O PRIMEIRO DIA
Crónica de Ilona Bastos
Graça
Um mar de processos cobria as secretárias, donde emergiam, parecendo boiar à deriva, os monitores dos computadores e as cabeças dos funcionários.
Uma vaga de papel branco e cartolina azul suave galgara mesmo o parapeito da janela, através da qual se avistava a cidade, longínqua.
A senhora simpática, de cabelo curto e óculos, levantou-se e avançou, com deferência. Alheia aos sorrisos mal disfarçados dos colegas, guiou-a através do corredor, junto aos guichets, ultrapassou o guarda-vento, atravessou o hall de entrada, penetrou na zona reservada e, finalmente, deteve-se junto à porta de um gabinete, que abriu.
Com um baixar de cabeça agradeceu a delicadeza da senhora simpática, de cabelo curto e óculos, que se inclinava, numa vénia.
«Bem-vinda, Senhora Doutora! Este é o gabinete que lhe foi atribuído. Agora volto para a secretaria... Se desejar alguma coisa...»
«Obrigada. Se precisar, eu aviso.»
Em poucos segundos desvaneceu-se a imagem da funcionária e do corredor, apenas restando, em primeiro plano, a porta de madeira escura, fechada.
Voltando-se, deu alguns passos, progredindo em território estranho, excessivamente ocupado.
Sobre o chão frio, erguiam-se uma secretária, duas cadeiras, um pequeno armário rectangular, uma mesinha de apoio e inúmeras pilhas de processos com capa de cartolina azul celeste.
Também pelos móveis se apinhavam dossiers, livros, um telefone empoeirado e mais montanhas de processos.
Pairava sobre o relevo desordenado do aposento uma pesada camada de ar, que lhe pareceu irrespirável porque também ela impregnada de pó e, se possível, de papel, até ao tecto alto e sujo, até ao candeeiro frio, de lâmpadas fluorescentes, até às janelas subidas, de armazém, encostadas ao tecto, não deixando entrar a luz nem a brisa, mas tão somente a suspeita de uma humidade insidiosa e de uma chuva persistente...
Aproximando-se da cadeira da secretária, observou as paredes, recobertas de azulejos verdes e brancos, semelhantes aos das casas - de - banho. Estacando, de repente, escutou os ruídos exteriores e pressentiu (mais do que ouviu) o aclarar da garganta de um colega vizinho, o circular dos automóveis no alcatrão molhado e o tamborilar da chuva na calçada.
Na mesa de apoio, afastou uma resma de papel, unida em maços heterogéneos por um cordel branco. Pousou a pasta. Cuidadosamente, experimentou a cadeira, desconfiada da sua robustez, pendurou a bolsa no encosto, e sentou-se. Estendendo as mãos, pegou num processo, e noutro, e num terceiro, e nos que corriam a seus braços como crianças carentes. Soerguendo-se, colocou-os de lado, deixando à vista o tampo riscado e corroído da secretária.
Com súbito entusiasmo, rodou a cadeira, ávida da pasta e da caneta nela contida. Mas o choque com uma montanha de processos fê-los tombar, precipitando-os em estrondosa cascata que deslizou pelo chão.
Baixou-se para recolocar os processos na pilha, ao mesmo tempo que fazia balançar outros morros, de equilíbrio evidentemente instável, existentes sobre a secretária
Limpou, nas calças novas, propositadamente compradas para estrear nesse dia, as mãos já sujas de pó, levantou-se com vigor, deu dois passos e tropeçou, arrastando papel, cartolina e cordel branco pelos mosaicos pouco limpos do gabinete.
Confusamente, ouviu o telefone tocar. Com esforço, alcançou o auscultador, que aproximou do ouvido, bruscamente. Depressa, porém, a expressão do seu rosto se suavizou.
«Então, querida, está a correr tudo bem?»
Imprimiu à voz o máximo de optimismo que conseguiu reunir dentro de si:
«Ah, sim. Tudo bem!»
«E o pessoal?»
