terça-feira, 2 de junho de 2015

Os bolos da Dª Maria Teresa - Texto de Daniel Teixeira


Os bolos da Dª Maria Teresa

Texto de Daniel Teixeira


Por vezes fico com um ar de surpresa em relação a mim mesmo no que se refere a recordações e ao processo de selecção que a minha mente vai buscar como elemento que ela considera relevante e despoletador da recordação de um dado facto ou conjunto de factos.

Acho, usando um pouco do meu raciocínio (nada disto pretende ser  válido em termos científicos e nunca li isto em lado nenhum que me lembre) que a mente usa cábulas, daquelas que se usavam na escola (quem era cábula é claro) que dão início ao desenrolar consequente da mensagem arquivada na nossa mente.

Pois, (nunca cabulei, asseguro) há dias, estava eu em conversa com pessoas do meu bairro e veio à tona da conversa a Dª Maria Teresa. Fiquei surpreso, como já dei a entender acima, pelo que acho preocupante a rapidez da minha resposta no seu conteúdo: «Verdade, era uma excelente senhora...e sabia fazer bolos muito bem.»: acho que deveria ter  referido antes aquilo que mais choca nesta história, é que a Dª Maria Teresa morreu praticamente só e no anonimato mas lembrei-me desde logo que ela fazia muito bem bolos.

Fuga psicológica em frente, inserida na minha mente com o intuíto (se se pode dizer isto) de me poupar à memória imediata uma visão de uma situação pelo menos triste? Francamente acho que estas questões não têm mesmo resposta por mais que se analisem: são assim como mandamentos que surgem não se sabe como nem de onde vêm e no entanto deixam mossa psicológica depois de seguidos, mesmo que involuntariamente seguidos. Resta sempre o remorso para nos fazer à posteriori pensar naquilo que deveríamos ter pensado e não pensámos.

A D. Maria Teresa quase que terá nascido para a doçaria caseira e como tinha pouco ou quase nada que fazer dedicou-se a fundo sendo uma verdadeira e nossa muito solidária expert desde que começámos a conhecê-la: fomos vizinhos, casas lado a lado, e praticamente tinha uma fabricação continuada para consumo próprio e das amigas e vizinhas, o que muito nos alegrava, sobretudo a nós crianças e jovens.

Solteirona, coisa que não se dizia, em princípio deveria ser «Menina Maria Teresa» como é uso, mas foi nominalmente sempre «dona». A história tem aspectos bons e aspectos menos bons: ficou a cuidar da mãe, que enviuvou cedo e a Dona Maria Teresa também não deve ter feito grandes esforços para constituir família mesmo anos depois após o falecimento da mãe. Talvez considerasse que já era tarde, talvez estivesse solidificada na vida a sós, enfim...também ninguém é obrigado a casar e a constituir família.

Beata, tal como se dizia também, passava uma parte substancial do seu tempo na Igreja e em conversas com amigas igualmente «beatas»: um irmão dela, comerciante, apoiou-a sempre financeiramente e embora nunca me tenha preocupado em saber isso, o seu comércio teria sido familiar com o falecido pai, sendo o contributo dele também uma parte daquilo que supostamente seria também propriedade dela.

O irmão faleceu muitos anos depois, teria ela já cerca de 60 anos e a D. Maria Teresa ficou resumida em termos financeiros a uma reforma curta: os bolos começaram a rarear nessa altura.

O processo de queda financeira não acabou só com os bolos, praticamente acabou com tudo, acabou com ela também muito mais que o percurso normal da idade. Afundou-se, mais em termos anímicos do que em termos físicos...

Havia um sistema de comunicação entre as nossas casas: subir até à altura do muro de divisão nos quintais geminados e um outro composto de pancadas na parede, na zona da cozinha e no corredor, em que se procurava saber se ela estava bem ou não: se respondesse aos chamamentos ou ao sistema de toques nas paredes estava tudo certo, quando isso não acontecia tínhamos uma chave da casa dela: primeiro ia a minha mãe, nestes casos; a D. Maria Teresa era extremamente pudica e mesmo quando a encontrava caída sem se conseguir levantar e não tinha forças para o fazer, primeiro compunha-lhe a roupa e só depois vinha buscar ajuda.

Durou talvez cinco anos esta situação: depois acamou e foi para um lar. Fomos informados do seu falecimento por acaso, no dia em que lha íamos fazer a visita semanal já tinham passado vários dias...
 
 Daniel Teixeira




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