segunda-feira, 13 de julho de 2015

A solidão dos idosos - Por Maria José Vieira de Sousa


A solidão dos idosos

O Lugar

 Por Maria José Vieira de Sousa

Recolhido em Livres Pensantes

 Quando voltou ao salão de convívio teve pela primeira vez consciência plena da segregação etária que as novas gerações estavam a impor. O convívio e a coabitação intergeracionais estavam, efectivamente, em processo de regressão, senão mesmo em declarada extinção.

 O quadro com que deparou nessa manhã, naquele salão, impôs-lhe abruptamente a dolorosa assunção dessa realidade chocante que nunca se dispusera sequer a formalizar.

 O Lugar era a morada de uma só geração: a geração dos velhos.

 Apesar do conforto discreto que a decoração emprestava ao salão, sentia-se no ar o silêncio frio e mudo da tristeza que enferma a solidão.

 Estariam aí cerca de quinze pessoas. Algumas estavam confortavelmente sentadas em cadeirões reclináveis junto a uma grande televisão que estava ligada com o som no mínimo, quase inaudível. Outras, que teriam problemas locomotores, estavam acomodadas em cadeiras de rodas perto das grandes portas envidraçadas que davam para o terraço. Entre elas, distribuíam-se mesas intercaladas com jornais e revistas. No canto direito, oposto ao da televisão, havia duas mesas de jogo: uma com um tabuleiro de xadrez e a outra com baralhos de cartas. Ambas estavam vazias.

 Dois grandes sofás de cabedal castanho completavam o «decors» do salão , onde dormitavam ostensivamente duas senhoras com os cabelos brancos muito alisados. Pelas semelhanças do porte pareciam irmãs gémeas, já que era impossível ver os rostos que estavam pendidos sobre o peito .

 No terraço, existiam algumas cadeiras de madeira forradas com grossas almofadas amarelas e foi lá que conheceu o único casal do Lugar: os Lacerda.

 Estavam sentados em frente de uma pequena mesa, onde havia sido colocado um tabuleiro com duas chávenas de chá. Falavam um com o outro olhando para o jardim. Assim que deram pela sua presença, o Dr. Lacerda levantou-se e convidou-a a sentar-se numa cadeira vaga da mesa.

- Tenha a bondade de nos fazer companhia neste dia em que se estreia nesta casa. Esta é a minha mulher, Sofia Lacerda e eu sou Carlos Lacerda. Somos hóspedes antigos do Lugar.

 Uns grandes olhos pretos sorriam para ela num rosto sulcado pelas marcas do tempo ( forma eufémica e costumeira de designar as rugas), mas que irradiava simpatia. A mulher continuava sentada, indicando-lhe com gentileza a cadeira. Tinha também um rosto agradável .

 Sentou-se. Uma empregada surgiu repentinamente, trazendo outra chávena de chá , desaparecendo quase tão misteriosamente como tinha aparecido.

 (...) - Já sabemos que chegou ontem à noite e que está no quarto 12. Nós estamos no quarto 10, logo no mesmo corredor. Somos o único casal deste Lugar. Havia outro, os Pereira Gonçalves, mas infelizmente já cá não estão.

- O meu marido é um grande conversador. Prepare-se que ele vai saturá-la com tanta verbosidade, não lhe dando oportunidade de responder. O que vale é que neste sítio ninguém quer falar quanto mais conversar. - ia avisando Sofia Lacerda.

 (...) - Já estão avisando que vai ser servido o almoço . Ver-nos-emos mais tarde. Bom apetite. - rematou a mulher, Sofia.

 Carlos levantou-se e gentilmente puxou a cadeira onde estava sentada. Em seguida, dando a mão à mulher foi carinhosamente amparando-a até que ela acabasse de se erguer e dando-lhe o braço dirigiram-se para a sala de refeições.

 Quando entrou, viu-os sentados no fundo da sala em frente de uma mesa rectangular que se distinguia das outras não só pelo formato, mas também pelo tamanho. Era, ostensivamente, bastante maior que todas as restantes mesas. Estavam sozinhos, embora houvesse lugares para mais pessoas.

 Algumas mesas já estavam completas , mas o silêncio continuava imperando apesar da esplendorosa luminosidade natural que invadia aquela sala magnifica, realçando a beleza sóbria das paredes e o minucioso trabalho em relevo que preenchia o tecto.

 Sentou-se na mesa que lhe fora atribuída e foi analisando o que a rodeava. Verificou que as mesas tinham lugares para quatro pessoas e que as empregadas, com fardas cor-de-rosa e touca da mesma cor, iam trazendo os hóspedes com deficiência locomotora, empurrando as respectivas cadeiras de rodas ou auxiliando aqueles que se moviam com alguma dificuldade, muitos deles apoiados em bengalas.

A maioria apresentava um olhar vago e perdido como se o corpo fosse apenas a matéria visível de uma ausência voluntária. 

Maria José Vieira de Sousa, in «O Lugar, memórias de um romance», Junho de 2008




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