«Ah, fui muito bem recebida. Há uma funcionária especialmente amável, que se mostrou muito prestável e me trouxe ao gabinete...»
«Optimo! Viva o luxo!»
«é...»
«Tenho uma reunião agora. E depois outra, às cinco horas. Vais buscar a Clara?»
«Claro!!!»
Riu-se, aliviada com o eco de gargalhada vindo do outro lado do telefone. Era o seu (deles) trocadilho de serviço. Apto a aliviar todas as tensões (mesmo as não assumidas - especialmente as não assumidas).
«Então, até logo. E a continuação de um óptimo primeiro dia de trabalho!»
«Obrigada. Um dia feliz para ti, também. Beijos.»
Desligou, mais animada. Resolutamente, arregaçou as mangas. De olhar semi-cerrado calculou, em primeiro lugar, como arrumar os processos de forma a poder caminhar livremente pelo gabinete.
Recordou-se, com inveja, das amplas janelas da secretaria. Aí, pelo menos, os parapeitos constituíam excelentes prateleiras. No seu caso, nem dessa solução podia socorrer-se, encontrando-se, como se encontrava, num gabinete improvisado, que fora até há bem pouco tempo a sala das testemunhas.
E para quê janelas tão altas? - perguntou-se - Para as testemunhas não fugirem, aterrorizadas com as vestes negras e solenes dos magistrados, dos advogados e dos escrivães? Ou, antes, para não se escapulirem ardilosamente pela sanca exterior ao edifício e, em equilibrismos Hollywoodescos, caminharem até às vizinhas janelas da sala de audiências e, aí, através de leitura labial, tomarem conhecimento do depoimento das outras pessoas (testemunhas, peritos, partes), o que lhes era absolutamente vedado?
Metodicamente, começou a abraçar molhos de processos que carregava, toda curvada, até junto das paredes, agrupando-os, rente aos azulejos brancos e verdes, verticalmente, em torres e arranha-céus oscilantes. Os livros, alinhou-os ordenadamente em cima do armário.
Este sistema permitiu-lhe conquistar uma área considerável de território. Agora, sim, podia deslocar-se entre a secretária e as cadeiras, entre o armário e a porta e a mesa do telefone, com certa ligeireza de movimentos!
Pensou que um pano do pó e uma planta tornariam o ambiente mais agradável, e recordou-se da secretaria, onde havia luz com abundância e uma tal profusão de vasos com fetos, plantas da borracha e troncos da felicidade, que mais parecia uma estufa ou um parque tropical.
Considerou que as janelas também ajudavam - as plantas necessitam de luz e de ar - e lamentou que as suas fossem tão altas e inúteis.
Se as paredes não estivessem recobertas de azulejos poderia trazer uns quadros e decorar o gabinete. Sim, tinha lá em casa uma reprodução de um Renoir que trouxera da última viagem a Paris. Era magnífica, evidentemente... mas não lhe parecia que condissesse com os azulejos brancos e verdes!
Tomou, desta vez, a iniciativa de ligar o telefone.
Atendeu imediatamente a funcionária simpática, da secretaria
«Importa-se de cá chegar, se faz favor?»
«Com certeza, é só um momento.»
Meia - hora depois, quando, já impaciente, se preparava para tornar a telefonar, apareceu a escrivã, balbuciando da entrada:
«Peço desculpa, senhora doutora, mas estou sozinha na secretaria, apareceu um advogado para consultar um processo e tive de o procurar...
«Sim, tudo bem.»
Mudou de tom de voz, procurando ser imperativa:
«Diga-me uma coisa: para organizar melhor o trabalho quero que me indique quais destes processos aguardam despacho e quais são os que podem ser imediatamente arquivados na secretaria.»
A resposta foi imediata:
«Estão todos a aguardar despacho, senhora doutora.»
«Todos! Bom, então quero que me diga quais são os mais urgentes, para os classificar por ordem de prioridades.»
A informação não poderia ser mais precisa:
«Todos estes processos estão para despacho urgente, senhora doutora.»
«Mas os mais urgentes...»
«São todos muitíssimo urgentes!»
