terça-feira, 14 de julho de 2015

Considerações sobre o pós romantismo - Por Daniel Teixeira


Considerações sobre o pós romantismo

Por Daniel Teixeira

No ponto de vista literário (e interessa realçar desde logo que não vamos falar da burguesia revolucionária de 1789 mas sim da burguesia imperialista) a razão do império aparece como uma decadência dos ideais igualitários e nobres para se transmitir a uma decadência não só de valores como de expectativas: a desilusão origina entre outras coisas no plano das ideias o sentimento de decadência e consequente gosto pela evasão a que Baudelaire chamava de paraísos artificiais, a entrada nos campos do mistério e do ocultismo.

O saldo da utopia igualitária de 1789 parece largamente negativo, e, mais do que negativo, aparece como irreversível. O real torna-se horrível e apesar dos esforços dos românticos para fazerem a apologia do supra sensível, daquilo que está para além da realidade vivida, entrando na apologia da «alma», (o feio / belo) , do subjectivo, o peso da realidade é por demais carregado de maus augúrios e o processo de fuga aparece como uma inevitabilidade.

A encantação hipnótica ou pretensamente mágica fazem escola entre os decandentistas fim de século, num acoitamento intelectual que origina como que uma dobragem das pessoas sobre si mesmas. Falseados os ideais gerais resta o eu e o culto do eu como tábua de salvação psíquica e intelectual.

Mas não se trata de um eu qualquer que se tem de elevar. Trata-se de um eu que, não fazendo de forma alguma a revolução mental ou intelectual, apareça como um eu substituto dos individualismos perdidos e da utopia relançada. Neste plano Nietzsche é bastante esclarecedor na sua análise que se pode muito bem adaptar à época:

Nietzsche nas suas «Origens da Tragédia» ao analisar a posição do público em face da Tragédia Grega (neste caso concreto mas de possível generalização para outros campos da arte e do pensamento), constata (deduz) que a identificação do público em face da tragédia grega não se verifica pela sua intrusão no campo específico da tragédia (na absorção dela) mas sim pela aquisição de um estado de espírito resultante da observação da tragédia. Ou seja, o que o público  «absorve» não é a tragédia em si mas sim uma ideia sua da tragédia, que guarda enquanto sentimento individual, estado de espírito, componente psico - social.

Entendendo que a tragédia representada não é senão  uma mediação de uma hipotética tragédia real, o efeito resultante da combinação: tragédia real, tragédia representada e tragédia vivida acaba na aceitação de um sumo residual em que a tragédia interiorizada fica como sentimento, como componente de uma psicologia geral, como expectativa ou falta dela.

E este aspecto é importante fazer realçar por razões várias entre as quais esta que vamos descrever de seguida:

Era convicção anterior à constatação de Nietzsche, que o coro grego tinha funcionado como que se de um embrião se tratasse do futuro público e que, a manutenção do coro (agora como público) era ainda um vestígio dessa unidade espectáculo / público, um plano de transição que interessava manter não porque fosse agora absolutamente necessário mas porque era, simbolicamente, uma relíquia da génese do espectáculo.

Ora esta ideia, implicava que houvesse, mesmo no agora público um sentimento de interacção tragédia / público. As implicações desta concepção que Nietzsche combate têm a ver, no plano psicológico, com formas de reconhecer a Arte, e estabelecem uma clivagem importante no combate a algumas concepções do Romantismo e do período romântico.

Com efeito, neste, no Romantismo - sobretudo e para Nietzsche no caso de Schlegeel - enquanto que o coro sendo a génese do público era uma prefiguração do público e a demonstração de uma unidade público / espectáculo, no caso de Nietzsche o problema inverte-se: o coro, não sendo resquício do público mantém a separação entre a Arte representada (neste caso) e o público como auditor.

Assim, e trazendo para o espírito da altura, a Arte (ou a tragédia vivenciada) estavam acima do público (povo) e reproduziam em si um sentimento real no artista e um sentimento difuso no público. Logo, a Arte e o artista estão para além do público, como entidades distintas, e o público algures colocado na posição de intérprete passivo de uma parte transfigurada (pela sua própria subjectividade e que pouco ou muito terá a ver com a subjectividade da Arte).

