sexta-feira, 5 de junho de 2015

«O ESPECTRO DA IDEOLOGIA» DE SLAVOJ ZIZEK - Por Arlete Deretti Fernandes


«O ESPECTRO DA IDEOLOGIA» DE SLAVOJ ZIZEK

Por Arlete Deretti Fernandes


 Slajov Zizek, filósofo e crítico esloveno, em seu artigo «O Espectro da Ideologia», do livro «Um Mapa da Ideologia», organizado por ele e publicado em 1994, faz uma importante análise do conceito de ideologia, desde o pensamento de Marx, (1818-1883) e das reelaborações que este tema recebeu até hoje, na sua avaliação e reconstrução feita pelos intelectuais que refletem sobre estes assuntos.

Em sua tese, o autor cita:

Até uma ou duas décadas atrás, o sistema produção -natureza (a relação produtiva exploratória do homem com a natureza e com seus recursos) era percebido como uma constante, enquanto todos tratavam de imaginar diferentes formas de organização social da produção e do comércio, (o fascismo ou o comunismo como alternativas ao capitalismo liberal), e que hoje, como assinalou Fredric Jameson com muita perspicácia ninguém mais considera seriamente as possíveis alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões do futuro «colapso da natureza», da eliminação de toda a vida sobre a Terra.. (ZIZEK, 1994,p. 7)

Para Zizek, todos imaginam como verdadeiro que o capitalismo liberal seja o «real», que irá sobreviver a qualquer catástrofe.

O autor se move neste meio multifacetado, composto de inúmeras interpretações, buscando esclarecer o sentido do termo «ideologia», em suas diversas manifestações, para dar-lhe uma significação possível ainda de ser pensada na era pós-moderna e do capitalismo tardio.

Ele exemplifica com a dialética do «velho» e do «novo», das rupturas radicais, dos críticos do Marxismo que «apreendem a sociedade capitalista avançada como uma nova formação social não mais dominada pela dinâmica do capitalismo tal como descrita por Marx».

Ao citar muitos rompimentos de estruturas, refere-se a um exemplo no campo da sexualidade, ao sexo virtual como uma ruptura radical com o passado, pois para Lacan o ato sexual «real???»é intrinsecamente fantasmático, o sexo virtual seria então uma estrutura fantasmática subjacente.

A nação, por exemplo, é composta por uma ideologia e por uma realidade, é formada por homens, com suas idéias e interesses, com suas necessidades vitais e suas lutas. Por este motivo, ela é um fenômeno social complicado, e é um espaço de intensa ideologização.

«Um caso exemplar da (des)apreensão inversa é fornecida pela reação dos intelectuais liberais do Ocidente ao surgimento de novas nações oriundas da desintegração do socialismo real no Leste europeu: eles (des)apreenderam esse surgimento como um retorno à tradição oitocentista do Estado nacional, quando aquilo com que estamos lidando é exatamente o inverso – o fenecimento do Estado nacional tradicional, baseado na idéia do cidadão abstrato, identificado com a ordem jurídica constitucional».[...] «O antigo espectro do Leviatã, parasitando o Lebenswelt (mundo da vida) da sociedade, totalizando-a de cima para baixo, é cada vez mais desgastado por duas vertentes. De um lado, existem as novas comunidades étnicas emergentes; embora algumas sejam formalmente constituídas como Estados soberanos, elas já não são propriamente Estados, no sentido europeu da era moderna, uma vez que não cortaram o cordão umbilical entre o Estado e a comunidade étnica. (Paradigmático, nesse aspecto, é o caso da Rússia, onde as máfias locais já funcionam como uma espécie de estrutura paralela de poder.) Por outro lado, existem os múltiplos vínculos transnacionais, desde o capital multinacional até os cartéis da máfia e as comunidades políticas interestatais(a União Européia)».( ZIZEK 1994, p. 8.)

Em meio aos conflitos das Nações, perante um sistema que seja de hegemonia mundial como ideologia e poder, está o pensamento que «a ideologia é o oposto diametral da internalização da contingência externa, residindo na externalização do resultado de uma necessidade interna»( ZIZEK, 1994, p10).

Esta ideologia como externalização resultante de uma necessidade interna, é exemplificada por Zizek pelo modo distinto como a mídia ocidental tratou a guerra da Bósnia e a guerra contra o Iraque, dois fatos da história contemporânea, mesmo sendo diferentes no espaço e no tempo, mas ligados às raizes de uma história passada com suas realidades no presente, mas tratados ideologicamente de maneiras distintas, em função das necessidades internas da potência ou das potências dominantes.