A funcionária simpática, de cabelo curto e óculos quedou-se junto à porta, semi-aberta, em que se apoiava. O seu rosto permanecia expectante, e mantinha-se impassível, como anteriormente. Não se vislumbrava, agora, a sombra de um sorriso. Mas também não se detectava ironia ou sarcasmo na sua atitude. Informara, simplesmente, como devia informar. Competentemente.
Por momentos, aquela figura esguia e impávida tornou-se desfocada, ténue, trémula, na visão da sua interlocutora, sentada na cadeira, do lado de cá da secretária.
Uma vertigem ensombrou-lhe o cenário de paredes de azulejo de casa - de - banho e processos, dezenas de processos, centenas de processos, às pilhas, em torres e arranha-céus, aos montes e vales, em planaltos que a cercavam, ameaçadores, de todos os lados.
Gradualmente, tudo escureceu, e assim se manteve por escassos segundos.
Depois, a paisagem foi-se recompondo, readquirindo cor, e o azul das capas de cartolina uma vez mais lhe recordou o mar, ondeante mas suave, quase tranquilo, a acariciar as margens esverdeadas, em cerâmica.
Quando voltou a observar a funcionária, já os seus contornos apareciam perfeitamente definidos, e as palavras, emanadas da sua boca, revelavam-se espantosamente claras:
«Se a senhora doutora o desejar, amanhã coloco-lhe sobre a secretária os processos para despacho de mero expediente, que são os mais rápidos», propôs. «Hoje não, que está na hora da saída. Mas amanhã a senhora doutora despacha uns dez processos. Depois de amanhã mais dez...»
«E os outros...»
A funcionária permitiu-se sorrir, com genuína simpatia.
«Os outros estão cá há muito! São decisões difíceis e resolvem-se com o tempo.»
«Sim...»
Sentia empatia no outro extremo do aposento, junto à entrada.
«Se a senhora doutora não precisar de mais nada, então, saio.»
«Obrigada, não preciso, não. Até amanhã.»
«Até amanhã, senhora doutora.»
Ao olhar para o relógio percebeu que estava na hora de, também ela, sair. Precisava de ir buscar a Clara, que acabava as aulas às seis e meia, nesse dia.
Apanhou a bolsa e a pasta, dirigiu-se à porta e, antes de apagar a luz, ainda lançou um olhar sobre o minúsculo gabinete que lhe fora atribuído. Sentia-se um pouco atordoada, mas recuperava com surpreendente rapidez.
Já no corredor, apercebeu-se de que, sem que o tivesse notado (provavelmente o caso dera-se quando, afanosamente, carregava processos de um lado para o outro do gabinete) haviam colocado uma placa na sua porta.
Um colega, que passava nesse momento, cumprimentou-a delicadamente, e do outro extremo, além guarda-vento, a funcionária simpática, levando no braço um enorme guarda-chuva vermelho, saudou-a com respeito e estima.
Ainda teve tempo de reler as palavras escritas na pequena placa de cobre, antes de alcançar o elevador:
«Juíza de Direito».
Ao impacto inicial, seguiu-se uma sensação estranha, indefinível: Seria orgulho? Felicidade? Medo? Horror?
Pelo espírito passou-lhe, fugaz, o traçado lúgubre das janelas estreitas, rentes ao tecto manchado de humidade, e visualizou os estranhos esforços de equilíbrio de um vulto absurdo que fugia pela sanca exterior do edifício...
Mas afastou o pensamento. Correu, sob a chuva forte, até ao automóvel. Abriu a porta, sentou-se, atirou a pasta e a bolsa para o banco traseiro, e apertou o cinto. Não importava mais nada, agora. Tinha de se apressar. A Clara estava à sua espera, sem guarda-chuva, e com a pesada mochila às costas, junto ao portão da escola.
Nessa noite, já estava combinado com o João, iriam todos, incluindo os pais e os irmãos, jantar fora, num restaurante de luxo, para festejar a sua promoção e o primeiro dia no exercício de funções.
Hip! Hip! Hurra!
