beijinhos para um lado, apertos de mão para o outro e um nunca acabar de sorrisos. Depois da maratona concluída, sentava-me discretamente num dos últimos bancos, respirava fundo, encostava a cabeça para trás e semicerrava os olhos numa atitude de abandono.
Totalmente recomposta, dava comigo a observar atentamente os ocupantes do enorme veiculo. A alguns enxergava apenas o cocuruto da cabeça, a outros conseguia contemplar as faces: De sono nem vislumbre. Deparava com expressões calmas e felizes, de quem já muito fizera e, se sentia no seu pleno direito de desfrutar um resto de vida agradável e compensador.
Por cada cabelo branco haveria, certamente, uma história não contada; por cada ruga um desgosto quantas vezes dissimulado ; por cada sorriso o triunfo de tantas barreiras ultrapassadas. Tudo isso me enternecia guardando, religiosamente, aquelas expressões bem dentro de mim. Absorvida por tais especulações, espraiava o meu olhar através da janela, encharcando-me da plana e verdejante paisagem alentejana, tornando-a cúmplice dos meus pensamentos.
Também eu já era detentora de alguns cabelos brancos, rugas na cara e sorrisos esperançosos. No meio de toda esta gente fantástica impunha-se um personagem encantador: Estatura média, magro, cabelo farto e bigodinho maroto. Nos seus olhos podia ler-se a devoção por tudo o que fosse arte. Desde a antiga igreja românica, ao espectacular quadro impressionista, sem jamais esquecer a poesia.
Só de pronunciar essa palavra mágica, o seu rosto alterava-se surgindo-nos pleno de êxtase e adoração. Sem dúvida será alguém que hei-de lembrar e admirar para todo o sempre. A sua tertúlia poética era singela em «número» mas imponente em «género».
Subitamente acordei do torpor dos meus pensamentos. A camioneta parou. Chegara a costumada pausa para o café da manhã. Enquanto que para muitos, essa milagrosa bebida matinal se revestia de importância capital, para mim, tornava-se perniciosa. Um café antes do almoço transformava-se num barril de pólvora. A pulsação poderia atingir os cento e vinte, e as minhas mãos agiriam autonomamente, sempre pelo oposto à minha vontade. Por isso limitava-me a folhear algumas revistas na tabacaria do estabelecimento.
Findo o tempo estipulado para a recuperação de forças, regressávamos ao monstro que nos observava pachorrentamente, com orelhas quebradiças de cão atento, e introduzíamo-nos no seu interior através da sua boca plácida e um tanto desdenhosa.
A viagem continuava em conversa animada com o companheiro do lado ou o vizinho da frente. Chegados ao destino eram áhs! e óhs! de contentamento e deleite. Tanta coisa linda. Contemplei igrejas faustosas e conventos de admiráveis azulejos, fui bafejada pela sorte de poder admirar apaixonantes desenhos de Siza Vieira, traço breve e expressivo.
A medida que a visita prosseguia o agrado tornava-se maior.
Foi-nos sugerido observar as cisternas de determinado convento. Assim o fizemos. Não continham água, era um local subterrâneo, escuro, frio e um tanto assustador. A minha sensação, dentro daquele buraco negro, era como o de alguém tentando penetrar o insondável e misterioso mundo do Além. Inesperadamente um arrepio traiçoeiro percorreu-me a espinha, seguido de um bater forte de coração.
A minha volta pressentia murmúrios tímidos e sombras deslizantes. Uma das senhoras pertencente ao grupo, expulsou os meus receios ao aproximar – se entabulando conversa. Apurando a vista o mais que pôde, fez-me notar a existência dum estranho objecto colocado junto a uma das paredes da cisterna, por baixo da única abertura que deixava penetrar uma efémera claridade. Foi-se chegando lentamente ao estranho corpo, eu imitei-a.
Era um objecto esguio e comprido, com cerca de metro e meio de altura. A senhora muito compenetrada da sua missão exclamou triunfante: «Nem mais, isto é um medidor de água». Eu acenei afirmativamente a cabeça, admirando tamanha perspicácia.
Satisfeita a nossa curiosidade demos por concluída aquela sapiente descoberta. Eis que, inesperadamente, a senhora apercebeu-se duma pequena placa onde se encontrava algo escrito. Assestou afincadamente o olhar e conseguiu ler os dizeres. Intrigada perguntei-lhe o que se encontrava ali escrito.
A ingénua senhora, meio embaraçada, balbuciou: «Afinal isto não é nenhum medidor de água, é uma obra de arte duma escultura... uma Leonor qualquer coisa». Senti uma enorme vontade de rir.
Tínhamos sido mordazmente enganadas. A tudo hoje se chama arte. Talvez com razão. Só o facto de sabermos viver em tranquilidade é já uma obra de grande mestria artística.
Mas quanto ao ferro comprido e ferrugento ... , francamente!.
Conto / Crónica de Liliana Josué
O dia era ainda uma criança, com poucas horas de vida. Excepcionalmente eu tinha chegado depois de todos. Não porque me atrasasse mas, aquela gente, tinha por hábito adiantar-se à hora prevista da partida. Quando tal sucedia e vislumbrava, ao fundo da rua, a camioneta de esgar piscante, sem ninguém à porta: cerrava os dentes e atirava-me em correria desenfreada até penetrar, de rompante, na sua boca de hálito zombeteiro. Aplaudiam-me da proeza e tranquilizavam a minha alma informando-me,( como se eu não soubesse) não me encontrar atrasada. Um pouco nervosa comentava mentalmente: «Esta gente deve ter palhas na cama!» .
