quinta-feira, 30 de abril de 2015

Poemas de Jorge Vicente


Poemas de Jorge Vicente

 

 POEMA UM; POEMA DOIS; POEMA TRES; NUVEM



 POEMA UM

 1.

diz o mestre ao discípulo:
 reúne a cor na sua expressão
 máxima e juntai-a de luz branca

só assim as aves serão
 mais do que pontos negros
 na copa dos dedos

2.

as crianças fogem. e do seu
 cálice retomará o espírito
 a sua longa caminhada

3.

fácil é a palavra que se
 incendeia quando dita;
 difícil o poema que dança
 no colo de um vulcão

 

 POEMA DOIS

 eu digo: chamaremos as mulheres e invocaremos o sacro império do corpo. não existe
 pedra maior (ou mais bela) do que aquela onde dioniso se esconde, o deus entre os
 homens, a pedra ante a gélida raiz dos antepassados. formaremos uma roda e
 imitaremos o som de todos os animais. todo o poema é proibido: só a origem, a
 hierofania do ritual e da pele contra pele.

 

 POEMA TRES

 responde-me se ouvires os pássaros, ou se do teu interior a voz é de guerra, um
 silvo constante, o boum das palavras grandes, das palavras santificadas pelo uso,
 mesmo que o uso seja o apanágio da noite - aquela noite que não pertence a ninguém,
 é apenas nossa e da paisagem que nos cerca:

uma casa,
 a ribanceira entre as casas,
 um abrigo onde o pastor se alimenta,
 o caminho milenar por entre as águas do rio,

um trovão é apenas isso: uma voz sobre o alentejo,
 um rumor que rompe o guadiana e nos sobra de pele
 e de versos entre os relâmpagos.

sei que tudo sobra, mas a casa é só minha.

 

 NUVEM

 carrego uma nuvem às costas
 como se dependesse de mim
 permanecer no silêncio

naquele silêncio
 que não se quer rígido
 esquecendo-se do propósito de
 existir e de alimentar o fogo

sossega-me ver uma casa ao
 longe, adormecida no ceptro
 de terra abandonada

uma casa caiada de branco, todas
 as casas o são, mesmo que os olhos
 roubem a realidade
e deus a ignore.

a memória verga todas as coisas,
 mesmo o silencioso movimento
 da não-existência.

tudo é ilusório.

a casa abraça
 a ferrugem dos corpos caiados
 de gestos. os dedos movimentam-se
 numa sinfonia de trevas

jorge vicente





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