O distanciamento do artista do público é assim acentuado por Nietzsche numa forma e concepção que vem a fundamentar a posição do artista e da Arte como sendo alguém e uma coisa colocadas numa proximidade mais próxima do Demiurgo Platónico que Nietzsche noutros campos combate.

Este aspecto é importante ser realçado porquanto o chamado vitalismo de Nietzsche e outros que podem ser inseridos nesta corrente, como Dhiltey (este em certos sentido um pré-existencialista) e Ortega Y Gassett, por exemplo, faz realçar a capacidade de o homem alterar o estado das coisas e faz o elogio da vida, não daquela que se
vive mas de uma outra transformada, sem que para isso utilize qualquer praxis senão aquela que é própria da mera constatação das fatalidades reais.

O artista e a Arte, longe da realidade «comezinha» precisam de todo um enquadramento substancial que legitime a Arte enquanto Arte não como Arte do real mas sim como Arte do real anunciado. A convicção premonitória e profética da Arte
confere-lhe um estatuto que se estende a toda a intelectualidade e tem, reflexos reflectidos e outros projectados nos diversos campos do pensamento.

Este afastamento propositado da realidade tem consequências que derivam para várias direcções. O existencialismo, sobretudo o de Camus, defende mais uma posição passiva perante os factos da vida, ou mesmo quando ela não é passiva, o ser humano acaba por ser absorvido pela força das coisas e objectiva-se perante elas.

Por outras palavras podemos dizer que o real demonstrado não é assim tão significativo que force ou origine a sua modificação ou uma atitude para que tal aconteça. Até porque na sua grande parte ele é entendido como percorrendo um caminho inalcançável.

O real torna-se pouco significante, em termos de influência sobre o ser e reflecte -se sobretudo sobre o estar, que é entendido como um estádio, uma transição, insuperável como facto acontecendo e incombatível pela praxis mas entendido de pouco significado substancial no devir.

Esta negação / diferenciação do ser está bem mais próxima do espírito da época do que aquela que é trazida por outros correntes e autores, que, mesmo no caso de Jean Paul Sartre acabam por ter de colocar a premissa prática como imperativa mas já fora do campo específico do pensamento sobre este tipo de existência como facto.

O mundo é, de facto trágico, mas existem razões para que ele assim seja e nenhuma delas se encontra no campo do real, é para Nietzsche um problema filosófico cultural. Tudo aquilo que é preciso fazer é modificar essas razões (no caso de Nietzsche a metafísica platónica) sem que se faça o mínimo esforço (para além daqueles que são considerados dentro do processo crítico abstracto). O tempo, o futuro, trará aquilo pelo qual os homens abstractamente agora anseiam mas sem intervenção deles.

Já no caso de Camus, e regressando a este autor, começando pelo seu Avesso e o Direito da juventude é a própria situação (o real) que envolve as pessoas e as leva a procederem de forma quase predestinada (absurda mas irrecusável) mas sempre despida de significado substante. O homem, para este tipo de existencialismo não é aquilo que é mas sim aquilo que será; logo, nada mais lógico do que «deixar» a realidade demonstrar-se certos que estamos de que essa realidade não é, de facto, uma realidade em devir. Ou seja, não é processo, não é causa, é mero efeito sem causa.

Neste autor (Camus), estando o homem condenado a viver o absurdo num mundo absurdo resta-lhe ter consciência dele e semear, de alguma forma, aquilo que as gerações futuras irão recolher. A morte aparece assim como uma passagem de testemunho entre gerações…como algo inevitável e inglório, de certa forma, porque não muda nada enquanto acto, apenas serve como relógio de uma cronologia do devir a manifestar.

A situação que se vive nem sequer é aquela que coloca a necessidade de antecipar a morte para que esse devir se manifeste ou se possa manifestar. Ela não influi pura e simplesmente, tal como um relógio parado ou a trabalhar não influi, no decurso do tempo.

Contudo, e voltando a Nietzsche e à sua Origem da Tragédia, há um outro aspecto a fazer notar. A defesa da equiparação do público como observador e também como actor na tragédia grega (no caso exemplificativo de Nietzsche) implica a identidade deste com a tragédia, como vimos, mas no caso de Nietzsche o que se obtém é antes um
 estado de espírito diferenciado, após a visão da tragédia, mas nunca um estado de espírito trágico no sentido da tragédia vista mas não vivida. No entanto, ela move-se, ou seja, o público recebe influência: não uma influência fiel ou
correspondente mas essa influência existe.

