O nosso sempre Padre Jorge
por Cecílio Elias Netto
Há pessoas que deixam de se pertencer a si mesmas. Tornam-se patrimônio comum, coletivo. Monsenhor Jorge Simão Miguel – o ainda sempre Padre Jorge – é uma delas. Tenho, por causa dele, um outro privilégio na vida: o de conhecê-lo desde quando chegou a Piracicaba, ordenado pelo então bispo D.Ernesto de Paula. Foi em 1955 e eu, ainda, era adolescente, estudando no Colégio D.Bosco.
O sorriso daquele padre “turquinho”, baixinho, era irresistível. E ainda é. Em Vila Rezende, o pároco era o Padre Romário, figura também inesquecível, perfil de santo com aquela magreza que sugeria fragilidade, escondendo, porém, uma espiritualidade contagiante. Abro um parêntese, por ter-me lembrado de um episódio de infância, quando menti para o Padre Romário. Foi o seguinte e conto no próximo parágrafo.
Guto – Antônio Augusto de Souza Campos, de quem tenho saudade imensa – e eu éramos duas crianças que se não largavam. Pulávamos muros de vizinhos para nos encontrar com amiguinhos das ruas São José e Prudente de Moraes. Dona Nenê, mãe de Guto, era uma senhora de catolicidade impecável, de fé profunda.
E ela fez questão de Guto frequentar as aulas dos “cruzadinhos”, dadas pelo Padre Romário no salãozinho da Igreja de São Benedito. Minha família era católica, sem, no entanto, grande entusiasmo. Pai maçom, mãe católica, pode-se imaginar a maravilhosa simbiose em que fui educado: livre pensar e dogmatismo unidos.
Pois bem. Guto começou a me atazanar a vida para que eu o acompanhasse para ser “cruzadinho”. Fui, amigo leal. Mas não suportei. E justifiquei minha fuga alegando, ao Padre Romário, o fato de meu “pai ser maçom”. Ora, meu pai não tinha nada a ver com minha mentira. O saudoso Padre Romário me olhou como se eu fosse filho do demônio, “vade retro Satana”. Escapei de ser “cruzadinho” e Guto também.
Retorno ao Pároco Emérito, Monsenhor Jorge, nosso sempre Padre Jorge. Na realidade, não consigo imaginar Piracicaba – e, em especial, Vila Rezende – sem ele. Pois esse homem se tornou mais do que uma presença. Felizmente ainda em vida, ele conseguiu – e não conseguiu impedir – tornar-se como que um espírito, um mito, um ícone.
Com aquela sua batina preta – que ele se recusou a tirar, mesmo após o Concílio Vaticano II – ele foi acolhido, amado, recebido em incontáveis lares piracicabanos. Nunca se negou a atender fosse quem fosse, do mais santo de seus paroquianos a prostitutas, bandidos, excluídos da sociedade.
Agora – quando ele se torna patrimônio espiritual de Piracicaba, completando 60 anos de sacerdócio – posso dizer que o Padre Jorge, por amor ao ser humano, foi além do direito canônico, de leis e regras da Igreja, perdoando e abençoando aqueles a quem as regras condenavam. E, mesmo assim, foi um servidor fiel da sua Igreja, de seus bispos, todos com quem trabalhou, a começar do primeiro deles, D.Ernesto de Paula.
Muito, muito antes de o Vaticano começar a abrir-se à compreensão dos divorciados, o Padre Jorge já os atendia, acolhendo-os de maneira cautelosa e em caráter privado. Sou testemunha – pois trabalhamos juntos, por mais de 20 anos, nos Cursilhos de Cristandade – de seu amor pelas pessoas, de sua compreensão, mesmo porque ele foi, no exercício do seu sacerdócio, aquilo que Nietszche chamou de “Humano, Demasiado Humano”.
O Padre Jorge foi como a própria Igreja se define: “santa e pecadora”. Por isso, ele sempre pode perdoar com facilidade, amando sem condenar. Ele me dizia o que, talvez, deve ter tido a muitos: “Cada um sabe onde o calo dói.”
Padre Jorge completa, agora, 60 anos de sacerdócio. E eu – em véspera de completar 60 anos de jornalismo – posso afirmar que poucas, pouquíssimas pessoas em Piracicaba foram e são tão amadas como ele. Não apenas por católicos ou religiosos, mas por todos os que o conheceram e ainda conhecem. Padre Jorge praticou o ecumenismo antes mesmo de a própria Igreja Católica referir-se a essa confraternidade. E com uma virtude especial, especialíssima: sempre foi e ainda é um corintiano fanático, companheiros que somos desse amor irracional pelo Corinthians.
Desejo, com esta crônica, apenas abraçá-lo, renovando-lhe a amizadel que sempre nos uniu. Junto-me à multidão que o cumprimenta. E lembro-me, então, do conto de Alexandre Herculano, “O Pároco de Aldeia”, em que ele, lembrando-se do velho padre de sua infância, escreve, apesar de seu anti-clericalismo: “Parecia-me que, estando ao pé dele, estava mais perto de Deus, cujo valido, por assim dizer, era o padre-prior.”