Eram todos mais velhos que eu, talvez por isso mesmo a pressa fosse maior, pois o tempo era menor. Ainda arquejante semeava beijinhos para um lado, apertos de mão para o outro e um nunca acabar de sorrisos. Depois da maratona concluída, sentava-me discretamente num dos últimos bancos, respirava fundo, encostava a cabeça para trás e semicerrava os olhos numa atitude de abandono.
Totalmente recomposta, dava comigo a observar atentamente os ocupantes do enorme veiculo. A alguns enxergava apenas o cocuruto da cabeça, a outros conseguia contemplar as faces: De sono nem vislumbre. Deparava com expressões calmas e felizes, de quem já muito fizera e, se sentia no seu pleno direito de desfrutar um resto de vida agradável e compensador.
Por cada cabelo branco haveria, certamente, uma história não contada; por cada ruga um desgosto quantas vezes dissimulado ; por cada sorriso o triunfo de tantas barreiras ultrapassadas. Tudo isso me enternecia guardando, religiosamente, aquelas expressões bem dentro de mim. Absorvida por tais especulações, espraiava o meu olhar através da janela, encharcando-me da plana e verdejante paisagem alentejana, tornando-a cúmplice dos meus pensamentos.
Também eu já era detentora de alguns cabelos brancos, rugas na cara e sorrisos esperançosos. No meio de toda esta gente fantástica impunha-se um personagem encantador: Estatura média, magro, cabelo farto e bigodinho maroto. Nos seus olhos podia ler-se a devoção por tudo o que fosse arte. Desde a antiga igreja românica, ao espectacular quadro impressionista, sem jamais esquecer a poesia.
Só de pronunciar essa palavra mágica, o seu rosto alterava-se surgindo-nos pleno de êxtase e adoração. Sem dúvida será alguém que hei-de lembrar e admirar para todo o sempre. A sua tertúlia poética era singela em «número» mas imponente em «género».
Subitamente acordei do torpor dos meus pensamentos. A camioneta parou. Chegara a costumada pausa para o café da manhã. Enquanto que para muitos, essa milagrosa bebida matinal se revestia de importância capital, para mim, tornava-se perniciosa. Um café antes do almoço transformava-se num barril de pólvora. A pulsação poderia atingir os cento e vinte, e as minhas mãos agiriam autonomamente, sempre pelo oposto à minha vontade. Por isso limitava-me a folhear algumas revistas na tabacaria do estabelecimento.
Findo o tempo estipulado para a recuperação de forças, regressávamos ao monstro que nos observava pachorrentamente, com orelhas quebradiças de cão atento, e introduzíamo-nos no seu interior através da sua boca plácida e um tanto desdenhosa.
A viagem continuava em conversa animada com o companheiro do lado ou o vizinho da frente. Chegados ao destino eram áhs! e óhs! de contentamento e deleite. Tanta coisa linda. Contemplei igrejas faustosas e conventos de admiráveis azulejos, fui bafejada pela sorte de poder admirar apaixonantes desenhos de Siza Vieira, traço breve e expressivo.
A medida que a visita prosseguia o agrado tornava-se maior.
Foi-nos sugerido observar as cisternas de determinado convento. Assim o fizemos. Não continham água, era um local subterrâneo, escuro, frio e um tanto assustador. A minha sensação, dentro daquele buraco negro, era como o de alguém tentando penetrar o insondável e misterioso mundo do Além. Inesperadamente um arrepio traiçoeiro percorreu-me a espinha, seguido de um bater forte de coração.
A minha volta pressentia murmúrios tímidos e sombras deslizantes. Uma das senhoras pertencente ao grupo, expulsou os meus receios ao aproximar – se entabulando conversa. Apurando a vista o mais que pôde, fez-me notar a existência dum estranho objecto colocado junto a uma das paredes da cisterna, por baixo da única abertura que deixava penetrar uma efémera claridade. Foi-se chegando lentamente ao estranho corpo, eu imitei-a.
Era um objecto esguio e comprido, com cerca de metro e meio de altura. A senhora muito compenetrada da sua missão exclamou triunfante: «Nem mais, isto é um medidor de água». Eu acenei afirmativamente a cabeça, admirando tamanha perspicácia.
Satisfeita a nossa curiosidade demos por concluída aquela sapiente descoberta. Eis que, inesperadamente, a senhora apercebeu-se duma pequena placa onde se encontrava algo escrito. Assestou afincadamente o olhar e conseguiu ler os dizeres. Intrigada perguntei-lhe o que se encontrava ali escrito.
A ingénua senhora, meio embaraçada, balbuciou: «Afinal isto não é nenhum medidor de água, é uma obra de arte duma escultura... uma Leonor qualquer coisa». Senti uma enorme vontade de rir.
Tínhamos sido mordazmente enganadas. A tudo hoje se chama arte. Talvez com razão. Só o facto de sabermos viver em tranquilidade é já uma obra de grande mestria artística.
Mas quanto ao ferro comprido e ferrugento ... , francamente!.
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