Por outras palavras ainda podemos afirmar que, segundo ainda Nietzsche e as concepções um pouco espalhadas na época, se é um facto que o público é indiferente ao processo e desenrolamento da tragédia (Arte e Pensamento) a inversa já não é verdadeira. Ou seja, o público, esse, mesmo não participando, é influenciado pela tragédia, como vimos. Há assim um percurso de um só sentido, em que o Artista / pensador produz e o público interpreta, digere à sua maneira e age de acordo com a sua maneira.

Em termos pessoais, e extrapolando para a psique, recusa, desta forma, Nietzsche a influência integral do outro sobre o eu e recusa também Nietzsche a perca de identidade do eu em relação ao outro, ou seja, a subsunção deste perante os ditames do outro. Em qualquer dos casos o que está mais presente é, de um lado, a impossibilidade de o «vulgo» público real influir na realidade etérea da tragédia, mas por outro lado (para que não haja identificação) esta também não interage de uma forma portentosa sobre o público e o real.

Os condimentos globais são, pois, que nada há ou nada se pode fazer...

Esta é uma temática que vem desenvolvida em Hegel, sobretudo através da sua famosa dialéctica do senhor e do escravo, e que como anti Hegeliano Nietzsche combate, mas
que não é assim tão passível de adesão imediata. O parcelamento da subsunção (neste caso do público) perante o conteúdo trágico do real é, de alguma forma, uma diferenciação de subjectividades entre o Artista e a Arte e o Público / mundo perante a tragédia.

Ora a tragédia é a própria vivência social e o espírito resultante da observação da tragédia humana é uma visão igualmente trágica, ainda que com registos diferentes.

É importante transcrever agora o texto de Nietzsche que se segue: «Durante a embriaguez estática do estado dionisíaco, (observação da tragédia no plano mediado, neste caso por notícias ou mesmo por via cultural) vão-se abolindo as separações e os limites ordinários da existência, e há efectivamente um momento letárgico, durante o qual se desvanecem todas as lembranças pessoais do passado (do trágico mediado).

Entre o mundo da realidade dionisíaca (aquela que se apresenta mediada) e o mundo da realidade quotidiana cava-se esse abismo do esquecimento que os separa um do outro.

Mas, logo que volta a apresentar-se à consciência a realidade quotidiana, (ou seja, quando existe a fusão de registos diferentes entre o real e o mediado) esta (tragédia, ou vivência trágica) é sentida como tal com aborrecimento, e uma disposição ascética, negadora da vontade, é o resultado daquela impressão.» (…)

Por outras palavras (e de notar que nos servimos das palavras de Nietzsche acrescentando-lhes alguns esclarecimentos para compreensão do texto) a tragédia não é assumida enquanto tal e como facto real, mas que esta sai de uma mediação (a expositiva) para entrar numa outra mediação, desta feita eminentemente interior e subjectiva, com forte componente rebuscado na sensação de impotência e no desejo de evasão, conforme em Baudelaire.

O espectador da tragédia mediada (porque a não vive profundamente ou fisicamente) não se identifica de forma nenhuma com uma posição positiva de fazer reerguer aquilo que o fere ou feriu; antes opta por aquela atitude que considera mais coerente consigo mesmo que é a de fazer uma interiorização exteriorizada (passe o paradoxo) através de atitudes que, de acordo com a sua vivência e formação, considera urgentes até como purga psicológica do seu mal de vivre adquirido.

A Filosofia, seguindo a peugada, envereda pelo quase psicologismo e de certa forma abandona os a priori cosmológicos para se debruçar sobre o homem e o seu destino.

Estas correntes, na sua grande parte são correntes de escola que embora nalguns casos acabem por negar partes da filosofia construída ao longo dos séculos, acabam também por lhes retirar aquilo que consideram que de positivo foi pensado.

E neste ambiente ou num ambiente em que estes valores estão ainda presentes, se desenvolvem, se questionam e se reformulam que surge o pós romantismo como arte do não real ou do real subjectivamente mediado.

 
 



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