 
Em vez de dar informações sobre as tendências e antagonismos sociais, políticos e religiosos do Iraque, a mídia acabou reduzindo o conflito a uma briga com Saddam Hussein, a personificação do mal, o fora-da-lei que se excluira da comunidade internacional civilizada.

Mais do que a destruição das forças militares do Iraque, o verdadeiro objetivo foi apresentado como sendo psicológico, como a humilhação de Saddam, que tinha que «perder a pose».

Em se tratando da guerra da Bósnia, porém, apesar de alguns casos isolados de demonização do presidente sérvio, Milosevic, a atitude predominante reflete a de um observador quase antropológico. Os meios de comunicação superam uns aos outros no esforço de nos dar aulas sobre os antecedentes étnicos e religiosos do conflito; traumas de mais de cem anos são encenados e reencenados, a tal ponto que para compreender as raizes do conflito, tem-se que conhecer não apenas a história da Jugoslávia, mas também toda a história dos Balcãs, desde os tempos medievais (...)

Na guerra da Bósnia, portanto, não se pode simplesmente tomar um partido, mas apenas tentar apreender os antecedentes daquele espetáculo selvagem, alheio a nosso sistema de valores civilizado. (...) Esse processo inverso implica uma mistificação ideológica ainda mais ardilosa do que a demonização de Saddam Hussein. (ZIZEK, apud RENATA SALECL 1994,p.10).

Para Zizek a ideologia como uma externalização (e não uma internalização do externo, como costuma acontecer com a ideologização da percepção) que resulta de uma necessidade interna, acaba servindo ao engendro de informações por aqueles que manipulam interesses internacionais.

Há nos dias de hoje uma ideologia do internacionalismo econômico e uma ideologia na história das Nações.

Zizek, à p. 10 faz questionamentos sobre a mistificação ideológica e uma crítica ao Ocidente pela forma como se coloca diante dos conflitos nos Bálcãs, como um silencioso apoio à purificação étnica.:

«Em que consiste, exatamente, essa mistificação ideológica? Dito de maneira um tanto crua, a evocação da «complexidade da situação» serve para nos livrar da responsabilidade de agir. A cômoda atitude do observador distante e a evocação do contexto supostamente intricado das lutas religiosas e étnicas dos países balcânicos servem para permitir ao Ocidente livrar-se de sua responsabilidade para com os Balcãs – ou seja, para evitar a dura verdade de que, longe de expor um excêntrico conflito étnico, a guerra da Bósnia resulta diretamente da incapacidade do Ocidente de apreender a dinâmica política da desintegração da Iugoslávia, e do silencioso apoio ocidental à purificação étnica».

O que se constata neste ensaio de Zizek é que o conceito de ideologia está caracterizado pelo paradoxo, é um tipo de visão comprometida com a realidade social, com sua transformação ou com a distorção desta realidade.

Zizek, em sua análise do conceito de ideologia, (re)visita o pensamento de Marx, Althusser, Foucault, Adorno, Freud, Lacan, Derrida, Lefort e outros, preparando uma possível direção onde este conceito possa vir a contribuir para a (. re)apreensão da realidade social contraditória vigente nos dias atuais.

Uma visão que mais se aproxima desta meta é a contribuição psicanalítica de Lacan que se distancia da dicotomia realidade verdadeira versus realidade falsa. A realidade é sempre mediada pelo símbolo, ela é uma construção simbólica, dissimulando a pretensão da (re)apreensão do real em si..

O Espectro da Ideologia é uma reconstrução válida e inquietante sobre um conceito jogado fora pelos intelectuais burgueses, mas que se constitui, na verdade, num instrumento valioso para a compreensão das tensões, dos paradoxos, dos antagonismos, das crises, das contradições que permeiam a realidade social nesta época conturbada por problemas ecológicos, sociais, étnicos, econômicos, políticos.

Como aluna do curso de Letras, considero que o autor em sua exaustiva e articulada análise do conceito de ideologia deixou uma lacuna ao não abordar a lógica da ficção enquanto ato criativo ou criação literária, o que se torna compreensível por ser por demais complexo (des)entranhar o viés ideológico na memória, na imaginação e na fonte revolucionária da criação literária, da construção discursiva de um romance.

Outra questão importante é que as ideologias são sempre produzidas em condições propícias e objetivas, por homens e por mulheres que vivenciam situações concretas.

Nestes tempos elas estão vivas, latentes ou manifestas, mas fazendo parte das forças conflitantes do corpo social.

Enfim, Zizek traz para a pos-modernidade, caracterizada hoje pelo Capitalismo tardio, a coragem e a audácia de colocar em novos termos o que é a ideologia.

Porém, este discurso tem o seu revés, é a aparição fantasmática que retorna, é a astúcia da razão, que ao reconstruir também se desconstrói, se desmonta.




 

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