segunda-feira, 22 de junho de 2015

Chama devoradora - John Steinbeck - Resenha crítica de Daniel Teixeira


Chama devoradora

John Steinbeck

Resenha crítica de Daniel Teixeira

Com este título, Chama devoradora, aparentemente da autoria da tradutora da Livros do Brasil - Lisboa, Virgínia Motta, em data incerta dos anos 60's, baseado no volume de Steinbeck de 1950 «Burning Bright», relemos recentemente mais uma obra deste nobelizado (1963) autor.

O título em português não é dos mais felizes, na nossa opinião, havendo algumas alternativas possíveis que correspondessem melhor quer a um sentimento literário menos catastrófico quer à própria temática do livro, mas por ora fiquemo-nos por aqui.

Na verdade há todo um conjunto de especificidades neste volume que é preciso desde logo referir, na medida em que se não trata directamente de romance (embora o seja no seu conjunto) mas sim de um conjunto de novelas entrelaçadas que se constituem num trama romanceado.

Mas ninguém melhor que o autor para nos explicar porque escreveu desta forma e não de uma outra:

«Decidi-me por este tipo literário por várias e diferentes razões. A leitura de peças teatrais parece-me difícil e o mesmo pensa muita gente. As peças que se dão à estampa são lidas exclusivamente pelas pessoas que se encontram ligadas ao teatro, pelos estudante ou estudiosos da arte dramática e por um grupo relativamente reduzido de leitores a quem o teatro fascina.

Daí a primeira razão da forma literária que adoptei: o desejo de produzir uma peça capaz de atrair um número substancial de leitores, uma vez que o livro é apresentado como um romance vulgar, ou seja, dentro de um género mais familiar ao grande público» (...)»

Quanto à segunda razão apresentada pelo escritor no seu prefácio iremos resumi-la desta forma: trata-se de fornecer de forma mais acessível um conjunto de informação ao actor, ao director, ao produtor e ainda ao leitor, em diversos aspectos, alargando o leque informativo sobre as personagens, coisa que uma peça de teatro escrita ou declamada não faz desde logo, no entender do autor, permitindo por isso uma liberdade interpretativa ao encenador, aos actores e ao público que pode não corresponder àquela intensidade ou forma que inicialmente era pretendida pelo autor.

Steinbeck divide esta peça novela em quatro actos, cada um deles passado em cenários diferentes, com as mesmas personagens base e um argumento que se entrelaça nos momentos relevantes de cada um dos anteriores.

Assim, o primeiro acto passa-se num circo, o segundo acto numa quinta, o terceiro que se prolonga pelo quarto acto entre o mar (um barco atracado num porto) e um nascimento.

Quem conhece Steinbeck sabe que este autor deu uma importância relevante à relação de família e ao relacionamento familiar e tanto neste romance como noutros a transmissão de sangue ou da continuidade afectiva e memorial está de alguma forma sempre presente: lembra-mo-nos de «A um Deus desconhecido» por exemplo (que curiosamente teve pouco sucesso quando da sua publicação primeira em 1933) ou mesmo «Ratos e Homens» que é considerada a sua obra prima ou ainda «As vinhas da Ira» (1939) entre outros.

Neste romance/peça de teatro o tema basilar trata de um indivíduo que tem um verdadeiro problema sobre a necessidade de deixar descendência, o que se torna de alguma forma obsessivo. Compreender Steinbeck e o tempo em que escreve é também ter a tentação de referir o chavão que se acopla normalmente ainda hoje ao povo americano em geral que é a busca de uma identidade comum americana (USA).

Nascido este país (conjunto de estados) de um caldo (nem, sempre ou poucas vezes misturado) de nacionalidades e culturas é bastante comum encontrarem-se ainda hoje as referências identitárias originais (irlandês, italiano, judeu, latino, polaco, etc.) dos emigrantes que inicialmente povoaram a América, mantendo-se algumas comunidades com muito poucas variantes inter - culturais e relativamente pequena fusão social e familiar efectiva.

Contudo este problema relatado por Steinbeck pode inicialmente ser encarado no plano exclusivamente pessoal. Joe Saul é casado em segundas núpcias com Mordeen dado o falecimento da sua primeira esposa, tem um amigo denominado no romance de Amigo Ed, e um jovem auxiliar de nome Vítor.

Independentemente do cenário desenvolvido por Steinbeck as posições hierárquicas dos personagens mantêm-se. No circo Vítor é companheiro de trapézio do mais experiente Joe Saul, na quinta é trabalhador sob as ordens de Joe Saul e no barco é o imediato de Joe Saul e no quarto acto, interligado com o terceiro, está ausente por razões que esclareceremos mais à frente.

Mordeen ama Joe Saul cuja ânsia por ter descendência se vê constantemente frustrada e o atormenta cada vez mais porque sem o saber Joe Saul é estéril. Sabendo da esterilidade dele e desejosa de fazer cumprir o desejo do companheiro, logo no primeiro acto, em conversa com Amigo Ed, sugere levemente a possibilidade de engravidar através de uma relação secreta com o jovem Vítor que a ama sem ser correspondido por Mordeen, relação essa que vem a acontecer.

No primeiro acto ficamos com a dúvida sobre se a infidelidade de Mordeen a Joe Saul terá uma componente exclusivamente altruísta, uma vez que Mordeen também deseja ser mãe, não de uma forma tão obsessiva, mas o resultado acabará por ser o mesmo na medida em que o seu relacionamento com Joe Saul melhorará de forma significativa no seu entender cumprido que seja este seu desejo de deixar o «seu sangue» perdurar.

Nos outros actos trata-se sobretudo da gravidez e da luta de Vítor perante Mordeen para que ela assuma que o futuro filho é dele e dela, situação esta que está presente nos três actos.

No último o Amigo Ed acaba por «resolver» a insistência de Vítor jogando-o ao mar e causando a sua morte, ficando desta forma o crime sem castigo, tentando assim poupar tanto Joe Saul como Mordeen.

A parte final trata do nascimento do bebé, já sabendo na altura, através de análises que fez, Joe Saul, que é estéril e que logo o filho que nasce da barriga de Mordeen não é seu.

Joe Saul acaba por aceitar a inevitabilidade, depois de uma luta de recusa consigo mesmo, e após o nascimento do bebé acaba a peça / romanceada com o seguinte trecho:

(...) «Mordeen, gosto da criança - a voz de Joe Saul ganhou volume e foi em tom vigoroso que reforçou a sua declaração - Mordeen, gosto do nosso filho - e erguendo a cabeça, exclamou triunfante - Mordeen, gosto do meu filho.»

Depois do que dissemos acima sobre as intenções de John Steinbeck quanto à forma do seu escrito parece-nos claro que, apesar de estar bem escrito e ter um enredo suspensivo constante entre actos, com os elementos dramáticos, desconhecimento da realidade dos factos da parte de Joe Saul  e posterior conhecimento, insistência e incerteza quanto ao resultado da pressão do verdadeiro pai da criança, desfecho relativamente inesperado pela acção de Amigo Ed e a atitude final de Joe Saul que, dito tudo isto, como romance este vale mais como peça de teatro.

Na verdade pensamos que só na declamação e na actuação as personagens podem ganhar verdadeira força e intensidade dramática e que as coreografias poderão de facto ajudar bastante uma história que não sendo de todo banal, está quanto a nós longe de se constituir como sendo interessante por si só na sua forma escrita.

Daniel Teixeira


 

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