Romance acabado
Conto de Daniel Teixeira
Eu tinha os condimentos todos na minha história, ou pensava que tinha, mas talvez eu tivesse exagerado na complexidade de dar volta ao romance e construir as páginas necessárias para que a obra ficasse satisfatoriamente aceitável.
Havia várias fontes de inspiração mas eram fontes ao nível superficial porque é praticamente impossível fugir às nossas referências literárias e o processo da minha personagem era bem diferente de tudo aquilo que seria pensável coadunando-se bastante com a minha anterior experiência de crítico literário.
Tratava este meu romance que acabou por não o ser do relacionamento entre o escritor e o público e a crítica também, embora esta última fosse referida de uma forma mais subtil.
O meu personagem era suficientemente inteligente para saber que podia dispensar alguns leitores, ou mesmo muitos, mas que estaria liquidado como escritor caso afrontasse a crítica de uma forma demasiado directa, de nada lhe valendo os numerosos prémios até ali acumulados. Seria irremediavelmente votado ao olvido, ostracizado.
A crítica que o tinha elogiado e continuava a elogiá-lo nunca o deitaria abaixo senão pelo olvido depois de o ter subido, isso sabe-se, eu sei como as coisas funcionam : poderiam aqueles que se tinham mantido mais discretos no seu apoio começar por meter uma ou outra opinião menos favorável, progressivamente, mas esse processo levaria muito tempo ou não seria nunca mesmo completado. Ele nunca seria reduzido a zero.
Para além disso, deste cuidadoso aspecto do seu relacionamento com a crítica e no outro campo onde se sentia sem peias, nas conferências, notava ele pela leitura das expressões das pessoas que uma parte grande do seu público então presente considerava que aqueles mitos, os mitos que ele criara, aqueles que ele pretendia desfazer mais não eram que manifestações da sua excentricidade.
Na verdade que coisa mais fácil de apreender pela grande massa, mesmo aquela que era muito, mas mesmo muito culta que todo ele era excentricidade?
Vestia-se quase como um mendigo, o cabelo encrespado parecia não ter sido regado havia dias ou mesmo semanas, o blusão surrado acumulava gordura no colarinho e nas mangas, a barba crescia-lhe desordenada e a sua forma de se expressar era extremamente difícil de ser entendida: entrava num caminho de discurso para logo se perder nas encruzilhadas e depois nas curvas e mais tarde regressava, passado tempo ao ponto de partida. Mas era bom a escrever, confuso, mas bom.
Assim, havia alguns planos que podiam muito bem ser considerados quase paranóicos no comportamento do meu personagem sobretudo quando se entendia - quando se entendia - o fio daquilo que ele dizia e que afinal era claro e simples para ele e para muita gente que o quisesse entender.
Mas, acho que as pessoas não o queriam mesmo entender quando ele falava: tinham criado dele uma imagem, tinham incorporado aquilo que ele escrevia na sua imagem dele e a razão da sua grande frustração devia-se não a ele mas sim aos outros que tinham de alguma forma feito daquilo que ele era aquilo que sempre pensaram e iam pensando dele sempre na mesma linha de construção.
Não havia mesmo nada a fazer, dizia eu mesmo ao meu personagem, porque eu dialogava com ele, procurava encontrar-lhe uma saída que lhe fosse satisfatória, que o levasse a permitir-me ao fim de umas duas centenas de páginas escrever finalmente a palavra «fim».
Ele chegara à conclusão que as pessoas não o liam tal como ele escrevia, quer dizer, que as pessoas davam um sentido diferente quer às suas palavras quer aos seus temas e ao percorrer quase o mundo em conferências tentou sempre explicar que não era aquilo que as pessoas pensavam o que ele queria dizer, porque essas mesmas pessoas faziam a identificação dos seus textos com ele mesmo e faziam as suas palavras, entendidas nesta perspectiva, como se fossem guias ou referenciais do seu comportamento real e ao tomá-lo como ídolo pensavam que a sua ligação comportamental pessoal era a ideal, aquela que deviam seguir.
Ora, de nada disso se tratava, repetia ele, uma vez e dezenas ou mesmo centenas de vezes quer em conversas particulares, quer em escritos, quer nas inúmeras conferências para as quais era convidado. A sua ideia - dizia ele - era a de criar nos seus leitores uma repulsa tão forte àquilo que os seus personagens representavam ou faziam que fizesse surgir neles, leitores, o desejo de uma moral e de um comportamento inverso.
E era dramática a situação dele, tentando combater moinhos que existiam de facto mas que não eram susceptíveis de lhe proporcionar nem sequer uma ilusória vitória.Tentei convencê-lo a suicidar-se, coisa que teria parecido uma coisa assim quase normal para quem trabalha na escrita a tal nível de complexidade e abstracção e que tem grande tradição na literatura e nas artes mas ele não aceitou a ideia o que me alegrou ao fim e ao cabo.
Para mim nada mais eficaz, nestes casos do que uma morte acidental, uma coisa que possa acontecer a qualquer um, uma doença em limite, enfim, uma morte normal se é que a morte é alguma vez uma coisa normal.
Mas tanto ele como eu tivemos receio que isso acabasse por funcionar como um incentivo maior à sua leitura, porque escritor morto tem mais sucesso. Havia a possibilidade, sempre tão seguida na literatura de o mandar para um sítio qualquer inopinado, uma reclusão num desconhecido local mas isso não resolvia nem o meu nem o problema dele.
Continuariam, os seus leitores à espera que ele voltasse e eu não conseguiria gerir a sua ausência de forma a meter o tão desejado termo «fim» no meu romance.
Que posso eu dizer mais? Nada mais tenho a acrescentar senão pedir desculpas por não ter escrito este romance. E daí, desculpa porquê ? Talvez este meu romance nem fosse lido senão por mim...bem talvez também o lesse a pessoa que fizesse a correcção e o ordenamento na editora, mas essa não conta.
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