domingo, 8 de fevereiro de 2015

Poesia de Jorge Vicente


Poesia de Jorge Vicente

Cadernos de Gethsemani



1.


desceram das montanhas os primeiros animais, as primeiras aves, as mães que, nas casas
dos filhos, casam e cozem o pão;

desceram das montanhas a flauta e a voz humana,
essa imensa cosmologia
mais breve que o voo de uma libélula
e infinitamente mais silenciosa [ou triste]
que a humana escritura dos deuses.

Jorge Vicente


2.

o meu pequeno deus doméstico
ininterruptamente escrevendo na argila:

constrói uma pequena linguagem que
possa alimentar os pássaros.

jorge vicente



3.


tenho, perante mim, uma grande escolha:
ser humano,
o produto de uma linhagem específica
- animal bípede, ser pensante, com um
sentido de existência muito próprio,
construtor, criador, filósofo nas horas vagas
e com um sentido estético para a poesia

tenho, perante mim, essa escolha:
ser humano e ser presa de um destino
de pequenos nadas

não posso mudar o que se passa em gaza
nem fazer prognósticos para o meu próprio
futuro
não posso escrever "um verso a mais foi escrito
e tudo o que já foi dito antes será repetido mais
uma vez no meu próprio caderno"

tenho essa escolha
que é um cavalo que passa devagar
e que me desabriga de mim mesmo

[uma ferida aberta com todas as possibilidades
de tempo

e com pequenos nadas no lugar
das palavras].

Jorge Vicente


4.

começa por escrever um poema verdadeiro
daqueles leves bem leves
daquela leveza bem justa e boa
daquela leveza bem dentro bem fora da língua

começa por escrever um poema sem vícios de forma
sem domínio claro e preciso da linguagem
não precisas voltar nem deslizar sorrateiramente
pela história da literatura
ela não te pertence
nem tu a ela

começa por dizer vou jantar com o coração apertado
não tenho espaço para mergulhar
sem pé, nem tenho medo de escrever
vou mergulhar de bruços em todo o teu poder

[violo e esta é a minha verdade,
a língua vivida sem escafandro].

Jorge Vicente



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