Monsenhor Jorge Simão Miguel – o Padre Jorge – é o pároco amado da aldeia chamada Piracicaba. Para sempre.
por Cecílio Elias Netto
Há pessoas que deixam de se pertencer a si mesmas. Tornam-se patrimônio comum, coletivo. Monsenhor Jorge Simão Miguel – o ainda sempre Padre Jorge – é uma delas. Tenho, por causa dele, um outro privilégio na vida: o de conhecê-lo desde quando chegou a Piracicaba, ordenado pelo então bispo D.Ernesto de Paula. Foi em 1955 e eu, ainda, era adolescente, estudando no Colégio D.Bosco.
O sorriso daquele padre “turquinho”, baixinho, era irresistível. E ainda é. Em Vila Rezende, o pároco era o Padre Romário, figura também inesquecível, perfil de santo com aquela magreza que sugeria fragilidade, escondendo, porém, uma espiritualidade contagiante. Abro um parêntese, por ter-me lembrado de um episódio de infância, quando menti para o Padre Romário. Foi o seguinte e conto no próximo parágrafo.
Guto – Antônio Augusto de Souza Campos, de quem tenho saudade imensa – e eu éramos duas crianças que se não largavam. Pulávamos muros de vizinhos para nos encontrar com amiguinhos das ruas São José e Prudente de Moraes. Dona Nenê, mãe de Guto, era uma senhora de catolicidade impecável, de fé profunda.
E ela fez questão de Guto frequentar as aulas dos “cruzadinhos”, dadas pelo Padre Romário no salãozinho da Igreja de São Benedito. Minha família era católica, sem, no entanto, grande entusiasmo. Pai maçom, mãe católica, pode-se imaginar a maravilhosa simbiose em que fui educado: livre pensar e dogmatismo unidos.
Pois bem. Guto começou a me atazanar a vida para que eu o acompanhasse para ser “cruzadinho”. Fui, amigo leal. Mas não suportei. E justifiquei minha fuga alegando, ao Padre Romário, o fato de meu “pai ser maçom”. Ora, meu pai não tinha nada a ver com minha mentira. O saudoso Padre Romário me olhou como se eu fosse filho do demônio, “vade retro Satana”. Escapei de ser “cruzadinho” e Guto também.
Retorno ao Pároco Emérito, Monsenhor Jorge, nosso sempre Padre Jorge. Na realidade, não consigo imaginar Piracicaba – e, em especial, Vila Rezende – sem ele. Pois esse homem se tornou mais do que uma presença. Felizmente ainda em vida, ele conseguiu – e não conseguiu impedir – tornar-se como que um espírito, um mito, um ícone.
Com aquela sua batina preta – que ele se recusou a tirar, mesmo após o Concílio Vaticano II – ele foi acolhido, amado, recebido em incontáveis lares piracicabanos. Nunca se negou a atender fosse quem fosse, do mais santo de seus paroquianos a prostitutas, bandidos, excluídos da sociedade.
Agora – quando ele se torna patrimônio espiritual de Piracicaba, completando 60 anos de sacerdócio – posso dizer que o Padre Jorge, por amor ao ser humano, foi além do direito canônico, de leis e regras da Igreja, perdoando e abençoando aqueles a quem as regras condenavam. E, mesmo assim, foi um servidor fiel da sua Igreja, de seus bispos, todos com quem trabalhou, a começar do primeiro deles, D.Ernesto de Paula.
Muito, muito antes de o Vaticano começar a abrir-se à compreensão dos divorciados, o Padre Jorge já os atendia, acolhendo-os de maneira cautelosa e em caráter privado. Sou testemunha – pois trabalhamos juntos, por mais de 20 anos, nos Cursilhos de Cristandade – de seu amor pelas pessoas, de sua compreensão, mesmo porque ele foi, no exercício do seu sacerdócio, aquilo que Nietszche chamou de “Humano, Demasiado Humano”.
O Padre Jorge foi como a própria Igreja se define: “santa e pecadora”. Por isso, ele sempre pode perdoar com facilidade, amando sem condenar. Ele me dizia o que, talvez, deve ter tido a muitos: “Cada um sabe onde o calo dói.”
Padre Jorge completa, agora, 60 anos de sacerdócio. E eu – em véspera de completar 60 anos de jornalismo – posso afirmar que poucas, pouquíssimas pessoas em Piracicaba foram e são tão amadas como ele. Não apenas por católicos ou religiosos, mas por todos os que o conheceram e ainda conhecem. Padre Jorge praticou o ecumenismo antes mesmo de a própria Igreja Católica referir-se a essa confraternidade. E com uma virtude especial, especialíssima: sempre foi e ainda é um corintiano fanático, companheiros que somos desse amor irracional pelo Corinthians.
Desejo, com esta crônica, apenas abraçá-lo, renovando-lhe a amizadel que sempre nos uniu. Junto-me à multidão que o cumprimenta. E lembro-me, então, do conto de Alexandre Herculano, “O Pároco de Aldeia”, em que ele, lembrando-se do velho padre de sua infância, escreve, apesar de seu anti-clericalismo: “Parecia-me que, estando ao pé dele, estava mais perto de Deus, cujo valido, por assim dizer, era o padre-prior.”
Monsenhor Jorge Simão Miguel – o Padre Jorge – é o pároco amado da aldeia chamada Piracicaba. Para sempre.
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