Crónica de Ilona Bastos
Graça
Um mar de processos cobria as secretárias, donde emergiam, parecendo boiar à deriva, os monitores dos computadores e as cabeças dos funcionários.
Uma vaga de papel branco e cartolina azul suave galgara mesmo o parapeito da janela, através da qual se avistava a cidade, longínqua.
A senhora simpática, de cabelo curto e óculos, levantou-se e avançou, com deferência. Alheia aos sorrisos mal disfarçados dos colegas, guiou-a através do corredor, junto aos guichets, ultrapassou o guarda-vento, atravessou o hall de entrada, penetrou na zona reservada e, finalmente, deteve-se junto à porta de um gabinete, que abriu.
Com um baixar de cabeça agradeceu a delicadeza da senhora simpática, de cabelo curto e óculos, que se inclinava, numa vénia.
«Bem-vinda, Senhora Doutora! Este é o gabinete que lhe foi atribuído. Agora volto para a secretaria... Se desejar alguma coisa...»
«Obrigada. Se precisar, eu aviso.»
Em poucos segundos desvaneceu-se a imagem da funcionária e do corredor, apenas restando, em primeiro plano, a porta de madeira escura, fechada.
Voltando-se, deu alguns passos, progredindo em território estranho, excessivamente ocupado.
Sobre o chão frio, erguiam-se uma secretária, duas cadeiras, um pequeno armário rectangular, uma mesinha de apoio e inúmeras pilhas de processos com capa de cartolina azul celeste.
Também pelos móveis se apinhavam dossiers, livros, um telefone empoeirado e mais montanhas de processos.
Pairava sobre o relevo desordenado do aposento uma pesada camada de ar, que lhe pareceu irrespirável porque também ela impregnada de pó e, se possível, de papel, até ao tecto alto e sujo, até ao candeeiro frio, de lâmpadas fluorescentes, até às janelas subidas, de armazém, encostadas ao tecto, não deixando entrar a luz nem a brisa, mas tão somente a suspeita de uma humidade insidiosa e de uma chuva persistente...
Aproximando-se da cadeira da secretária, observou as paredes, recobertas de azulejos verdes e brancos, semelhantes aos das casas - de - banho. Estacando, de repente, escutou os ruídos exteriores e pressentiu (mais do que ouviu) o aclarar da garganta de um colega vizinho, o circular dos automóveis no alcatrão molhado e o tamborilar da chuva na calçada.
Na mesa de apoio, afastou uma resma de papel, unida em maços heterogéneos por um cordel branco. Pousou a pasta. Cuidadosamente, experimentou a cadeira, desconfiada da sua robustez, pendurou a bolsa no encosto, e sentou-se. Estendendo as mãos, pegou num processo, e noutro, e num terceiro, e nos que corriam a seus braços como crianças carentes. Soerguendo-se, colocou-os de lado, deixando à vista o tampo riscado e corroído da secretária.
Com súbito entusiasmo, rodou a cadeira, ávida da pasta e da caneta nela contida. Mas o choque com uma montanha de processos fê-los tombar, precipitando-os em estrondosa cascata que deslizou pelo chão.
Baixou-se para recolocar os processos na pilha, ao mesmo tempo que fazia balançar outros morros, de equilíbrio evidentemente instável, existentes sobre a secretária
Limpou, nas calças novas, propositadamente compradas para estrear nesse dia, as mãos já sujas de pó, levantou-se com vigor, deu dois passos e tropeçou, arrastando papel, cartolina e cordel branco pelos mosaicos pouco limpos do gabinete.
Confusamente, ouviu o telefone tocar. Com esforço, alcançou o auscultador, que aproximou do ouvido, bruscamente. Depressa, porém, a expressão do seu rosto se suavizou.
«Então, querida, está a correr tudo bem?»
Imprimiu à voz o máximo de optimismo que conseguiu reunir dentro de si:
«Ah, sim. Tudo bem!»
«E o pessoal?»
«Ah, fui muito bem recebida. Há uma funcionária especialmente amável, que se mostrou muito prestável e me trouxe ao gabinete...»
