DE CORPO PRESENTE
Conto de Carlos Carvalho
Foi quando se apercebeu de que vivia nas trevas não sabia desde quando. Com a descoberta, a compreensão exata e desagradável da ausência.
No desejo intenso de se tornar presente, tratou de utilizar-se: lançou um membro, arremeteu outro, em marradas sucessivas. À força de vibrar, tentou romper os muros que o rodeavam, mas a desconexão e a noite impediam-lhe o movimento. A sólida construção a tudo resistia. Exausto, abandonou-se ao tépido torpor que o massageava. E adormeceu por séculos e séculos.
Foi arrancado do sono pela convulsão noturna. As paredes infladas tremiam em espasmos contínuos; um mar negro e viscoso elevou-se do abismo; ondas fermentaram ao seu redor, engoliram-no e trouxeram-no de novo quando já se julgava perdido; corpos estranhos grudaram-se ao seu, aumentando a noção de limites. Debateu-se. Fugindo às barreiras que o aprisionavam e que agora ruíam, rastejou, escapando, lenta e exaustivamente dos tentáculos e escamas que insistiam em retê-lo na escuridão. Lutou e perdeu a consciência.
Acordou com a luz doendo nos olhos. O corpo pesava numa superfície fria e drapeada. Demorou a acostumar-se com a luz. Mas a alegria de se sentir presente, de ocupar o lugar que sempre lhe estivera reservado, deu-lhe forças e obstinou-o a educar-se.
Luz primeiro, conforme o constatado. Depois, manchas indecisas, flutuantes, que ao poucos se fixavam e tomavam formas onde ele se refletia e se via futuro. E sons que batiam dolorosamente nos tímpanos, tentando acomodar-se, e que eram rechaçados, estrangeiros. Pacientemente aprendeu a selecioná-los, a catalogá-los, a entender o significado de cada um.
E quando distinguiu claramente as formas, quando percebeu o sentido dos sons, foi tomado por uma grande saudade do lugar antigo. Um pânico maior abateu-se. Gritou.
Logo acorreram mãos que tentaram acalmá-lo e contra as quais se rebelou. Através das mãos que dele se apossavam, que dispunham dele, evidenciando a propriedade, compreendeu o real sentido de um mundo grosseiro e pesado que ameaçava esmagá-lo. Gritou mais.
Preocupados os pais, o médico os afastou do berçário, dizendo tratar-se de uma simples cólica intestinal.
Inútil qualquer esforço, bebeu, resignado, o chá de erva-doce que o forçavam a engolir. E gostou.
Conto de Carlos Carvalho
Foi quando se apercebeu de que vivia nas trevas não sabia desde quando. Com a descoberta, a compreensão exata e desagradável da ausência.
No desejo intenso de se tornar presente, tratou de utilizar-se: lançou um membro, arremeteu outro, em marradas sucessivas. À força de vibrar, tentou romper os muros que o rodeavam, mas a desconexão e a noite impediam-lhe o movimento. A sólida construção a tudo resistia. Exausto, abandonou-se ao tépido torpor que o massageava. E adormeceu por séculos e séculos.
Foi arrancado do sono pela convulsão noturna. As paredes infladas tremiam em espasmos contínuos; um mar negro e viscoso elevou-se do abismo; ondas fermentaram ao seu redor, engoliram-no e trouxeram-no de novo quando já se julgava perdido; corpos estranhos grudaram-se ao seu, aumentando a noção de limites. Debateu-se. Fugindo às barreiras que o aprisionavam e que agora ruíam, rastejou, escapando, lenta e exaustivamente dos tentáculos e escamas que insistiam em retê-lo na escuridão. Lutou e perdeu a consciência.
Acordou com a luz doendo nos olhos. O corpo pesava numa superfície fria e drapeada. Demorou a acostumar-se com a luz. Mas a alegria de se sentir presente, de ocupar o lugar que sempre lhe estivera reservado, deu-lhe forças e obstinou-o a educar-se.
Luz primeiro, conforme o constatado. Depois, manchas indecisas, flutuantes, que ao poucos se fixavam e tomavam formas onde ele se refletia e se via futuro. E sons que batiam dolorosamente nos tímpanos, tentando acomodar-se, e que eram rechaçados, estrangeiros. Pacientemente aprendeu a selecioná-los, a catalogá-los, a entender o significado de cada um.
E quando distinguiu claramente as formas, quando percebeu o sentido dos sons, foi tomado por uma grande saudade do lugar antigo. Um pânico maior abateu-se. Gritou.
Logo acorreram mãos que tentaram acalmá-lo e contra as quais se rebelou. Através das mãos que dele se apossavam, que dispunham dele, evidenciando a propriedade, compreendeu o real sentido de um mundo grosseiro e pesado que ameaçava esmagá-lo. Gritou mais.
Preocupados os pais, o médico os afastou do berçário, dizendo tratar-se de uma simples cólica intestinal.
Inútil qualquer esforço, bebeu, resignado, o chá de erva-doce que o forçavam a engolir. E gostou.
Sem comentários:
Enviar um comentário