domingo, 17 de maio de 2015

A PENSÃO EM MARTINLONGO


A PENSÃO EM MARTINLONGO

Conto / Crónica de Daniel Teixeira


Ao longo destas minhas crónicas tenho falado já algumas vezes sobre o sacrifício que era para nós deslocarmo-nos de Faro a Alcaria Alta devido às muito más condições das estradas e ao deplorável estado dos arcaicos e desprezados pelas companhias, transportes públicos. Entre as diversas variantes para tentar adocicar o suplício do enjoo tínhamos uma que era ir até Martinlongo numa linha de transporte, passar lá a noite e seguir no dia seguinte na camioneta que partia de Martinlongo para Vila Real de Sto António logo manhã cedo. Ou seja, chegávamos por volta das 22 horas, dormíamos e partíamos de novo cerca das 8 da manhã.

Ficávamos então na Pensão da Dª Letícia que era a esposa do «ferrardorzinho» como lhe chamávamos porque era baixote e era ferrador entre outras coisas como aguadeiro nos períodos mais fracos e trabalhador de jorna noutras alturas. Era a única pessoa que conheci por aqueles lados com o chamado cabelo «cor de cenoura»: um dos filhos dele o H. também tinha essa cor de cabelo. Havia mais filhos e não me lembro quantos mas o casal era conhecido também pela sua grande contribuição para a natalidade do lugar. Um outro anda aqui por Faro também, o G. mas temos pouca lidação. O H. esse conhecemos bastante bem mas na altura era com eles todos que brincávamos quando lá íamos dormir à Pensão.

Sem vontade de comer nada acabávamos sempre com uma açorda com ovos escalfados, com umas migas de alho, uma canja quando havia galinha e conseguíamos brincar um bocado enquanto a minha mãe (ela também uma vítima do enjoo como nós) conseguia por a conversa em dia. A minha mãe levava sempre umas latas de leite condensado, um quilo ou dois de arroz e rebuçados para os miúdos.

Interessante como me lembro de coisas e como elas ficam gravadas em desfavor de outras, seguramente: os miúdos (como nós) embora fazendo parte de uma larga família onde claramente os meios não abundavam eram simplesmente impecáveis no trato, prestáveis ao ponto de irem connosco até à camioneta no dia seguinte ajudando na bagagem, corriam atrás da camioneta fazendo adeus e respeitavam a mãe de forma exemplar embora esta em muitos períodos do ano fosse sozinha em casa dadas as ausências para «ferrar» pelos Montes do marido.

No dia seguinte tínhamos pois de novo camioneta : eram só 10 Kms sensivelmente de Martinlongo à placa de Alcaria Alta mas o terror faria o seu efeito nem que fossem só 500 metros: o efeito psicológico era enorme e bastava aproximarmo-nos da garagem que era estação de chegada e de partida para o estômago começar às voltas. Como a estrada era direita já no planalto normalmente não havia problema de maior neste segundo troço mas o stress era bem pesado e só abrandava cá fora.

Ora, nestas condições porque íamos todos os anos a Alcaria Alta? Por um lado era bom estar por lá mas havia sempre a esperança de que «nesse ano se não vomitasse». Tínhamos quase uma escola com direito a Licenciatura sobre o enjoo. Um primo meu foi o teórico da na prática inaplicável teoria do estômago/copo cheio de água, os comprimidos mais diversos alegadamente contra o enjoo tinham marcas e composições renovadas todos os anos garantia-nos o farmacêutico, a estrada era melhorada também todos os anos sabia-se em boato, e havia um condutor, o Zé Mário, que sabia fazer muito bem as curvas: certo ou não isso nunca produziu efeito real visível e ele mesmo tinha o seu baldinho ao pé do assento não fosse o diabo tecê-las. Mas todos os anos havia uma renovada esperança...

O H. esteve uns quantos anos na Alemanha e penso que o G. também e outro cujo nome não fixo tem uma barbearia. Todos acabaram por se estabelecer, cada um em seu ramo: dos restantes não sei nada mas também não tenho perguntado e penso que havia também uma menina, talvez a mais velha, que já ajudava a mãe nas lides da casa.

O pai deles, o ferradorzinho, corria de Monte em Monte no seu labor de calçar os animais: gostava de ver quando ele estava em Alcaria Alta, normalmente um dia inteiro outras vezes mais. O posto de ferragem era encostado à taberna da Ti Inácia (e depois do Chico Artur também). Depois acabou por ser levantado naquele recanto um galinheiro rudimentar onde foram colocadas entre outras aves as exóticas galinhas de angola.

Para ferrar era preciso ter alguma prática e alguma experiência e, arrisco dizer, algum conhecimento da psicologia animal. Era preciso fazer um inventário dos tiques das bestas e do seu significado e era sobretudo preciso ganhar a confiança dos animais, aproveitar para fazer um estudo sumário do seu comportamento e regular-se muito pelo arquivo mental construído com muitos episódios já vivenciados.

Por vezes o ferrador passava a outro animal esperando que aquele acalmasse a sua estranheza, mudava-o de lugar de espera, alterava-lhe a orientação cardeal, enfim...eu acho que aquilo era uma verdadeira ciência.

Era também preciso saber quando se devia interromper a tarefa de descascar os cascos para que o animal pousasse a pata para descansar e escapar lesto quando de costas com uma pata traseira do animal entre as suas pernas sentia algum estremeção mais forte. Nas patas dianteiras os trabalhos eram menores e de menor risco, mas era sempre arriscado.

Não sei como as coisas são agora mas tenho um primo que foi fazer um desses cursos da CEE (como ainda se diz) para tratar das unhas das vacas: como toda a gente deve saber chegou-se á conclusão que vaca bem manicurada produz mais leite.

Ora ele descreveu-me que se mete o animal numa espécie de gaiola que se inclina com manivela a jeito em noventa graus e que depois se trabalha nas calmas...sentadinho.

Não sei até que ponto isso é aplicável a bestas mas na altura o sistema teria feito muito jeito ao ferradorzinho que contou ao que soube com pelo menos meia dúzia de coices, felizmente para ele e para a sua família nas partes «almofadadas» do corpo.



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