«Optimo! Viva o luxo!»
«é...»
«Tenho uma reunião agora. E depois outra, às cinco horas. Vais buscar a Clara?»
«Claro!!!»
Riu-se, aliviada com o eco de gargalhada vindo do outro lado do telefone. Era o seu (deles) trocadilho de serviço. Apto a aliviar todas as tensões (mesmo as não assumidas - especialmente as não assumidas).
«Então, até logo. E a continuação de um óptimo primeiro dia de trabalho!»
«Obrigada. Um dia feliz para ti, também. Beijos.»
Desligou, mais animada. Resolutamente, arregaçou as mangas. De olhar semi-cerrado calculou, em primeiro lugar, como arrumar os processos de forma a poder caminhar livremente pelo gabinete.
Recordou-se, com inveja, das amplas janelas da secretaria. Aí, pelo menos, os parapeitos constituíam excelentes prateleiras. No seu caso, nem dessa solução podia socorrer-se, encontrando-se, como se encontrava, num gabinete improvisado, que fora até há bem pouco tempo a sala das testemunhas.
E para quê janelas tão altas? - perguntou-se - Para as testemunhas não fugirem, aterrorizadas com as vestes negras e solenes dos magistrados, dos advogados e dos escrivães? Ou, antes, para não se escapulirem ardilosamente pela sanca exterior ao edifício e, em equilibrismos Hollywoodescos, caminharem até às vizinhas janelas da sala de audiências e, aí, através de leitura labial, tomarem conhecimento do depoimento das outras pessoas (testemunhas, peritos, partes), o que lhes era absolutamente vedado?
Metodicamente, começou a abraçar molhos de processos que carregava, toda curvada, até junto das paredes, agrupando-os, rente aos azulejos brancos e verdes, verticalmente, em torres e arranha-céus oscilantes. Os livros, alinhou-os ordenadamente em cima do armário.
Este sistema permitiu-lhe conquistar uma área considerável de território. Agora, sim, podia deslocar-se entre a secretária e as cadeiras, entre o armário e a porta e a mesa do telefone, com certa ligeireza de movimentos!
Pensou que um pano do pó e uma planta tornariam o ambiente mais agradável, e recordou-se da secretaria, onde havia luz com abundância e uma tal profusão de vasos com fetos, plantas da borracha e troncos da felicidade, que mais parecia uma estufa ou um parque tropical.
Considerou que as janelas também ajudavam - as plantas necessitam de luz e de ar - e lamentou que as suas fossem tão altas e inúteis.
Se as paredes não estivessem recobertas de azulejos poderia trazer uns quadros e decorar o gabinete. Sim, tinha lá em casa uma reprodução de um Renoir que trouxera da última viagem a Paris. Era magnífica, evidentemente... mas não lhe parecia que condissesse com os azulejos brancos e verdes!
Tomou, desta vez, a iniciativa de ligar o telefone.
Atendeu imediatamente a funcionária simpática, da secretaria
«Importa-se de cá chegar, se faz favor?»
«Com certeza, é só um momento.»
Meia - hora depois, quando, já impaciente, se preparava para tornar a telefonar, apareceu a escrivã, balbuciando da entrada:
«Peço desculpa, senhora doutora, mas estou sozinha na secretaria, apareceu um advogado para consultar um processo e tive de o procurar...
«Sim, tudo bem.»
Mudou de tom de voz, procurando ser imperativa:
«Diga-me uma coisa: para organizar melhor o trabalho quero que me indique quais destes processos aguardam despacho e quais são os que podem ser imediatamente arquivados na secretaria.»
A resposta foi imediata:
«Estão todos a aguardar despacho, senhora doutora.»
«Todos! Bom, então quero que me diga quais são os mais urgentes, para os classificar por ordem de prioridades.»
A informação não poderia ser mais precisa:
«Todos estes processos estão para despacho urgente, senhora doutora.»
«Mas os mais urgentes...»
«São todos muitíssimo urgentes!»
