quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Texto de Maria Álvaro - Contradição


Texto de Maria Álvaro

Contradição

Ontem o dia fora compensador. Era o silêncio dos quartos adormecidos, e ainda em mim o palpitar entusiasta dos ecos de um rodopio sonoro que havia marcado os meus passos sonhadores na aula de dança das duas horas anteriores. Em meu leito, ainda em júbilo, os olhos bem abertos e vivazes, estavam direcionados para um alvo no escuro...a mente lúcida, os pensamentos fugazes...

Inicio, então, um deslizar involuntário e súbito por corredores, escadarias e salas de aula íntimas, muito íntimas.... Ouço o som monocórdico e agudo de múltiplas e simultâneas vozes femininas juvenis, risadas e ecos que ressoam fortes no meu peito. Ouço clamar e ecoar o meu nome : Maria Álvaro... álvaro... al-va-ro...! Voz que vem não sei de onde e nem para quê...

Mas vejo! Vejo as minhas colegas de turma, as minhas companheiras de estudo e de devaneios de tantos anos atrás, todas de bata branca e fitinha colorida ao peito. Vejo todos os rostos risonhos, irreverentes e sonhadores. Vejo a expectativa, vejo o entusiasmo estampado em cada olhar...

Vejo as carteiras de madeira onde as mocinhas se sentam e ocultam seus misteriosos enlevos, o estrado temeroso com seus degraus gélidos e escarpados, tal Alpes em dias invernosos... Vejo o quadro negro gigantesco empoado de branco, vejo os pedaços de giz pousados, esperando as mãos inquietas que irão fazer deslizar nele reproduções nervosas dos temas estudados... ou não ...Vejo um apagador que apaga erros e incertezas, mas não as notas atribuídas... Vejo o ponteiro de madeira tal enorme dedo condenatório e repressor, que mais do que apontar, intimida... Vejo o mapa- mundo autoritariamente pendurado na parede.
 
Exerce na perfeição a função de acentuar a localização e a geografia das "colônias", que, agora, não podem mais ser assim denominadas. Diz-se que são as "províncias ultramarinas", no dever de negar a atribuição de colonialista ao nosso País... No entanto, o mapa não nos desperta para a dimensão de isolamento absoluto que vivemos em relação às outras regiões da Europa e do Planeta...É um mapa que mente, um mapa que oculta!...

Vejo a professora de rosto seráfico e de voz emproada, como deusa em seu altar, este nada mais sendo do que a escrivaninha também de madeira onde repousam um tinteiro, com caneta de tinta permanente, o livro de ponto de um lado e a caderneta preta das notas do outro...

Vejo as janelas com as persianas de correr...Vejo o dia lá fora solarengo e as árvores da mata convidando para uma escapada...aquela escapada que nunca vem...Lembro-me da Feira de Faro, que está em curso... Penso na escapada de novo... _ "Vamos? Faltamos à aula de Inglês!...Depois a gente copia a matéria!", combinámos entre nós três... Hesito. Penso nas consequências... Mas o que é que isso interessa agora?! A Liberdade nos espera lá fora...na Feira!!!...

Na escuridão cega do meu quarto, a tudo assisti com tranquilidade. Não sofri, não desejei o regresso a esse cenário do passado...A música da minha aula de dança de duas horas atrás ainda ecoava como pano de fundo nesse palco juvenil da minha lembrança de outros tempos... Estava confortável, e prestes a ceder ao peso das minhas pálpebras ...

E, no entanto... subitamente...um detalhe aguçou o meu intelecto antes de me entregar definitivamente ao mundo dos sonhos ... Foi um detalhe que me deixou extremamente intrigada!... Intrigada porque, (imagine-se!) sem qualquer origem ou razão, sem qualquer emoção envolvida, sem o costumeiro nó na garganta em situações de comoção, sem o mínimo aperto no peito.......de repente .... uma lágrima viscosa, espessa, dolente,volumosa e contraditória começou a escorrer muito lentamente pelo canto de um único olho meu, deslizando injustificada pelo meu rosto imóvel e atónito...

Maria Álvaro




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