A funcionária simpática, de cabelo curto e óculos quedou-se junto à porta, semi-aberta, em que se apoiava. O seu rosto permanecia expectante, e mantinha-se impassível, como anteriormente. Não se vislumbrava, agora, a sombra de um sorriso. Mas também não se detectava ironia ou sarcasmo na sua atitude. Informara, simplesmente, como devia informar. Competentemente.
Por momentos, aquela figura esguia e impávida tornou-se desfocada, ténue, trémula, na visão da sua interlocutora, sentada na cadeira, do lado de cá da secretária.
Uma vertigem ensombrou-lhe o cenário de paredes de azulejo de casa - de - banho e processos, dezenas de processos, centenas de processos, às pilhas, em torres e arranha-céus, aos montes e vales, em planaltos que a cercavam, ameaçadores, de todos os lados.
Gradualmente, tudo escureceu, e assim se manteve por escassos segundos.
Depois, a paisagem foi-se recompondo, readquirindo cor, e o azul das capas de cartolina uma vez mais lhe recordou o mar, ondeante mas suave, quase tranquilo, a acariciar as margens esverdeadas, em cerâmica.
Quando voltou a observar a funcionária, já os seus contornos apareciam perfeitamente definidos, e as palavras, emanadas da sua boca, revelavam-se espantosamente claras:
«Se a senhora doutora o desejar, amanhã coloco-lhe sobre a secretária os processos para despacho de mero expediente, que são os mais rápidos», propôs. «Hoje não, que está na hora da saída. Mas amanhã a senhora doutora despacha uns dez processos. Depois de amanhã mais dez...»
«E os outros...»
A funcionária permitiu-se sorrir, com genuína simpatia.
«Os outros estão cá há muito! São decisões difíceis e resolvem-se com o tempo.»
«Sim...»
Sentia empatia no outro extremo do aposento, junto à entrada.
«Se a senhora doutora não precisar de mais nada, então, saio.»
«Obrigada, não preciso, não. Até amanhã.»
«Até amanhã, senhora doutora.»
Ao olhar para o relógio percebeu que estava na hora de, também ela, sair. Precisava de ir buscar a Clara, que acabava as aulas às seis e meia, nesse dia.
Apanhou a bolsa e a pasta, dirigiu-se à porta e, antes de apagar a luz, ainda lançou um olhar sobre o minúsculo gabinete que lhe fora atribuído. Sentia-se um pouco atordoada, mas recuperava com surpreendente rapidez.
Já no corredor, apercebeu-se de que, sem que o tivesse notado (provavelmente o caso dera-se quando, afanosamente, carregava processos de um lado para o outro do gabinete) haviam colocado uma placa na sua porta.
Um colega, que passava nesse momento, cumprimentou-a delicadamente, e do outro extremo, além guarda-vento, a funcionária simpática, levando no braço um enorme guarda-chuva vermelho, saudou-a com respeito e estima.
Ainda teve tempo de reler as palavras escritas na pequena placa de cobre, antes de alcançar o elevador:
«Juíza de Direito».
Ao impacto inicial, seguiu-se uma sensação estranha, indefinível: Seria orgulho? Felicidade? Medo? Horror?
Pelo espírito passou-lhe, fugaz, o traçado lúgubre das janelas estreitas, rentes ao tecto manchado de humidade, e visualizou os estranhos esforços de equilíbrio de um vulto absurdo que fugia pela sanca exterior do edifício...
Mas afastou o pensamento. Correu, sob a chuva forte, até ao automóvel. Abriu a porta, sentou-se, atirou a pasta e a bolsa para o banco traseiro, e apertou o cinto. Não importava mais nada, agora. Tinha de se apressar. A Clara estava à sua espera, sem guarda-chuva, e com a pesada mochila às costas, junto ao portão da escola.
Nessa noite, já estava combinado com o João, iriam todos, incluindo os pais e os irmãos, jantar fora, num restaurante de luxo, para festejar a sua promoção e o primeiro dia no exercício de funções.
Hip! Hip! Hurra!
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